terça-feira, 31 de março de 2020

Sobre a contestação de crentes à suspensão de celebrações coletivas


Obviamente, a decisão das autoridades eclesiais, por antecipação às iminentes resoluções das autoridades governamentais – ou a reboque destas – faria surgir alguma contestação por parte de crentes mais tradicionalistas ou mesmo daqueles que, em circunstâncias normais, não cumprem com os deveres cristãos, mas se escandalizam quando alegadamente os outros não o fazem.
A este respeito, o “Sete Margens”, a 23 de março, referia que Raymond Burke, cardeal norte-americano, conhecido pelas suas posições tradicionalistas e mesmo em rota de colisão com o Papa Francisco nalguns aspetos, defende que os católicos não devem “aceitar as determinações dos governos seculares”, que tratam a “adoração a Deus da mesma forma que ir a um restaurante”, a um filme ou um jogo de futebol”.
Efetivamente, em carta publicada a 21 de março e divulgada pela “Vida Nueva, acrescenta:
Bispos e sacerdotes devemos explicar publicamente a necessidade que os católicos têm de rezar e adorar nas suas igrejas e capelas e ir em procissão pelas ruas pedindo a bênção de Deus sobre o seu povo que sofre tão intensamente”.
Não obstante, dá conselhos sobre como evitar o contágio, entre os quais o de “evitar reuniões de grupo”. Mas entende que, da mesma forma que podemos comprar alimentos e medicamentos, “também devemos poder orar nas nossas igrejas e capelas, receber os sacramentos e participar em atos de oração pública”. Para isso, os padres devem desinfetar os bancos e confessionários depois de cada celebração, recorrendo à ajuda dos fiéis, se o não puderem fazer sozinhos.
A isto, reagiu Frei Bento Domingues, na sua crónica dominical do passado dia 29 de março:
Se, como foi noticiado, o cardeal Burke tiver dito, perante as ameaças da Covid-19, ‘que devemos poder orar nas nossas igrejas e capelas, receber os sacramentos e participar em atos de oração pública’, espero que alguém o convença a despir-se das pompas cardinalícias, a envolver-se em saco e cinza para pedir perdão, através dos meios de comunicação social, a crentes e não crentes por essa pouca vergonha”.
Não vou tão longe como Frei Bento na exigência de que o purpurado peça perdão a crentes e não crentes, mas penso que talvez Burke devesse deixar de se apegar ao estatuto cardinalício, antes atendendo ao seu especial dever de obediência ao Papa e seguindo, em comunhão com ele, imposta pela condição de católico e, a fortiori, pela sua condição de membro do Sacro Colégio. Porém, Sua Eminência, por um lado, parece desconhecer que as restrições ao culto resultaram, na maior parte dos casos, de decisão das autoridades eclesiásticas – Santa Sé e Conferências Episcopais – em articulação prudente com as autoridades sanitárias de Itália e de cada país e, por outro, desconhece as dimensões e constrições caraterizadoras da maior parte das nossas igrejas e capelas. Além disso, não pode a Igreja católica (nem as outras confissões religiosas) fazer ou dar azo a que o poder político faça policiamento nas assembleias litúrgicas, procissões, encontros devocionais e permanência nos santuários – sendo que, por mais indicações que se deem de distanciamento social, em grande ajuntamento de pessoas, é difícil garantir o sucesso. Depois, é ingénuo, duro e ineficaz impor aos sacerdotes e a alguns fiéis a desinfeção dos bancos e confessionários. Por que não também dos altares, talhas, imagens, teto, paredes e chão?
Aí tem razão o nosso Primeiro-Ministro, quando preconiza: “desejamos o melhor, mas estarmos preparados para o pior”.
É certo que, sobretudo passados os 14 dias de interrupção do culto, como referia o psiquiatra Pedro Afonso, será demasiada cautela os padres deixarem de celebrar, com algumas pessoas devidamente distanciadas, num dos templos de que são responsáveis, em vez de se recolherem permanentemente em casa e – digo eu – eventualmente porem-se em situação de férias. Aliás, é de reparar o cuidado e a suficiente ousadia de que se revestem algumas das celebrações transmitidas pela TV, Rádio e Internet, com celebrante e alguns colaboradores (diáconos, leitores, acólitos, organistas e outros instrumentistas, cantores, alguns comungantes).            
