segunda-feira, 20 de abril de 2020

Não podemos esquecer-nos de que também somos natureza


É a advertência que se infere das palavras do Cardeal Patriarca de Lisboa em entrevista à Ecclesia no passado dia 19 de abril, em que, falando nas novas possibilidades e desafios despertados pela covid-19, alerta para as “más visões de Deus” por causa do novo coronavírus.
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Confrontado com o provérbio “Deus perdoa sempre, os homens às vezes, a natureza nunca”, citado pelo Papa Francisco em entrevista recente, em que se referiu às causas desta pandemia, Dom Manel Clemente vinca o facto de nós sermos “natureza personalizada” em cada ser humano, pelo que não nos podemos excluir da natureza. Com efeito, “cada um de nós é aquilo que consome, aquilo que respira”. Só que, “em nós, a natureza tem a qualidade de consciência e de responsabilidade que não tem em relação a outros seres e, por isso, mais nos responsabiliza”. Ora, se esquecemos esta conexão fundamental, “as coisas não andam bem e podem ser muito perigosas”. E, convindo que isto não sucede só nesta pandemia, desenvolve:
Como se tem visto ao longo da história da Humanidade, há fenómenos e até catástrofes que não são da nossa responsabilidade humana, mas outros são. E tudo o que a crise ecológica manifesta, [para o] que o Papa nos tem alertado tanto, é sinal de que há muita coisa de errado na nossa relação com a restante natureza.”.
Depois, estabelece o confronto entre a presente pandemia e outras, observando:
A pandemia é uma epidemia generalizada que toca o planeta no seu conjunto. Mas em termos de epidemias, não precisamos de ir lá muito para trás, para a gripe espanhola do princípio do século passado, ou outras. Elas têm existido, mas nós, na Europa, às vezes, não damos muito conta disso: o que tem acontecido com o ébola e outras epidemias em África e noutras partes do mundo? Elas existem! Agora tocam-nos de perto e são tão generalizadas, porque hoje a mobilidade – a que existia até começarem estas medidas de confinamento – é de tal ordem que tudo circula muito mais rapidamente. (…) Mas epidemias e contrastes com a natureza não são só de agora.”.
Admite que seja um teste à globalização e, sendo esta um bem, por nos tornar mais próximos, o purpurado anota que postula cuidados redobrados. Se não se entra no avião como há 20 anos, também tem de haver cuidado no atinente “à preservação da saúde e da não contaminação”.
Quanto à tentação de atribuir a pandemia a um castigo de Deus, aponta que é “um discurso muito velho, muito mais do que 2000 anos”. E explica o seu sentido antropológico:
Desde que os nossos antepassados começaram a fazer desenhos nas grutas pré-históricas ou riscos nas pedras, já exprimiam um certo receio sobre o que a divindade pudesse fazer ou não fazer e, por isso, era importante estar bem com essa divindade. (…) É um sentimento natural, espontâneo, face a qualquer coisa que nos limita e nos atemoriza: procurar apoio e tentar que não haja nenhuma reprimenda forte da parte dessa entidade mais ou menos suposta, imaginária ou real.”.
Assegura que “nós é que nos castigamos a nós próprios”. Na verdade, como refere, “toda a Bíblia nos diz que Deus cria um mundo bom, mas tudo aquilo que nos implica nem sempre corre da mesma maneira e pode transtornar não só a nossa relação com Deus, mas com a criação no seu conjunto”. E sintetiza a visão dos cristãos nesta matéria afastando as más visões de Deus:
Somos cristãos e olhamos para Deus como Jesus nos ensinou a olhar: com tudo o mais que ele herdou e que nele se completa. Quando olhamos para Deus com os olhos de Jesus, olhamos como um Pai, que, mesmo na cruz do mundo, não deixa de nos acolher e até de nos ressuscitar. (…) Nós olhamos para o mundo e olhamos para Deus com os olhos de Jesus Cristo: filiais em relação a Deus e fraternais em relação aos outros.”.
