quarta-feira, 18 de março de 2020

A “Lex orandi, lex credendi” e um certo egoísmo português na oração


O aforismo Lex orandi, lex credendi (a lei da oração é a lei da fé) sintetiza uma passagem do De gratia Dei et libero voluntatis arbítrio”, mais conhecido porIndiculus gratia Dei”, documento do século V compilado provavelmente por Próspero de Aquitânia refletindo o pensamento da Igreja de Roma como resposta a pelagianos e semipelagianos, que questionavam sobre a graça invocando testemunhos dos Romanos Pontífices anteriores, tendo em vista a liturgia.   
A passagem essencial para o caso refere:
Consideramos também nos sacramentos as orações que fazem os bispos, que, proferidas pelos apóstolos e em todas as Igrejas Católicas recitadas de maneira igual, de modo que a lei de rezar seja a lei de crer – ut legem credendi lex statuat supplicandi” (cf A. Martimort. (1965) A Igreja em Oração: introdução à liturgia, 3.ª ed., Barcelos. Ed. Ora et Labora: pp 261-262).
O significado preciso da frase deduz-se pelo confronto com o texto paulino seguinte:
Recomendo, pois, antes de tudo, que se façam preces, orações, súplicas e ações de graças por todos os homens, pelos reis e por todos os que estão constituídos em autoridade, a fim de que levemos uma vida serena e tranquila, com toda a piedade e dignidade. Isto é bom e agradável diante de Deus, nosso Salvador, que quer que todos os homens sejam salvos e cheguem ao conhecimento da verdade.” (1Tm 2,1-4).
Ora, recomendando o apóstolo as supraditas orações de rezar para que todos sejam salvos e respeitando os bispos na liturgia tal recomendação – lex orandi – fica evidente a obrigação de acreditar que a salvação é para todos – lex credendi. Assim, abreviando o dito do “Indiculus gratia Dei” para Lex orandi, Lex credendi, estabelece-se a relação umbilical existente entre fé e liturgia, nos termos da qual o modo correto de rezar deriva de um reto modo de crer.  Por isso, a célebre expressão “legem credendi statuat Lex supplicandi(uma oração subordinada consecutiva), atribuída a Próspero de Aquitânia estabeleceu para o ato de fé a originariedade no ato litúrgico, na esteira de Tertuliano, São Cipriano e Santo Agostinho – cf Michele Pellegrino. (2002). Dicionário Patrístico e de Antiguidades Cristãs. Petrópolis, Vozes: verbete Liturgia e Padres, p 835).
Por seu turno, o Concílio Vaticano II correspondeu às expectativas contemporâneas, exortando os fiéis, como São João Paulo II recordou na Carta Apostólica Orientale lumen, “a mostrar com palavras e gestos de hoje as imensas riquezas que as nossas Igrejas conservam nos depósitos das suas tradições(n.º 4). Um destes ‘depósitos’ é, certamente, o Missale Romanum. Nele, a lex orandi incluiu a experiência de fé de inteiras gerações, com inúmeras particularidades caraterísticas de culturas que se foram transformando em civilizações cristãs. Assim, a lex orandi, que derivara da lex credendi, torna-se fonte da mesma lex credendi, com o mérito de abrir os olhos da teologia, da pastoral e da doutrina magisterial, às vezes, esquecido da dimensão originária simbólico-ritual do ato de revelação e de fé. Assim, o ato do revelar-se por parte de Deus como um ato de fé por parte dos fiéis é expresso por “signa sensibiliza”, de modo personalístico – expressar-se – e realístico – com gestos. E o Catecismo da Igreja Católica recorda esta máxima:
A fé da Igreja é anterior à fé do fiel, que é chamado a aderir a ela. Quando a Igreja celebra os sacramentos, confessa a fé recebida dos Apóstolos. Daí o adágio antigo: ‘Lex orandi, lex credendi – A lei da oração é a lei da fé’. (Ou: Legem credendi lex statuat supplicandi – A lei da fé é determinada pela lei da oração’, como diz Próspero de Aquitânia [século V]). A lei da oração é a lei da fé, a Igreja crê conforme reza. A liturgia é um elemento constitutivo da Tradição santa e viva.” (n. 1124).