Por sua vez, o missionário espiritano Tony Neves, disse à Renascença e à Ecclesia, a 27 de março, entender, que “algumas pessoas têm a tentação de olhar para tudo o que acontece de desgraça como um castigo de Deus”, o que, na sua perspetiva (e na do Reitor do Santuário de Fátima), “esta é uma maneira muito errada de ver Deus, como castigador e vingativo, e é também uma maneira muito errada de olhar para a ciência”. E sustenta, no âmbito da doutrina, que “Deus é bom, e a ciência também é fruto da sabedoria que Deus dá”, pelo que temos de olhar para a ciência que nos diz que “as características deste vírus são estas e estas” e “vamos fazer distanciamento social”. Ora, havendo “quem ache que a única forma de combater este vírus é rezar mais e ter manifestações públicas de fé juntando muita gente, e que foi um erro fechar as igrejas e acabar com as missas”, Tony Neves porfiou que “não foi erro”. E adiantou:
Nós podemos rezar, podemos descobrir uma nova forma de relação com Deus, e até de uns com os outros enquanto comunidades, respondendo com inteligência, mas também com sentido de responsabilidade social a este tipo de pandemias”.
Por mim, devo dizer que as decisões da Santa Sé tomadas até agora, como as da nossa Conferência Episcopal, foram as necessárias para o momento. Por outro lado, as últimas orientações da Santa Sé, como a carta (coloquial e afetuosa) do Arcebispo de Braga aos sacerdotes, embora perpassadas de contenção e cautela, mostram um rumo de abrandamento equilibrado.
De resto, devemos ter em conta que, em 1918, a pandemia do vírus influenza, incomummente mortal, que infetou 500 milhões de pessoas e vitimou 50 milhões, também deu azo a restrições ao culto público.
Diz-se que estamos numa espécie de catacumbas em nossas casas, com o culto celebrado a partir de alguns lugares sem participação física de povo, que é instado a unir-se espiritualmente às celebrações. Anotei que estamos em ambiente parecido com o longo tempo em que o povo, não conhecendo a língua litúrgica, deixou os mistérios a cargo exclusivo dos ministros do Altar, embora estivesse presente nas assembleias, mas a curtir atos devocionais, como fonte de grande espiritualidade, alimentada pela solene pomposidade do culto bem preparado e pela pregação. Mas agora os ministros ordenados e laicais celebram os mistérios, sem povo, mas que se une espiritualmente a eles, pode acompanhar pela TV, Rádio e Internet e deles pode receber a Palavra, a formação e o conforto, que podem e devem ser replicados a outros. 
Devo acrescentar, para quem ande distraído, que nas pestes, pandemias e malinas que assolavam as populações ao longo da História, não era preciso decretar a suspensão de qualquer culto coletivo nem qualquer quarentena ou confinamento. Nem havia força para rezar. A maior parte das habitações eram miseráveis, as famílias acotovelavam-se dentro de casa, sendo que muitas viviam com os animais no mesmo compartimento, e os templos não tinham o mínimo de conforto. Assim, os focos de infeção eram mais que muitos e muitas pessoas mal conseguiam sair de casa, onde se contorciam febrilmente, quanto mais deslocarem-se às igrejas. E, por consequência, os padres, se não sucumbissem também, quando se podiam deslocar ao templo, ficavam praticamente sozinhos. Por outro lado, não havia meios de prevenção, contenção, mitigação e cura das pandemias, não havia mecanismos de saúde pública, nem havia TV, Rádio, Internet, telefone para contacto, informação e formação. Amontoavam-se infetados, corpos esqueléticos e cadáveres, que aumentavam os focos de infeção. Era a miséria em toda a linha!               
