É a advertência que
se infere das palavras do Cardeal Patriarca de Lisboa em entrevista à Ecclesia no passado dia 19 de abril, em
que, falando nas novas possibilidades e desafios despertados pela covid-19, alerta para as “más visões
de Deus” por causa do novo coronavírus.
***
Confrontado com o provérbio
“Deus perdoa sempre, os homens às vezes, a natureza nunca”, citado pelo Papa
Francisco em entrevista recente, em que se referiu às causas desta pandemia,
Dom Manel Clemente vinca o facto de nós sermos “natureza personalizada” em cada
ser humano, pelo que não nos podemos excluir da natureza. Com efeito, “cada um de nós é aquilo que consome, aquilo que respira”.
Só que, “em nós, a natureza tem a
qualidade de consciência e de responsabilidade que não tem em relação a outros
seres e, por isso, mais nos responsabiliza”. Ora, se esquecemos esta conexão
fundamental, “as coisas não andam bem e podem ser muito perigosas”. E, convindo
que isto não sucede só nesta pandemia, desenvolve:
“Como se tem visto ao longo da história da
Humanidade, há fenómenos e até catástrofes que não são da nossa responsabilidade
humana, mas outros são. E tudo o que a crise ecológica manifesta, [para o] que
o Papa nos tem alertado tanto, é sinal de que há muita coisa de errado na nossa
relação com a restante natureza.”.
Depois, estabelece o confronto entre a presente pandemia e outras, observando:
“A pandemia é uma epidemia generalizada que
toca o planeta no seu conjunto. Mas em termos de epidemias, não precisamos de
ir lá muito para trás, para a gripe espanhola do princípio do século passado,
ou outras. Elas têm existido, mas nós, na Europa, às vezes, não damos muito
conta disso: o que tem acontecido com o ébola e outras epidemias em África e
noutras partes do mundo? Elas existem! Agora tocam-nos de perto e são tão
generalizadas, porque hoje a mobilidade – a que existia até começarem estas
medidas de confinamento – é de tal ordem que tudo circula muito mais rapidamente.
(…) Mas epidemias e contrastes com a natureza não são só de agora.”.
Admite que seja um teste à
globalização e, sendo esta um bem, por nos tornar mais próximos, o purpurado anota
que postula cuidados redobrados. Se não se entra no avião como há 20 anos,
também tem de haver cuidado no atinente “à preservação da saúde e da não contaminação”.
Quanto à tentação de
atribuir a pandemia a um castigo de Deus, aponta que é “um discurso muito velho, muito mais do que 2000 anos”. E
explica o seu sentido antropológico:
“Desde que os nossos antepassados começaram
a fazer desenhos nas grutas pré-históricas ou riscos nas pedras, já exprimiam
um certo receio sobre o que a divindade pudesse fazer ou não fazer e, por isso,
era importante estar bem com essa divindade. (…) É um sentimento natural,
espontâneo, face a qualquer coisa que nos limita e nos atemoriza: procurar
apoio e tentar que não haja nenhuma reprimenda forte da parte dessa entidade
mais ou menos suposta, imaginária ou real.”.
Assegura que “nós é que nos castigamos a nós próprios”. Na verdade, como
refere, “toda a Bíblia nos diz que Deus cria um mundo bom, mas tudo aquilo que
nos implica nem sempre corre da mesma maneira e pode transtornar não só a nossa
relação com Deus, mas com a criação no seu conjunto”. E sintetiza a visão dos
cristãos nesta matéria afastando as más visões de Deus:
“Somos cristãos e olhamos para Deus como
Jesus nos ensinou a olhar: com tudo o mais que ele herdou e que nele se
completa. Quando olhamos para Deus com os olhos de Jesus, olhamos como um Pai,
que, mesmo na cruz do mundo, não deixa de nos acolher e até de nos ressuscitar.
(…) Nós olhamos para o mundo e olhamos para Deus com os olhos de Jesus Cristo:
filiais em relação a Deus e fraternais em relação aos outros.”.
