Depois de a
Igreja Católica ter reconhecido, na esteira de Tomás de Aquino, Maria Madalena
como a “apóstola dos apóstolos”, é de pensar no reconhecimento de Júnia como apóstola,
atendo-nos ao v 7 do capítulo 16 da Carta de Paulo aos Romanos, que reza:
“Saudai Andrónico e Júnia, meus concidadãos e meus
companheiros de prisão, que tão notáveis são entre os apóstolos e que,
inclusivamente, se tornaram cristãos antes de mim”.
A Bíblia Sagrada, dos Capuchinhos
apresenta uma nota, que diz, entre outras coisas:
“Que Paulo conheça tantos cristãos em Roma, aonde ainda não fora,
explica-se com a expulsão a que foram sujeitos pelo imperador Cláudio, no ano
49. Foi o caso de Prisca [ou Priscila] e seu marido Áquila (v 3-5), que Paulo
encontrou em Corinto e Éfeso (…). As outras pessoas referidas pertenciam às
comunidades cristãs, reunidas em diversas casas (vv 5,14.15): ao lado de
homens, há muitas mulheres com atividades na Igreja (…), uma até com dignidade
apostólica (v 7, lendo-se Júnia, em vez de Júnias, preferido por alguns
manuscritos); alguns nomes são típicos de escravos (vv 12.14.15); de algumas
pessoas é referida a origem judaica (vv 7.11.21). Todos formam “um só em
Cristo” (Gl 3,28).”.
Frederico
Lourenço, referindo-se ao versículo em referência, explica sinteticamente a
questão:
“Andrónico
e Júnia: em rigor, a forma correta em português do nome ‘Andronikos’, seria ‘Andronico’, mas mantenho a forma já consagrada ‘Andrónico’. Quanto a Júnia, também o seu
nome tem sido objeto de estropiamento, devido ao facto de, no mesmo versículo,
ambas as ‘figuras’ serem referidas como ‘apóstolos’. Pareceu impossível, na
Idade Média, que se pudesse associar o estatuto de apóstolo a um nome feminino
(embora esse fosse o entendimento da patrística grega durante os primeiros mil
anos do cristianismo) e, por isso, conhecemos manuscritos (sobretudo a partir
do século XIII) que acentuam o nome de Júnia como se fosse ‘Júnias’, fazendo
dela um homem: isto é, em vez de ‘Iounían’
(feminino), escrevem ‘Iouniân’
(masculino). Lutero traduziu com artigo definido masculino para não haver
ambiguidade: ‘saudai o Andrónico e o Júnias…’ (grüfset den Andrinikus und den
Junias…).” (Lourenço, Bíblia, vol. II,
Quetzal, pgs 212-213).
O Novum
Testamentum – graece et latine, de Augusto Merke, grafa ‘Iuouniân’, mas Marcelo
Berti, no artigo “Era Júnia uma apóstola?”, refere que “o mais antigo manuscrito da
literatura paulina, 𝔓46 atesta que o nome da pessoa
descrita com Andrónico é Ἰουνίαν (Júlia). E levanta outra questão: Paulo refere que Andrónico e Júnia “estavam
em Cristo antes de mim”. Ora, eles não integravam o grupo dos 12, nem consta que
tivessem sido objeto de eleição para o grupo como sucedeu com Matias, nem terão
tido uma visão como Paulo. Terão contactado com o Ressuscitado como tantos outros,
como se diz a propósito de Barnabé, que, listado entre os 72 discípulos, aparece
designado, em At 14,14 à frente de Paulo – “Barnabé
e Paulo” – e ambos são chamados ἀπόστολοι (apóstoloi, apóstolos).
***
A edição online
da revista “Sábado”, de 25 de agosto
de 2019, faz uma longa referência a esta temática, admitindo que houve “uma
apóstola próxima de São Paulo que até terá visto a ressurreição de Cristo”,
tendo sido eclipsada ao mudarem-lhe o nome para o correspondente masculino. Todavia,
alguns académicos anotam, a este respeito, que Jesus não discriminava as
mulheres. E já não há dúvidas de que a palavra ‘apóstolo’ se emprega também no
feminino. De facto, no século I, ser uma notável entre os apóstolos era privilégio
que fazia com que Paulo se referisse a Júnia como alguém que se distinguia
entre os seguidores de Jesus. Terá, com o marido, Andrónico, deixado uma vida
pacata para atravessar o Mediterrâneo num barco de madeira apinhado com centenas
de pessoas, pois queria dedicar a vida a converter pessoas ao cristianismo –
pelo que viria a ser presa. A tese de que Júnia era apóstola não se estriba numa
nota de rodapé, mas as palavras da Epístola aos Romanos, acima transcritas.