Quanto à Participação de Deus na resolução do problema, Dom Manuel sublinha “a que em Jesus Cristo se manifesta”: não a de “um Deus que está por fora para premiar ou castigar”, mas “que, em Jesus Cristo, assume o que nós somos, a nossa natureza humana e a reconstrói por dentro”, o que implica aceitar a vida “de que a cruz e a morte fazem parte”, ou seja, “aceitá-las como Jesus as assumiu fazendo de tudo isso mais vida”.
Indica o treino que se está a fazer no âmbito duma pastoral “monástico-internética” por força da pandemia, precisando os termos daquela palavra composta a começar pela atitude monástica: 
Monástica é uma atitude que existe desde sempre no cristianismo, e não só no cristianismo, que nos retém a nós próprios no mais fundo de nós próprios para encontrar aí outra profundidade e outro lastro para viver. (…) O próprio Jesus tem momentos monásticos (…): quando se retira, para o deserto (…); nas várias ocasiões em que os discípulos andam à procura dele e o encontram retirado. Jesus resolve as coisas absolutamente por dentro, na sua relação com o Pai. E estas circunstâncias de confinamento (…) desenvolvem essa tal atitude monástica: de aprofundamento das motivações, de afervoramento da oração, da relação com Deus, por nós, pelos outros.”.
A seguir, fala da atitude digital com a utilização da internet e de todos os recursos que os media hoje oferecem para estarmos com as pessoas, o que tem sido vincado “nas mensagens para os dias mundiais de comunicação dos sucessivos Papas”. E diz estarem a desenvolver-se realidades que ficarão, “mesmo quando pudermos voltar à nossa pastoral normal”. 
Admitindo que as experiências têm surgido muito segmentadas, como tudo no início, vinca:
Os párocos nas suas paróquias, não podem estar diretamente com os seus paroquianos, mas têm preocupação por eles: as coisas têm de continuar a andar, a Palavra de Deus tem de continuar a ser anunciada, os ritos sacramentais continuar a ser celebrados, embora não com o povo, (…) o acompanhamento das pessoas em tudo o que é sócio-caritativo, quer sejam instituições ligadas à Igreja ou instituições onde os católicos estejam, públicas e privadas, nos sistemas de saúde e tudo o mais.”.
Em relação a uma pretensa centralidade comunicacional da Igreja a nível nacional, opõe que a Igreja não é nacional, ao invés do que sucede com algumas das outras confissões cristãs. Refere que “o Papa tem estado constantemente presente nos media pela força com que se manifesta celebrando sozinho, mas para uma multidão”. E repara que os bispos, à frente das igrejas locais, “têm estado presentes nessas redes, quer nas suas dioceses, quer quando são entrevistados pelos media nacionais e até outros”. Mas, sem confinar a presença católica à presença do Santo Padre ou à de cada bispo na sua diocese, destaca “a presença constante dos católicos nos vários domínios da sociedade, quer pessoalmente, porque estão presentes em todo o lado, quer da parte dos ministros ordenados que, em cada comunidade cristã, os estimulam, os impulsionam e acompanham e levam as coisas por diante”.
Não esquece o que passa no mundo da família, que, neste confinamento, se descobre como Igreja doméstica, o que imprime densidade à vivência familiar, que permanecerá no futuro.
Interpelado onde está o centro da Igreja quando emergem tantas formas de participação, diz que “o centro é policêntrico: está em cada cristão, em cada cristã onde o Evangelho se pratique”, mas que há posições-chave na Igreja “para articular, organizar, para que nada se disperse, se conjugue e seja espiritualmente alimentado”. Assim, a maior parte dos “bispos, sacerdotes, diáconos, estão com uma contenção enorme do que gostariam de fazer na linha do que têm feito, no sentido de estar com as pessoas” e só não o fazem para dar o exemplo de contenção.
Em relação ao pós-pandemia, fala da “nova normalidade” porque algumas medidas de proteção terão de permanecer. Porém, enunciando a doutrina, alimenta a esperança:
Nós acreditamos na encarnação: Deus encarna na pessoa de Jesus, hoje ressuscitada, que está presente no meio de nós com muitos sinais e sobretudo com sinais sacramentais. Mas os sinais sacramentais são coisas que se veem e com pessoas que ali estão. Portanto, tudo isso voltará.”.