Quanto à Participação de
Deus na resolução do problema, Dom Manuel sublinha “a que em Jesus Cristo se manifesta”: não a de “um Deus
que está por fora para premiar ou castigar”, mas “que, em Jesus Cristo, assume
o que nós somos, a nossa natureza humana e a reconstrói por dentro”, o que
implica aceitar a vida “de que a cruz e a morte fazem parte”, ou seja, “aceitá-las
como Jesus as assumiu fazendo de tudo isso mais vida”.
Indica o treino que se está a fazer no âmbito duma pastoral
“monástico-internética” por força da pandemia, precisando os termos daquela palavra
composta a começar pela atitude monástica:
“Monástica
é uma atitude que existe desde sempre no cristianismo, e não só no cristianismo,
que nos retém a nós próprios no mais fundo de nós próprios para encontrar aí
outra profundidade e outro lastro para viver. (…) O próprio Jesus tem momentos
monásticos (…): quando se retira, para o deserto (…); nas várias ocasiões em
que os discípulos andam à procura dele e o encontram retirado. Jesus resolve as
coisas absolutamente por dentro, na sua relação com o Pai. E estas
circunstâncias de confinamento (…) desenvolvem essa tal atitude monástica: de
aprofundamento das motivações, de afervoramento da oração, da relação com Deus,
por nós, pelos outros.”.
A seguir, fala da atitude digital
com a utilização da internet e de todos os recursos que os media hoje oferecem para estarmos com as pessoas, o
que tem sido vincado “nas mensagens para os dias mundiais de comunicação dos
sucessivos Papas”. E diz estarem a desenvolver-se realidades que ficarão, “mesmo
quando pudermos voltar à nossa pastoral normal”.
Admitindo que as
experiências têm surgido muito segmentadas, como tudo no início, vinca:
“Os párocos nas suas paróquias, não podem
estar diretamente com os seus paroquianos, mas têm preocupação por eles: as
coisas têm de continuar a andar, a Palavra de Deus tem de continuar a ser
anunciada, os ritos sacramentais continuar a ser celebrados, embora não com o
povo, (…) o acompanhamento das pessoas em tudo o que é sócio-caritativo, quer
sejam instituições ligadas à Igreja ou instituições onde os católicos estejam,
públicas e privadas, nos sistemas de saúde e tudo o mais.”.
Em relação a uma pretensa
centralidade comunicacional da Igreja a nível nacional, opõe que a Igreja não é
nacional, ao invés do que sucede com algumas das outras confissões cristãs.
Refere que “o Papa tem estado
constantemente presente nos media pela força com que se manifesta celebrando
sozinho, mas para uma multidão”. E repara que os bispos, à frente das igrejas
locais, “têm estado presentes nessas redes, quer nas suas dioceses, quer quando
são entrevistados pelos media nacionais e até outros”. Mas, sem confinar a
presença católica à presença do Santo Padre ou à
de cada bispo na sua diocese, destaca “a presença constante dos
católicos nos vários domínios da sociedade, quer pessoalmente, porque estão
presentes em todo o lado, quer da parte dos ministros ordenados que, em cada
comunidade cristã, os estimulam, os impulsionam e acompanham e levam as coisas
por diante”.
Não esquece o que passa no mundo da família, que, neste
confinamento, se descobre como Igreja doméstica, o que imprime densidade à vivência
familiar, que permanecerá no futuro.
Interpelado
onde está o centro da Igreja quando emergem tantas formas de participação, diz
que “o centro é policêntrico: está em
cada cristão, em cada cristã onde o Evangelho se pratique”, mas que há
posições-chave na Igreja “para articular, organizar, para que nada se disperse,
se conjugue e seja espiritualmente alimentado”. Assim, a maior parte dos “bispos,
sacerdotes, diáconos, estão com uma contenção enorme do que gostariam de fazer
na linha do que têm feito, no sentido de estar com as pessoas” e só não o fazem
para dar o exemplo de contenção.
Em relação ao pós-pandemia,
fala da “nova normalidade” porque
algumas medidas de proteção terão de permanecer. Porém, enunciando a doutrina,
alimenta a esperança:
“Nós acreditamos na encarnação: Deus encarna
na pessoa de Jesus, hoje ressuscitada, que está presente no meio de nós com
muitos sinais e sobretudo com sinais sacramentais. Mas os sinais sacramentais
são coisas que se veem e com pessoas que ali estão. Portanto, tudo isso
voltará.”.