São 23
palavras, no texto grego, sobre quem era Júnia, mas com informação relevante. Tratando-se
duma carta aos romanos, supõe-se que Júnia fosse de Roma, já que Paulo lhe
envia os seus cumprimentos como aos que são de Roma e o seu nome dela é
tipicamente romano, como diz Giovanni Bazzana, professor da Universidade de
Harvard, especialista em Novo Testamento (NT). Depois, como explica, José Brissos-Lino, diretor do Mestrado em Ciência
das Religiões e investigador na Universidade Lusófona, o nome ‘Júnia’ deriva da
deusa Juno, filha de Saturno, mulher de Júpiter e rainha dos deuses, donde se
originou designação do mês de junho. O facto de possuir nome latino advirá da
sua origem de escrava liberta que adotou o nome do seu senhor ou da pertença a
uma família de judeus helenizados ou até romanizados, que tinham por tradição
batizar as filhas com nomes latinos e os filhos com nomes gregos.
O certo é que
Júnia tinha um lugar na comunidade de Paulo, que por ela tinha grande apreço, como
frisa Giovanni Bazzana, pois é referida como uma apóstola desde muito cedo, até
antes dele. E, para José Brissos-Lino, Júnia, que era “uma mulher de grande
prestígio”, terá sido “uma das primeiras fundadoras da comunidade cristã de
Roma”.
Assim, como
sustenta Rena Pederson, jornalista e autora do livro “The Lost Apostle” (a apóstola perdida), sabemos que a personalidade em causa tem um nome romano e que poderia ter
sido uma escrava duma família nobre ou ter pertencido a uma família de judeus
helenizados. Por isso, é provável que tenha aprendido a escrever e ler. Aliás,
a jornalista relata como foi até Itália e durante dois anos entrevistou
estudiosos dos primórdios do cristianismo, para transmitir um retrato mais fiel
e perceber como era a vida nessa época. E defende que Júnia teria cerca de 40
anos quando se cruzou com Paulo, teria nascido em Trastevere, nos bairros
judaicos, e que o casamento duradouro a ajudou a aguentar as perseguições. Júnia
e Andrónico seriam casados, segundo alguns, mas outros sustentam que seriam
irmãos. Júnia e Andrónico são parentes de Paulo e estiveram na prisão em Roma
juntamente com ele, no fim da vida de Paulo, por volta do ano 58 d.C. Porém, Brissos-Lino
sustenta que talvez não fossem familiares próximos, mas que eventualmente
pertenceriam à tribo de Benjamim.
O abono
textual sobre o estatuto apostólico de Júnia é apenas aquela referência
paulina. E o nome foi mudado numa determinada época, ou seja, nas versões a
partir do século XIII, Júnia tornou-se um homem. Há quem diga que foi intencional
(por
preconceito ou para evitar que as mulheres tivessem um papel mais importante), mas também há quem diga que terá sido um lapso da
tradução.
A isto, diz Scot
McKnight, professor do NT, no Northern Baptist Theological Seminary, que se
tornou “embaraçoso ter uma mulher a ser chamada apóstola, pelo que o seu nome
foi mudado do feminino Júnia para o masculino Júnias, um nome que nem sequer
era usado no século I”. Também José Brissos-Lino, crendo que foi uma mudança
pensada, vinca:
“Provavelmente, porque a Igreja sempre lidou mal com o papel das
mulheres no seu seio, talvez devido à influência patriarcal predominante”.
No entanto, acautela para um fenómeno discriminatório não
exclusivo das Igrejas:
“Não podemos esquecer que a mulher também fora da Igreja era
menosprezada socialmente, a ponto de inúmeras mulheres artistas e escritoras
terem de assinar com nome masculino para poderem divulgar a sua arte, durante
séculos a fio. Mas é importante sublinhar a importância histórica de Júnia no
apostolado da igreja nascente, como testemunha o próprio Paulo.”.
Giovanni
Bazzana, pensando que a mudança de sexo terá acontecido na Idade Média, discorre:
“Na Idade Média e mais tarde, com a influência de teólogos como Lutero,
Júnia é transformada nas traduções num homem. Isto acontece, muito
provavelmente, porque os apóstolos eram considerados os precursores dos padres
cristãos e, nesse período, as autoridades da Igreja começaram a pensar que só
os homens poderiam ser padres. Logo, era problemático ter no Novo Testamento, e
reconhecido por Paulo, uma mulher como apóstola, ou seja, como padre.”.