Pensa que a forma de pertença digital permanecerá em sistema de complementaridade, pois “há muita população que não pode sair de casa, que habitualmente já não participa”.
Tendo a suspensão da celebração comunitária das Missas causado discordância também da parte de bispos e teólogos, o entrevistador pergunta pelas consequências na Igreja e no atual pontificado, ao que Manuel Clemente responde:  
Tudo isto tem um resultado muito positivo no aprofundamento daquelas dimensões monástico-mediáticas de que falava. Aprofundou o porquê da Igreja no seu sentido mais íntimo e encontrou novas maneiras de manter esta convivência que a Igreja também é e continuará a ser.”.
Não receia que este modo de participação excecional se transforme em ordinário, apontando para a experiência humana, que mantém a correspondência tradicional e a atual, nada nos dispensando de nos encontrarmos, pois a relação, “quando é verdadeira, quer mais, quer ver”.
Questionado se, nestas circunstâncias, a boa intenção da pessoa basta para a reconciliação com Deus, para a participação na comunhão, sustenta que “temos de ver as coisas do lado de Deus” e que Ele vê os corações e sabe o que há no coração de cada um”. E chama a atenção para o exemplo de Jesus: “não perdoava em geral, mas tinha encontros de reconciliação”. Assim, “não podemos refluir, para a subjetividade de cada um, estas coisas que Deus quer connosco como manteve em Jesus Cristo em termos de relação verdadeira”, sendo possível.
À sugestão de que a reconciliação é sempre possível, conta: 
Os cristãos antigos, quando, para aderir ao cristianismo era preciso quase uma rutura com os usos e costumes, faziam aquelas longas preparações e os catecumenatos prolongados, muitos deles morriam antes de serem batizados, porque havia uma perseguição. Em qualquer imprevisto falava-se de batismo de desejo, como agora se fala de comunhão espiritual.”.
Recorda que, nestes 2000 anos, já cristandades estiveram privadas da vida sacramental habitual durante séculos. No Japão, entre meados do século XVII e meados do século XIX, os ‘cristãos ocultos’, sem qualquer sacerdote, “batizavam os filhos, transmitiam a doutrina e sobreviveram 200 anos, tal como na Coreia ou Vietname, onde aparecia um sacerdote, que ia das Filipinas, e, se era bispo fazia, ordenava novos sacerdotes se era bispo, ou como nas guerras civis africanas. E conclui que o confinamento não é inédito na vida da Igreja”. E as cristandades prevaleceram.
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Por fim, pronuncia-se sobre as consequências sociais da pandemia, começando por dizer:
Tudo aquilo que pode e deve ser feito, por quem gere o bem comum, quer a nível do nosso país quer a nível da Europa, tem mesmo de ser feito. (…) Ou fazemos um apoio forte a estas economias que estão tão abaladas ou não há Europa que chegue nem que sobre.”.
Depois, vem a responsabilidade e a cidadania, devendo o mundo empresarial manter os postos de trabalho, recorrendo ao layoff ou a outras alternativas, mantendo a base humana que garanta a empresa. Regista que essa preocupação existe. Defende que iniciativas deste género, quer por parte de entidades públicas nacionais ou europeias, quer por parte de entidades privadas e do setor social, são fundamentais. E sustenta que tem sido belo e importante verificar que essa preocupação existe. Com efeito, “a subsistência das famílias é um problema grande”.
Porém, como a pandemia atinge a saúde física das pessoas, mas também a mental e económica, é de considerar que o confinamento das pessoas, que não têm “vocação monástica”, requer “uma  adaptação mental de grande agilidade” e, depois, “o sustento, a vida, o mundo das escolas, das empresas”. Aí, há muitas organizações que dependem da Igreja Católica e atitudes pessoais concretas, tomando-se decisões “com risco e com responsabilidade e apelando à responsabilidade de outras pessoas que estão nessas comunidades”.
