O segundo
domingo da Páscoa é tradicionalmente chamado Domingo in albis, por ser o dia em que os neófitos que tinham recebido o
Batismo na Vigília Pascal retornavam – já regenerados – à vida deste mundo,
participando naquele “Como o Pai me
enviou, também Eu vos envio” (Jo
20,21). E as Igrejas orientais têm este como o domingo de Tomé, mercê do
significado que o encontro de Tomé com Jesus na comunidade representa para o
percurso da fé.
Na tarde do dia da Ressurreição, reunidos os discípulos no
Cenáculo, com as portas trancadas (Jo 20,19: “tôn thyrôn kekleisménôn”)
– sinal da ausência do Mestre e da
escravidão a que os votou o medo (dos judeus e de si próprios) –, Jesus entra, põe-se no meio deles e oferece-lhes a
Paz (id et ib).
O Cenáculo,
o palco onde, tendo ceado com o Senhor, os discípulos receberam o serviço do
Senhor, manifesto e simbolizado no lava-pés, e o novo e profundo mandamento do
amor recíproco, agora é o recinto do encontro do Ressuscitado com os seguidores
mais diretos.
Figura como
o espaço cedido às grandes manifestações do divino, onde o Filho do Homem concretizou
de maneira sucinta toda a sua missão: eucaristia-sacrifício-banquete,
sacerdócio ministerial, serviço, mandamento novo, comunicação do Espírito Santo,
envio apostólico, realização do perdão. E é também o locus do esvaziamento e humildade, o lugar da celebração da
Eucaristia, onde Jesus Se oferece e é oferecido. Mais: tornou-se ambiente
sagrado, pois Jesus apareceu Ressuscitado ali, enquanto os apóstolos rezavam,
como se derramará o Espírito Santo quando os apóstolos ali estiverem no
Pentecostes em oração com Maria e as outras santas mulheres e alguns discípulos,
depois de terem reconstituído o colégio apostólico com a eleição de Matias – a comunidade
cristã em embrião (cf At 1,12-26; 2,1-12).
Jesus
atravessa as barreiras externas (as portas) e internas (a dúvida, a
incerteza e o medo) daquele
ambiente. Ao invés do que sucedera com as outras miróforas, cujas palavras pareciam
aos apóstolos um desvario, depois da ida de Pedro e João ao sepulcro, a razão e
a fé têm provas do que Maria Madalena anunciava efusivamente: “Jesus Ressuscitou!”. Mas agora melhor. Jesus
apresenta-Se com os sinais da Paixão: são nítidas as marcas das perfurações no
seu corpo, para desfazer qualquer dúvida sobre a sua identidade: Ele é o que
fora crucificado e não outro. Transmitindo os dons pascais compendiados na paz,
reconciliação e fé, aos reunidos em seu nome, transforma-os em homens novos,
homens pascais – uma nova identidade, um peculiar modo de ser e de agir pela
força e com o espírito da Ressurreição. E, depois de pronunciar a fórmula do
envio, “Como o Pai me enviou, também Eu
vos envio”, soprou sobre eles dizendo:
“Recebei (“lábete”) o Espírito Santo. A quem perdoardes (“aphête”) os pecados, ser-lhe-ão perdoados (“aphêontai”); a quem os retiverdes perdoardes, serão retidos” (Jo 20, 22-23).
“Apéstalken” (enviou), no pretérito perfeito do indicativo, significa ação passada
com efeitos no presente e para sempre; “pémpô” (envio), no presente do indicativo, significa a abrangência temporal
por todo o sempre a partir daquele momento. Não são, apenas aqueles que são enviados,
mas todos os que são chamados a testemunhar de forma eminente a Ressurreição.
Jesus dá-lhes
o dom de perdoar os pecados, que brota das chagas das suas mãos e dos seus pés
e, sobretudo, do lado perfurado, donde jorra a Igreja e os sacramentos da
Igreja. Por isso, “A paz convosco!”, mais que uma saudação, é a síntese da obra
redentora do Ressuscitado.
Pela Cruz, anulou
a inimizade e anunciou a paz aos que estavam perto e aos que estavam longe. Hoje, o novo
Cenáculo é a Igreja, onde o Senhor se dá na forma de pão e vinho, seu Corpo e
Sangue oferecidos, no Altar, a pedra removida da Ressurreição. Outrora os seus
seguidores se reuniam no Cenáculo por medo; agora reúnem-se para manifestar a alegria
da Nova Páscoa.