Aliás, uma vez que os sacramentos exprimem e desenvolvem a comunhão da fé na Igreja, a lex orandi é um dos critérios essenciais do diálogo que procura restaurar a unidade dos cristãos” (n. 1126).

Também o Código do Direito Canónico tem presente esta doutrina. Assim, o Cânon 837, § 1 enfatiza o caráter público do culto divino interligando um princípio de liturgia com os princípios da fé segundo a máxima lex orandi, lex credendi, ao mesmo tempo que se configura como um dos pilares no qual se sustenta o princípio de comunhão plena: profissão de fé, sacramentos e regime eclesiástico. Veja-se o teor do referido § 1:
As ações litúrgicas não são ações privadas, mas celebrações da própria Igreja, que é ‘sacramento da unidade’, ou seja, o povo santo, reunido e ordenado sob a dependência dos Bispos; por isso, pertencem a todo o corpo da Igreja, que manifestam e afetam; atingem, porém, cada um dos seus membros de modo diverso, em razão da diversidade das ordens, funções e participação atual”.
E o cânon 897, ao tratar da Eucaristia, ensina:  
O augustíssimo Sacramento é a santíssima Eucaristia, na qual o próprio Senhor Jesus Cristo se contém, se oferece e se recebe, e pela qual continuamente vive e cresce a Igreja. O Sacrifício eucarístico, memorial da morte e ressurreição do Senhor, em que se perpetua através dos séculos o Sacrifício da Cruz, é a culminância e a fonte de todo o culto e da vida cristã, pelo qual se significa e se realiza a unidade do povo de Deus e se completa a edificação do Corpo de Cristo. Os demais sacramentos e todas as obras eclesiásticas de apostolado relacionam-se com a santíssima Eucaristia e para ela se ordenam.”.
Quer dizer que o augusto mistério da Eucaristia é o máximo expoente de comunhão eclesial, pelo qual se significa e realiza a unidade do Povo de Deus e chega a termo a edificação do Corpo de Cristo. Não há, pois, dúvida alguma sobre a necessidade de uma ordem adequada nas celebrações litúrgicas estabelecida por quem tem autoridade na Igreja, não para encarecer o valor ritual das rubricas, mas para regulamentar as celebrações em ordem à participação dos crentes, à perceção da profundidade do mistério e ao acolhimento dos frutos que ele produz.
Assim, a regulamentação canónica não será mais um capricho de liturgistas ou de canonistas, constituirá a atividade normativa em sentido amplo mediante a qual se ordenam adequadamente os atos litúrgicos em sentido estrito, não sendo o Código do Direito Canónico o repositório destas normas (vd cân. 2) e se estabelece o regime jurídico ou disciplinar para garantir o valor intrínseco dos sinais litúrgico-sacramentais, a licitude e dignidade de sua celebração enquanto culto sagrado, a frutuosidade enquanto bem salvífico e a sua justa administração por se tratar de bens devidos em justiça aos fiéis convenientemente dispostos.
Na verdade, a Igreja crê o que reza e celebra ou reza o que ela crê. Para isso acontecer é mister partir do mistério de Cristo, celebrado nos mistérios da sacramentalidade litúrgica, chegando à união entre a lex orandi e a lex credendi e desembocando na lex vivendi, pois, se a fé tem consequências práticas na vida toda dos crentes, a oração implica o compromisso para com a vida pessoal e comunitária. Com efeito, a experiência espiritual cristã encontra na Liturgia a referência, as balizas, a fonte e o cume de sua realização. Não se trata duma experiência ritualista, mas de celebração empapada do mistério – o próprio Deus. É uma experiência que não se circunscreve à celebração, mas que transborda para a vida. A teologia redescobriu no movimento litúrgico a estrutura fundamental da oração litúrgica, que ou é trinitária ou não será verdadeiramente cristã. E possibilitou à teologia trinitária perceber-se na lex orandi, já que a lex credendi possui a sua fonte e ápice no ato celebrativo, que é um ato da fé. Porque não se podem separar ato de fé, ato celebrativo e ato de viver, a lex orandi e a lex credendi transbordam na moral de atitude cristã. E a vida cristã é relação com a Trindade, configurando-se deste modo uma nova “lex vivendi”.
