quarta-feira, 1 de abril de 2020

Júnia, uma apóstola ou, pelo menos, com dignidade apostólica


Depois de a Igreja Católica ter reconhecido, na esteira de Tomás de Aquino, Maria Madalena como a “apóstola dos apóstolos”, é de pensar no reconhecimento de Júnia como apóstola, atendo-nos ao v 7 do capítulo 16 da Carta de Paulo aos Romanos, que reza:   
Saudai Andrónico e Júnia, meus concidadãos e meus companheiros de prisão, que tão notáveis são entre os apóstolos e que, inclusivamente, se tornaram cristãos antes de mim”.
A Bíblia Sagrada, dos Capuchinhos apresenta uma nota, que diz, entre outras coisas:
Que Paulo conheça tantos cristãos em Roma, aonde ainda não fora, explica-se com a expulsão a que foram sujeitos pelo imperador Cláudio, no ano 49. Foi o caso de Prisca [ou Priscila] e seu marido Áquila (v 3-5), que Paulo encontrou em Corinto e Éfeso (…). As outras pessoas referidas pertenciam às comunidades cristãs, reunidas em diversas casas (vv 5,14.15): ao lado de homens, há muitas mulheres com atividades na Igreja (…), uma até com dignidade apostólica (v 7, lendo-se Júnia, em vez de Júnias, preferido por alguns manuscritos); alguns nomes são típicos de escravos (vv 12.14.15); de algumas pessoas é referida a origem judaica (vv 7.11.21). Todos formam “um só em Cristo” (Gl 3,28).”.
Frederico Lourenço, referindo-se ao versículo em referência, explica sinteticamente a questão:
Andrónico e Júnia: em rigor, a forma correta em português do nome ‘Andronikos’, seria ‘Andronico’, mas mantenho a forma já consagrada ‘Andrónico’. Quanto a Júnia, também o seu nome tem sido objeto de estropiamento, devido ao facto de, no mesmo versículo, ambas as ‘figuras’ serem referidas como ‘apóstolos’. Pareceu impossível, na Idade Média, que se pudesse associar o estatuto de apóstolo a um nome feminino (embora esse fosse o entendimento da patrística grega durante os primeiros mil anos do cristianismo) e, por isso, conhecemos manuscritos (sobretudo a partir do século XIII) que acentuam o nome de Júnia como se fosse ‘Júnias’, fazendo dela um homem: isto é, em vez de ‘Iounían’ (feminino), escrevem ‘Iouniân’ (masculino). Lutero traduziu com artigo definido masculino para não haver ambiguidade: ‘saudai o Andrónico e o Júnias…’ (grüfset den Andrinikus und den Junias…).” (Lourenço, Bíblia, vol. II, Quetzal, pgs 212-213).
O Novum Testamentum – graece et latine, de Augusto Merke, grafa ‘Iuouniân’, mas Marcelo Berti, no artigo “Era Júnia uma apóstola?”, refere que “o mais antigo manuscrito da literatura paulina, 𝔓46 atesta que o nome da pessoa descrita com Andrónico é Ἰουνίαν (Júlia). E levanta outra questão: Paulo refere que Andrónico e Júnia “estavam em Cristo antes de mim”. Ora, eles não integravam o grupo dos 12, nem consta que tivessem sido objeto de eleição para o grupo como sucedeu com Matias, nem terão tido uma visão como Paulo. Terão contactado com o Ressuscitado como tantos outros, como se diz a propósito de Barnabé, que, listado entre os 72 discípulos, aparece designado, em At 14,14 à frente de Paulo – “Barnabé e Paulo” – e ambos são chamados ἀπόστολοι (apóstoloi, apóstolos).
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A edição online da revista “Sábado”, de 25 de agosto de 2019, faz uma longa referência a esta temática, admitindo que houve “uma apóstola próxima de São Paulo que até terá visto a ressurreição de Cristo”, tendo sido eclipsada ao mudarem-lhe o nome para o correspondente masculino. Todavia, alguns académicos anotam, a este respeito, que Jesus não discriminava as mulheres. E já não há dúvidas de que a palavra ‘apóstolo’ se emprega também no feminino. De facto, no século I, ser uma notável entre os apóstolos era privilégio que fazia com que Paulo se referisse a Júnia como alguém que se distinguia entre os seguidores de Jesus. Terá, com o marido, Andrónico, deixado uma vida pacata para atravessar o Mediterrâneo num barco de madeira apinhado com centenas de pessoas, pois queria dedicar a vida a converter pessoas ao cristianismo – pelo que viria a ser presa. A tese de que Júnia era apóstola não se estriba numa nota de rodapé, mas as palavras da Epístola aos Romanos, acima transcritas.