É São Cipriano
de Cartago que nos ensina que a Igreja é o ambiente onde a Celebração Eucarística revive a
Ressurreição de Cristo no sacrifício incruento oferecido pelas mãos do
sacerdote. Por isso, os cristãos reunidos, no Novo Cenáculo, no mesmo dia
da Ressurreição de Cristo, isto é, o domingo, celebram juntos os Mistérios da
Morte e Ressurreição do Filho de Deus para, ante o Mistério da Ressurreição, se
transformarem em novas criaturas.
E a Igreja
Bizantina celebra a Ressurreição do Senhor, única e exclusivamente aos domingos
pela manhã, exceto nas grandes festas, para testemunhar aos fiéis que Jesus
Ressuscitado é o “Kyrios” ou “Dominus” (Senhor) e o domingo, o “dies
dominicus” (dia do Senhor).
Eusébio de Cesareia
diz que os filhos da Nova Aliança celebram, a cada domingo, a Páscoa e, em todo
o tempo, são saciados com o Corpo Ressuscitado do Salvador e o seu Sangue. Esta
celebração faz-se com a comunidade de fiéis que, juntos confirmam a sua fé em
Deus e buscam n’ Ele, através da Eucaristia, a vida Nova, a força para vencer o
pecado, símbolo da morte. E, quando não conseguem contemplar o Ressuscitado, há
a dúvida, a incerteza, os questionamentos oriundos do coração alicerçado nas
raízes da velha criação. Foi o que sucedeu no Cenáculo, com Tomé, conhecido
como o “Dídimo”.
Muitos referem-se a Tomé como o que duvidou, sem considerarem
a profundidade da sua dúvida. Não é a dos judeus que gritavam: “Desça da cruz e acreditaremos” (Mt 27,42). E não é a dos nossos contemporâneos, quando dizem: “Se Deus
existe, que Ele se mostre a todos e a creremos n’Ele”. Os escribas e fariseus
sabiam dos milagres de Cristo e sabiam quem era Jesus, mas, confrontados com
Divino, encastram-se na blasfémia. Os fariseus de hoje aprofundam as blasfémias
quando, face a face com o Ressuscitado, não se convencem, mesmo ante o milagre.
A descrença advinda da fraqueza humana, incapaz de abarcar a
magnitude do milagre, reflete-se nas palavras de Tomé: “Se eu não vir o sinal dos pregos nas mãos e colocar o meu dedo onde
estavam os pregos e não puser a minha mão no seu lado, não acreditarei (Jo 20,25).
A dúvida dos discípulos não surpreende. Eram testemunhas do
maior milagre da história da criação. Mas, depois da detenção do Mestre, esqueceram
as profecias sobre o que estava por vir.
Alguns comentários
homiléticos deste dia salientam que o Ressuscitado surge na comunidade. A única
que terá contemplado o Ressuscitado fora do contexto da comunidade terá sido
Maria Madalena, mas a aparição do Ressuscitado ocorreu em prol da comunidade: “Vai ter com meus irmãos …” (Jo 20,17). E Ela correu a dizer: “Vi o Senhor” (Jo 20,18).
Tomé, porém,
estando ausente, não testemunhou a Nova Páscoa. A comunidade reunida viu o
Senhor Ressuscitado no Cenáculo e comunicou a Tomé a grande notícia, mas não foi
o suficiente para que ele cresse na voz da Igreja. Era necessário que os seus
olhos vissem e os seus dedos e as suas mãos tocassem as chagas. E o
Ressuscitado, na sua grande misericórdia, contemporizou. Não foi por acaso que São
João Paulo, meditando o episódio que releva a figura de Tomé agregou a este
domingo a festa da Divina Misericórdia. E Francisco, na homilia da canonização
dos Papas Wojtyła e Roncalli,
enfatizou a misericórdia do crucificado-ressuscitado pela apresentação das
chagas a Tomé – que estes pontífices viram e tocaram – para que visse e tocasse
a fim de sair da incredulidade e passar a ser crente (cf homilia
de 27.04.2014). Como Tomé,
muitos hoje exigem as mesmas condições para crer. Nem mesmo o fundamental (a
Ressurreição) está isento
de dúvidas. Prefere-se mesclar esta verdade de fé com outras doutrinas e
crenças que parecem mais aceitáveis pela razão e agradáveis aos sentidos. É,
pois, necessário purificar o conteúdo da nossa fé cristã.