Pensa que a forma de
pertença digital permanecerá em sistema de complementaridade, pois “há muita população que não pode sair de casa, que
habitualmente já não participa”.
Tendo a suspensão da
celebração comunitária das Missas causado discordância também da parte de
bispos e teólogos, o entrevistador pergunta pelas consequências na Igreja e no
atual pontificado, ao que Manuel Clemente responde:
“Tudo isto tem um resultado muito positivo
no aprofundamento daquelas dimensões monástico-mediáticas de que falava.
Aprofundou o porquê da Igreja no seu sentido mais íntimo e encontrou novas
maneiras de manter esta convivência que a Igreja também é e continuará a ser.”.
Não receia que este modo de
participação excecional se transforme em ordinário, apontando para a
experiência humana, que mantém a correspondência
tradicional e a atual, nada nos dispensando de nos encontrarmos, pois a
relação, “quando é verdadeira, quer mais, quer ver”.
Questionado se, nestas
circunstâncias, a boa intenção da pessoa basta para a reconciliação com Deus,
para a participação na comunhão, sustenta que “temos de ver as coisas do lado de Deus” e que Ele vê os corações e
sabe o que há no coração de cada um”. E chama a atenção para o exemplo de
Jesus: “não perdoava em geral, mas tinha encontros de reconciliação”. Assim, “não
podemos refluir, para a subjetividade de cada um, estas coisas que Deus quer
connosco como manteve em Jesus Cristo em termos de relação verdadeira”, sendo
possível.
À sugestão de que a
reconciliação é sempre possível, conta:
“Os cristãos antigos, quando, para aderir ao
cristianismo era preciso quase uma rutura com os usos e costumes, faziam
aquelas longas preparações e os catecumenatos prolongados, muitos deles morriam
antes de serem batizados, porque havia uma perseguição. Em qualquer imprevisto
falava-se de batismo de desejo, como agora se fala de comunhão
espiritual.”.
Recorda que, nestes 2000 anos, já cristandades estiveram privadas da vida
sacramental habitual durante séculos. No Japão, entre meados do século XVII e
meados do século XIX, os ‘cristãos ocultos’, sem qualquer sacerdote, “batizavam
os filhos, transmitiam a doutrina e sobreviveram 200 anos, tal como na Coreia
ou Vietname, onde aparecia um sacerdote, que ia das Filipinas, e, se era bispo
fazia, ordenava novos sacerdotes se era bispo, ou como nas guerras civis
africanas. E conclui que o confinamento não é inédito na vida da Igreja”. E as cristandades
prevaleceram.
***
Por fim, pronuncia-se sobre
as consequências sociais da pandemia, começando por dizer:
“Tudo aquilo que pode e deve ser feito, por
quem gere o bem comum, quer a nível do nosso país quer a nível da Europa, tem
mesmo de ser feito. (…) Ou fazemos um apoio forte a estas economias que estão
tão abaladas ou não há Europa que chegue nem que sobre.”.
Depois, vem a responsabilidade e a cidadania, devendo o mundo empresarial
manter os postos de trabalho, recorrendo ao layoff ou a outras alternativas,
mantendo a base humana que garanta a empresa. Regista que essa preocupação
existe. Defende que iniciativas deste género, quer por parte de entidades
públicas nacionais ou europeias, quer por parte de entidades privadas e do
setor social, são fundamentais. E sustenta que tem sido belo e importante
verificar que essa preocupação existe. Com efeito, “a subsistência das famílias
é um problema grande”.
Porém, como a pandemia atinge a saúde física das pessoas, mas também a
mental e económica, é de considerar que o confinamento das pessoas, que não têm
“vocação monástica”, requer “uma adaptação mental de grande agilidade” e,
depois, “o sustento, a vida, o mundo das escolas, das empresas”. Aí, há muitas organizações que dependem da Igreja
Católica e atitudes pessoais concretas, tomando-se decisões “com risco e
com responsabilidade e apelando à responsabilidade de outras pessoas que estão nessas
comunidades”.