Para José
Carlos Carvalho, professor da FT da UCP, não houve intenção de a esconder. Para
ele, a questão do género não interessa, pois o Papiro 46 do ano 200, a Vulgata [tradução
para o latim da Bíblia] e algumas
versões etiópicas traduziram no feminino. Porém, outros especialistas dizem que
terá sido mesmo um erro. Por exemplo, Paul Anderson, professor de Estudos
Bíblicos na Universidade George Fox, disse à “Sábado”:
“Muitas vezes os escribas adivinhavam o que estava escrito, outras vezes
era uma questão de preferência, ou seja, assumiam que era um homem. Já na
versão autorizada do Rei Jaime Júnia aparece com o nome no feminino.”.
Sobre o facto de ter sido presa com Paulo, só há o parágrafo paulino acima
transcrito. Contudo, é o suficiente para vários
livros e artigos. E um livro responde às dúvidas com ficção. É “Junia: The Fictional Life and Death of an
Early Christian”, de Marsha Giesler, guião dum filme de Páscoa que apresenta
Júnia como filha dum senador romano, rico, que passa a dedicar-se à religião quando
uma amiga é morta numa perseguição aos cristãos.
Paulo foi um
dos mais influentes apóstolos, mas começara a perseguir os cristãos. Numa dessas
missões teve uma visão de Jesus e converteu-se ao cristianismo. E, feito
apóstolo, dedicou-se a pregar a palavra de Deus. Foi preso várias vezes e, numa
delas, conheceu Júnia e Andrónico.
Pederson
refere como seriam as prisões então e defende como possível a ajuda dos dois a
Paulo na prisão Mamertina, em Roma. As condições eram miseráveis: celas
subterrâneas, sem luz, os presos acorrentados recebiam a comida por um buraco
no teto. Era feroz a perseguição aos cristãos; e Nero, ao subir ao poder (entre 58 a
64), iniciou um reinado de terror.
Matou milhares, entre os quais Paulo por decapitação, podendo ter morrido Júnia
nessa altura.
Brissos-Lino
diz que, para João Crisóstomo, Bispo de Constantinopla no século V e doutor da
Igreja, Júnia “deveria ser contada como merecedora do título de apóstolo” e que
Paulo encorajava mulheres como parte da liderança na Igreja antiga. Mas Carlos
Carvalho desvaloriza, pois Paulo usa o termo ‘apóstolo’ em sentido etimológico (o enviado), sendo que da lista de cerca de 30 nomes em Romanos
16, ela é mais uma entre os vários colaboradores de Paulo. Com efeito, ‘apóstolo’
vem do verbo grego ‘apostéllô’ (enviar), podendo ser um mensageiro. Para
Paulo, as qualificações do apóstolo eram ter testemunhado a ressurreição ou ter
recebido a comissão divina para partilhar a história de Jesus. E Pederson
explica que os apóstolos podiam castigar, ordenar presbíteros, tinham
jurisdição sobre igrejas, administravam os ritos sagrados e até faziam leis. E Scot
McKnight, em “Junia Is Not Alone”,
diz que Júnia era influente e frisa:
“Os apóstolos são missionários. Ajudam a criar igrejas e a levar as
pessoas até Cristo. Foi o que Júnia fez, ela era uma missionária a plantar a
igreja.”.
Júnia e
Andrónico eram cristãos antes de Paulo. Ben Witherington, investigador do NT e
professor no Seminário de Asbury, acredita que já o eram uma década antes. Como
escreve N.T. Wright, especialista em Estudos Bíblicos, no livro “Paul for Everyone”, eram apóstolos porque
assistiram à ressurreição de Cristo. E Paul Anderson, professor de Estudos
Bíblicos, diz que estamos ante a 1.ª geração de líderes do cristianismo. Não há
provas de que Júnia esteve na Última Ceia. Os 12 simbolizam as 12 tribos de
Israel, mas pode a realidade incluir mais pessoas, como diz Laura Salah Nasrallah
professora do NT, na Universidade de Harvard. Mesmo que Júnia não estivesse à mesa,
incluí-la como apóstola ajuda a perceber o pensamento de Jesus, que tratava as
mulheres melhor que a sociedade – tratamento inclusivo, o que Paulo subscreve.
Porém, não é
dedutível só por isso a legitimidade da ordenação sacerdotal de mulheres, que
tem de buscar-se também noutras razões. É, pois, de atender à convergência dos
diversos ministérios na unidade do corpo eclesial (Ef 4,11): apóstolos, profetas, evangelistas, pastores, mestres…
2020.04.01 – Louro de Carvalho
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