O
Ressuscitado aparece novamente, mas com Tomé presente, para que não duvide de
que são de facto aquelas as mãos que acolhiam os pecadores e protegiam as
crianças, que abençoavam os alimentos e retiravam os espíritos impuros. São aqueles
os pés do Messias itinerante, o Ungido sem endereço fixo, o Missionário
andarilho. São carne e ossos da humanidade aceite por amor, mas está ali
ressuscitado a elevar a dignidade humana aos patamares cobiçados pelos anjos. O
Senhor apresenta-se no meio de todos, na comunidade não dedicando a Tomé uma
aparição exclusiva, ensinando que, para quem tem pouca fé, a ajuda da
comunidade reunida é essencial.
A insegurança
e o medo nascem dos momentos em que a presença de Deus é encoberta. Basta
descobri-la para nos tornarmos seguros como Tomé depois da aparição do
Ressuscitado. De facto, o apóstolo, que vulgarmente é referido como o homem da
dúvida e da renitência, caído aos pés de Jesus, proferiu o ato de fé mais profundo
que até ali se ouviu. “Meu Senhor e meu
Deus” é a confissão mais simples e completa da identidade humano-divina de
Jesus. Este homem é verdadeiro Deus, o Deus e Senhor de todos e de cada um.
Quem crê na Ressurreição
de Cristo e vive sob os seus auspícios é uma nova criação, pois o seu interior
é transformado ficando pessoa diferente. Sucedeu assim com Pedro, Madalena e
Tomé. Antes da Ressurreição, Pedro negou Jesus; depois, porfiando amar o Senhor,
sofre todas as consequências deste amor: de temeroso homem, torna-se o apascentador
das ovelhas de Cristo, missionário, evangelizador e mártir. Madalena,
anteriormente, amedrontada chorava a perda do Mestre; agora torna-se a evangelizadora
por excelência, a propagadora pioneira da Boa Nova. Tomé, da boca que proferia
palavras de descrença e dúvidas, verbaliza a mais bela exclamação de
reconhecimento perante o Jesus Ressuscitado, que o torna o homem arrojado,
pois, de acordo com a Tradição da Igreja, foi pregar
o Evangelho a um dos mais distantes e difíceis lugares do mundo antigo, a
Índia, onde foi torturado e morto por Cristo (trespassado
por sete lanças).
Foi preciso
ver para acreditar. Tomé teve sorte em ver o que é verdadeiro, quando hoje
vemos coisas que, por montagem e outros efeitos especiais, não são verdadeiras
e podem levar-nos a crer no ilusório. Porém, era melhor ter crido sem necessidade
de ver. A sua dúvida desafiante resulta de não ter sido suficiente – talvez por
limitação sua, como a de muitos de nós – a experiência que tinha de Jesus. Com
efeito, como preconizava hoje o Padre Alberto Gomes, pároco da Portela, para
crer, não é preciso ver, mas é preciso conhecer e experienciar Jesus. E
experiencia-se Jesus na comunidade, bem como – e, nestes tempos, isso é mais
evidente – em quem sofre e em quem serve, em quem está doente, limitado,
sozinho, pobre e em quem toma o cuidado de recriar a ajuda, a proximidade, a
quebra, ao menos virtual, do isolamento, sem ferir o cumprimento das regras. A aparição
do Ressuscitado surge como um bom suplemento à experienciação de Jesus por parte
do apóstolo cujo percurso de fé foi um pouco mais moroso.
É urgente revisitar
os primeiros cristãos: assíduos ao ensino dos apóstolos, união fraterna, fração
do pão e orações. Possuíam tudo em comum e distribuíam conforme as necessidades
de cada um. Iam ao Templo e celebravam em suas casas. E aumentava cada vez mais
o número dos crentes. Congraçavam-se a comunidade e a alegria da Ressurreição
com a simplicidade de vida.
2020.04.19 –
Louro de Carvalho
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