São 23 palavras, no texto grego, sobre quem era Júnia, mas com informação relevante. Tratando-se duma carta aos romanos, supõe-se que Júnia fosse de Roma, já que Paulo lhe envia os seus cumprimentos como aos que são de Roma e o seu nome dela é tipicamente romano, como diz Giovanni Bazzana, professor da Universidade de Harvard, especialista em Novo Testamento (NT). Depois, como explica, José Brissos-Lino, diretor do Mestrado em Ciência das Religiões e investigador na Universidade Lusófona, o nome ‘Júnia’ deriva da deusa Juno, filha de Saturno, mulher de Júpiter e rainha dos deuses, donde se originou designação do mês de junho. O facto de possuir nome latino advirá da sua origem de escrava liberta que adotou o nome do seu senhor ou da pertença a uma família de judeus helenizados ou até romanizados, que tinham por tradição batizar as filhas com nomes latinos e os filhos com nomes gregos.
O certo é que Júnia tinha um lugar na comunidade de Paulo, que por ela tinha grande apreço, como frisa Giovanni Bazzana, pois é referida como uma apóstola desde muito cedo, até antes dele. E, para José Brissos-Lino, Júnia, que era “uma mulher de grande prestígio”, terá sido “uma das primeiras fundadoras da comunidade cristã de Roma”.
Assim, como sustenta Rena Pederson, jornalista e autora do livro “The Lost Apostle(a apóstola perdida), sabemos que a personalidade em causa tem um nome romano e que poderia ter sido uma escrava duma família nobre ou ter pertencido a uma família de judeus helenizados. Por isso, é provável que tenha aprendido a escrever e ler. Aliás, a jornalista relata como foi até Itália e durante dois anos entrevistou estudiosos dos primórdios do cristianismo, para transmitir um retrato mais fiel e perceber como era a vida nessa época. E defende que Júnia teria cerca de 40 anos quando se cruzou com Paulo, teria nascido em Trastevere, nos bairros judaicos, e que o casamento duradouro a ajudou a aguentar as perseguições. Júnia e Andrónico seriam casados, segundo alguns, mas outros sustentam que seriam irmãos. Júnia e Andrónico são parentes de Paulo e estiveram na prisão em Roma juntamente com ele, no fim da vida de Paulo, por volta do ano 58 d.C. Porém, Brissos-Lino sustenta que talvez não fossem familiares próximos, mas que eventualmente pertenceriam à tribo de Benjamim.
O abono textual sobre o estatuto apostólico de Júnia é apenas aquela referência paulina. E o nome foi mudado numa determinada época, ou seja, nas versões a partir do século XIII, Júnia tornou-se um homem. Há quem diga que foi intencional (por preconceito ou para evitar que as mulheres tivessem um papel mais importante), mas também há quem diga que terá sido um lapso da tradução.
A isto, diz Scot McKnight, professor do NT, no Northern Baptist Theological Seminary, que se tornou “embaraçoso ter uma mulher a ser chamada apóstola, pelo que o seu nome foi mudado do feminino Júnia para o masculino Júnias, um nome que nem sequer era usado no século I”. Também José Brissos-Lino, crendo que foi uma mudança pensada, vinca:
Provavelmente, porque a Igreja sempre lidou mal com o papel das mulheres no seu seio, talvez devido à influência patriarcal predominante”.
No entanto, acautela para um fenómeno discriminatório não exclusivo das Igrejas:
Não podemos esquecer que a mulher também fora da Igreja era menosprezada socialmente, a ponto de inúmeras mulheres artistas e escritoras terem de assinar com nome masculino para poderem divulgar a sua arte, durante séculos a fio. Mas é importante sublinhar a importância histórica de Júnia no apostolado da igreja nascente, como testemunha o próprio Paulo.”.
Giovanni Bazzana, pensando que a mudança de sexo terá acontecido na Idade Média, discorre:
Na Idade Média e mais tarde, com a influência de teólogos como Lutero, Júnia é transformada nas traduções num homem. Isto acontece, muito provavelmente, porque os apóstolos eram considerados os precursores dos padres cristãos e, nesse período, as autoridades da Igreja começaram a pensar que só os homens poderiam ser padres. Logo, era problemático ter no Novo Testamento, e reconhecido por Paulo, uma mulher como apóstola, ou seja, como padre.”.