Mais disse que, no
Patriarcado, há toda a preocupação no sentido de os postos de trabalho não
serem extintos em organizações que dependem da Igreja Católica e também no da subsistência dessas organizações. Concorda com a asserção do Bispo de
Santarém e presidente da Comissão Episcopal da Pastoral social de que “chegou o
momento de ir às reservas e partilhá-las” e assegura que “há muita gente
a ir às reservas”, lembrando o que tiveram de fazer as Cáritas diocesanas como
a Cáritas Portuguesas, a que o confinamento subtraiu receitas significativas,
mas emergindo uma nova solidariedade de base, que deve “ser devidamente
canalizada para chegar às necessidades concretas, definidas e com a melhor
resposta”.
***
No fim do mandato de
presidente da Conferência Episcopal Portuguesa (CEP), recorda que, não podendo ser antes, a assembleia
plenária, que agora também é eletiva, está marcada para junho, pois os
titulares dos órgãos da CEP terminariam os mandatos em abril e é preciso que se
façam as eleições para estes órgãos, que apoiam as dioceses, para garantia do
trabalho no futuro.
Dá como “muito positiva” a
sua presidência (terminou o
anterior mandato e cumpriu dois inteiros), pelo que a
CEP deve ser: “uma possibilidade de os vários bispos diocesanos de um
determinado país se encontrarem, aprofundarem temáticas dos diversos campos da
pastoral, da relação com a sociedade”, o que se faz com encontro,
“estreitamento de laços” e orientações que ajudam muito “a seguir em cada uma
das dioceses”. E refere coisas que têm de ser tratadas conjuntamente:
“O que diz respeito à liturgia, à catequese,
ao campo social, da cultura, ecumenismo. São grandes linhas que tratamos em
comum e depois continuamos, cada um na sua diocese, dentro da base comum de
debate, perspetivação e fazendo alguns documentos que partilhamos com os
cristãos e a sociedade numa ligação constante com o centro da Igreja Católica,
os vários serviços que a Igreja mantém em Roma.”.
Sobre a possível maior
autonomia das Conferências Episcopais preconizada pelo Papa Francisco,
dando-lhes não só a possibilidade de consulta, mas também de governo, revela
que já vai acontecendo, relevando a importância de se manter “esta ligação do que se faz entre as dioceses de um
país e o que se faz entre as dioceses de todo o mundo à volta do centro romano”.
Em vez da sugerida criação de instâncias intermédias, opta pela “instância
conjunta” e justifica:
“Temos a referência evangélica e da tradição
da Igreja, onde temos o grupo dos apóstolos e Pedro, onde vemos a sucessão
episcopal e do bispo de Roma. Não há (…) nenhuma instância que se sobreponha ao
que se passa nas dioceses e no conjunto das dioceses. Não é piramidal. É algo
de concêntrico.”.
Tendo as conferências episcopais surgido em meados do século XX e após o
Vaticano II como órgãos de convivência e cooperação dos episcopados num país ou
numa região, crê que “essa referência evangélica ao que acontecia entre Pedro e
demais apóstolos é suficiente para a vida da Igreja e não obstacula que, quer a
nível da Igreja universal quer particular, o Evangelho progrida e as coisas se
vão resolvendo, nesta cooperação que vamos cimentando e que é efetiva e afetiva”,
pois, “se não for afetiva, também não é efetiva”.
***
Que Dom Manuel tem razão em garantir que nós também somos natureza é
secundado pela ecologia integral preconizada pelo Papa Francisco, segundo o
qual o atentado contra a Casa Comum atinge os mais pobres e pela “lex orandi, lex credendi”, nos termos da
qual o sacerdote (ou o diácono), ao
misturar água com o vinho no cálice, diz: “Pelo
mistério desta água e deste vinho, sejamos participantes da divindade d’Aquele
que assumiu a nossa humanidade” (algumas versões dizem: “natureza
humana”). E a doutrina, falando da única
pessoa de Cristo, diz, contra o monofisismo, que Ele tem duas naturezas: a
humana e a divina. Por isso, não vale cuidar da natureza sem cuidar dos homens,
cujo dom maior é a vida, com a dignidade que lhe é inerente.
2020.04.20 –
Louro de Carvalho
Sem comentários:
Enviar um comentário