***
No passado dia 26, o jornalista Joaquim Franco escrevia para o “Sete Margens”, sob o títuloOração, cidadania e solidariedade contra a pandemia”, em que exaltava a iniciativa do Papa de convidar os fiéis para acompanharem, no dia 27, pelos meios de comunicação, um momento extraordinário de oração às 18 horas de Roma, a partir do adro da Basílica de São Pedro, perante a praça vazia, na que ia ser uma das imagens mediáticas que registam este difícil tempo da humanidade. Isto, depois da iniciativa ecuménica de Francisco de convidar os cristãos de todo o mundo para, às 12 horas do dia 25, recitarem o Pai-Nosso, oração fundacional no cristianismo – iniciativa que “teve um alcance que vai além da pandemia do momento”. Declarava o Pontífice:
Rezamos pelos doentes e suas famílias, pelos profissionais de saúde e quantos os ajudam, pelas autoridades, as forças da ordem e os voluntários, pelos ministros das comunidades”.
Francisco deu assim, segundo Joaquim Franco, amplitude ao papel das religiões, nomeadamente das cristãs, pois “há uma construção a fazer, nos gestos do quotidiano e nos momentos mais difíceis, que requer um retorno ao essencial”. E “aumenta a dramaticidade do isolamento entre os cristãos”, impedidos de celebrar, em comunidade, o principal tempo litúrgico do calendário.
No final, da oração do dia 27, o Papa deu a bênção Urbi et Orbi (à cidade de Roma e ao mundo), reservada para ocasiões muito especiais, como o dia da eleição papal, a Páscoa e o Natal.
E o jornalista recorda o que se passou em Fátima no dia 25: uma cerimónia de Consagração por causa da pandemia, que “passou quase despercebida na comunicação social”. E enfatizou:
O cenário terá transportado os crentes para um misto de graça e angústia pela voz embargada do cardeal António Marto, pela sobriedade da cerimónia no canto e nas palavras. Sem multidões nem emoções transbordantes, amplamente visíveis se fosse uma cerimónia pública, Fátima mostrou-se necessariamente recolhida numa basílica vazia, com o recinto vazio ao anoitecer e os celebrantes afastados. Um contraste sem paralelo.”.
Os bispos portugueses e de Espanha consagraram a Igreja e o mundo ao “Sagrado Coração de Jesus” e ao “Imaculado Coração de Maria”, ato a que se associaram os bispos de outros 20 países, “mantendo a tradição antiga das petições espirituais em tempos de aflição comunitária”.
Num quadro sóbrio, ajoelhado ante a Cruz e a imagem da Senhora de Fátima, António Marto, emocionado, nesta “singular hora de sofrimento” (como disse e redisse na fórmula da consagração), suplicou “inspiração para os governantes, cura para os doentes, amparo para os velhos e vulneráveis, conforto para médicos, enfermeiros e todo o pessoal em ação, profissionais ou voluntários” e concluiu de forma lancinante: “livra-nos da pandemia que nos atinge”.
Podem “estas expressões quentes de fé” exalçar mais a piedade popular que uma manifestação mais racional de fé – “se pouco ou nada há a fazer, que o Alto tenha uma intervenção” – mas o jornalista atento fixou uma frase no texto lido pelo prelado do Lis, como chave de leitura, que vai além da mera petição: “Reforça-nos na cidadania e na solidariedade”. E comentou:
Não é comum invocar a ‘cidadania’ numa celebração religiosa desta natureza. António Marto sintonizou a oração dos crentes com a urgência de uma atitude ativa perante expectáveis dramas familiares e sociais. Nas narrativas evangélicas, Jesus opera no concreto da vida próxima e faz próximos os que mais precisam. Construindo a igualdade e a justiça como vivência e caminho de salvação, o ‘Reino’ é um encontro e o encontro leva ao ‘Reino’.”.
Francisco, ao convocar-nos para a oração do dia 27, frisou que a confiança incondicional na intervenção divina implica a fé comprometida com os outros e que respondemos à pandemia com a universalidade da oração”, “da compaixão e da ternura”, assegurando “proximidade às pessoas mais sós”. E à televisão espanhola La Sexta disse não imaginar as dificuldades que vão passar os empresários, mas que os despedimentos não salvam empresas. E pede oração…
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Se, em vez de discutirmos medidas de exceção, rezássemos mais e fôssemos mais solidários?   
2020.03.31 – Louro de Carvalho

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