Mais disse que, no Patriarcado, há toda a preocupação no sentido de os postos de trabalho não serem extintos em organizações que dependem da Igreja Católica e também no da subsistência dessas organizações. Concorda com a asserção do Bispo de Santarém e presidente da Comissão Episcopal da Pastoral social de que “chegou o momento de ir às reservas e partilhá-las” e assegura que “há muita gente a ir às reservas”, lembrando o que tiveram de fazer as Cáritas diocesanas como a Cáritas Portuguesas, a que o confinamento subtraiu receitas significativas, mas emergindo uma nova solidariedade de base, que deve “ser devidamente canalizada para chegar às necessidades concretas, definidas e com a melhor resposta”.
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No fim do mandato de presidente da Conferência Episcopal Portuguesa (CEP), recorda que, não podendo ser antes, a assembleia plenária, que agora também é eletiva, está marcada para junho, pois os titulares dos órgãos da CEP terminariam os mandatos em abril e é preciso que se façam as eleições para estes órgãos, que apoiam as dioceses, para garantia do trabalho no futuro.
Dá como “muito positiva” a sua presidência (terminou o anterior mandato e cumpriu dois inteiros), pelo que a CEP deve ser: “uma possibilidade de os vários bispos diocesanos de um determinado país se encontrarem, aprofundarem temáticas dos diversos campos da pastoral, da relação com a sociedade”, o que se faz com encontro, “estreitamento de laços” e orientações que ajudam muito “a seguir em cada uma das dioceses”. E refere coisas que têm de ser tratadas conjuntamente:
O que diz respeito à liturgia, à catequese, ao campo social, da cultura, ecumenismo. São grandes linhas que tratamos em comum e depois continuamos, cada um na sua diocese, dentro da base comum de debate, perspetivação e fazendo alguns documentos que partilhamos com os cristãos e a sociedade numa ligação constante com o centro da Igreja Católica, os vários serviços que a Igreja mantém em Roma.”.
Sobre a possível maior autonomia das Conferências Episcopais preconizada pelo Papa Francisco, dando-lhes não só a possibilidade de consulta, mas também de governo, revela que já vai acontecendo, relevando a importância de se manter “esta ligação do que se faz entre as dioceses de um país e o que se faz entre as dioceses de todo o mundo à volta do centro romano”. Em vez da sugerida criação de instâncias intermédias, opta pela “instância conjunta” e justifica:
Temos a referência evangélica e da tradição da Igreja, onde temos o grupo dos apóstolos e Pedro, onde vemos a sucessão episcopal e do bispo de Roma. Não há (…) nenhuma instância que se sobreponha ao que se passa nas dioceses e no conjunto das dioceses. Não é piramidal. É algo de concêntrico.”.
Tendo as conferências episcopais surgido em meados do século XX e após o Vaticano II como órgãos de convivência e cooperação dos episcopados num país ou numa região, crê que “essa referência evangélica ao que acontecia entre Pedro e demais apóstolos é suficiente para a vida da Igreja e não obstacula que, quer a nível da Igreja universal quer particular, o Evangelho progrida e as coisas se vão resolvendo, nesta cooperação que vamos cimentando e que é efetiva e afetiva”, pois, “se não for afetiva, também não é efetiva”.
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Que Dom Manuel tem razão em garantir que nós também somos natureza é secundado pela ecologia integral preconizada pelo Papa Francisco, segundo o qual o atentado contra a Casa Comum atinge os mais pobres e pela “lex orandi, lex credendi”, nos termos da qual o sacerdote (ou o diácono), ao misturar água com o vinho no cálice, diz: “Pelo mistério desta água e deste vinho, sejamos participantes da divindade d’Aquele que assumiu a nossa humanidade(algumas versões dizem: “natureza humana”). E a doutrina, falando da única pessoa de Cristo, diz, contra o monofisismo, que Ele tem duas naturezas: a humana e a divina. Por isso, não vale cuidar da natureza sem cuidar dos homens, cujo dom maior é a vida, com a dignidade que lhe é inerente.
2020.04.20 – Louro de Carvalho

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