Para José Carlos Carvalho, professor da FT da UCP, não houve intenção de a esconder. Para ele, a questão do género não interessa, pois o Papiro 46 do ano 200, a Vulgata [tradução para o latim da Bíblia] e algumas versões etiópicas traduziram no feminino. Porém, outros especialistas dizem que terá sido mesmo um erro. Por exemplo, Paul Anderson, professor de Estudos Bíblicos na Universidade George Fox, disse à “Sábado”:
Muitas vezes os escribas adivinhavam o que estava escrito, outras vezes era uma questão de preferência, ou seja, assumiam que era um homem. Já na versão autorizada do Rei Jaime Júnia aparece com o nome no feminino.”.
Sobre o facto de ter sido presa com Paulo, só há o parágrafo paulino acima transcrito. Contudo, é o suficiente para vários livros e artigos. E um livro responde às dúvidas com ficção. É “Junia: The Fictional Life and Death of an Early Christian”, de Marsha Giesler, guião dum filme de Páscoa que apresenta Júnia como filha dum senador romano, rico, que passa a dedicar-se à religião quando uma amiga é morta numa perseguição aos cristãos.
Paulo foi um dos mais influentes apóstolos, mas começara a perseguir os cristãos. Numa dessas missões teve uma visão de Jesus e converteu-se ao cristianismo. E, feito apóstolo, dedicou-se a pregar a palavra de Deus. Foi preso várias vezes e, numa delas, conheceu Júnia e Andrónico.
Pederson refere como seriam as prisões então e defende como possível a ajuda dos dois a Paulo na prisão Mamertina, em Roma. As condições eram miseráveis: celas subterrâneas, sem luz, os presos acorrentados recebiam a comida por um buraco no teto. Era feroz a perseguição aos cristãos; e Nero, ao subir ao poder (entre 58 a 64), iniciou um reinado de terror. Matou milhares, entre os quais Paulo por decapitação, podendo ter morrido Júnia nessa altura.
Brissos-Lino diz que, para João Crisóstomo, Bispo de Constantinopla no século V e doutor da Igreja, Júnia “deveria ser contada como merecedora do título de apóstolo” e que Paulo encorajava mulheres como parte da liderança na Igreja antiga. Mas Carlos Carvalho desvaloriza, pois Paulo usa o termo ‘apóstolo’ em sentido etimológico (o enviado), sendo que da lista de cerca de 30 nomes em Romanos 16, ela é mais uma entre os vários colaboradores de Paulo. Com efeito, ‘apóstolo’ vem do verbo grego ‘apostéllô’ (enviar), podendo ser um mensageiro. Para Paulo, as qualificações do apóstolo eram ter testemunhado a ressurreição ou ter recebido a comissão divina para partilhar a história de Jesus. E Pederson explica que os apóstolos podiam castigar, ordenar presbíteros, tinham jurisdição sobre igrejas, administravam os ritos sagrados e até faziam leis. E Scot McKnight, em “Junia Is Not Alone”, diz que Júnia era influente e frisa:
Os apóstolos são missionários. Ajudam a criar igrejas e a levar as pessoas até Cristo. Foi o que Júnia fez, ela era uma missionária a plantar a igreja.”.
Júnia e Andrónico eram cristãos antes de Paulo. Ben Witherington, investigador do NT e professor no Seminário de Asbury, acredita que já o eram uma década antes. Como escreve N.T. Wright, especialista em Estudos Bíblicos, no livro “Paul for Everyone”, eram apóstolos porque assistiram à ressurreição de Cristo. E Paul Anderson, professor de Estudos Bíblicos, diz que estamos ante a 1.ª geração de líderes do cristianismo. Não há provas de que Júnia esteve na Última Ceia. Os 12 simbolizam as 12 tribos de Israel, mas pode a realidade incluir mais pessoas, como diz Laura Salah Nasrallah professora do NT, na Universidade de Harvard. Mesmo que Júnia não estivesse à mesa, incluí-la como apóstola ajuda a perceber o pensamento de Jesus, que tratava as mulheres melhor que a sociedade – tratamento inclusivo, o que Paulo subscreve.
Porém, não é dedutível só por isso a legitimidade da ordenação sacerdotal de mulheres, que tem de buscar-se também noutras razões. É, pois, de atender à convergência dos diversos ministérios na unidade do corpo eclesial (Ef 4,11): apóstolos, profetas, evangelistas, pastores, mestres…

2020.04.01 – Louro de Carvalho

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