Aliás, o Pater Noster (vd Mt 6,9-13; Lc 11,2-4), ensinado por Jesus é o espelho programático da oração simples e comunitária que enforma a fé-oração de dois ou três que se reúnem em nome do Senhor (vd Mt 18,19-20). Na verdade, só chama pai a Deus quem acredita na sua íntima paternidade universal. O mesmo se diga da santificação do seu nome, da vinda do seu Reino, do cumprimento da sua Vontade, da frugalidade do pedido equilibrado do pão de cada dia no hoje, do pedido de perdão e no compromisso para com o perdão aos outros a oferecer sempre, bem como na confiança de que Ele não nos deixa cair em tentação e nos livra do mal.
E, a propósito do Pater Noster, não resisto a um apontamento. O texto de Mateus reza em grego “elthétô hê basileia sou(Mt 6,10; Lc 11,2), sendo a tradução latina “adveniat regnum tuum”, pelo que deve a tradução portuguesa ser “venha o teu reino”. Nada há que justifique o acrescento “a nós”, inscrito nas versões litúrgicas ou populares, a não ser um certo egoísmo que devia ser banido da oração. Não temos qualquer forma do pronome pessoal complemento grego (hêmin ou eis hêmâs) ou o latino (nobis ou ad nos) da 1.ª pessoa do plural, ao passo que o vocativo Pater Hêmôn ou Pater Noster inclui o “de nós” ou “nosso(Mt 6,9; Lc 11,2).
Algo semelhante sucede com as invocações “Kýrie eleison” e “Christe eleison” – “Senhor tem piedade”, “Cristo tem piedade”. Os portugueses lá acrescentaram “de nós”. Ora, tanto o verbo “eleéô”, grego, como o verbo “misereor”, latino, significam “ter compaixão, ter piedade, ter misericórdia”. Assim, é desejável que habitualmente se peça o Reino e a compaixão para todos, especialmente para quem mais precisar. É óbvio que, se a liturgia quer circunscrever o pedido “a nós”, sabe fazê-lo. Assim, na liturgia da adoração da Cruz em Sexta-feira Santa o cântico “Hágios ho Theós” termina em “Hágios athánatos, eleison hymás (por hêmás) – santo imortal tem compaixão de nós”.
Portanto, sendo a lei da oração a lei da fé, é bom que os zeladores da liturgia tenham em conta a necessidade normal da universalização das preces. Aliás, já abundam as preces “tem piedade” e simplesmente “misericórdia”, nomeadamente no estribilho da Oração Universal ou nas preces das horas canónicas, bem como nalguns cantares vernáculos do kýrie. De facto, como diz Charles de Foucauld, nós “pedimos a manifestação da glória de Deus e a salvação dos homens” ou, como afirma o Padre Mário de Oliveira, nós pedimos que se realize em nós a vontade de Deus, tal como Cristo pedia na oração ao Pai. Na verdade, Jesus garante que, se nós, apesar de sermos maus, sabemos dar boas coisas aos nossos filhos, quanto mais o nosso Pai, que está nos Céus, dará coisas boas a quem lhe pedir (cf Mt 7,11), ou melhor, a grande garantia de Jesus sobre os nossos pedidos na oração é:
Pois, se vós, que sois maus, sabeis dar coisas boas aos vossos filhos, quanto mais o Pai do Céu dará o Espírito Santo àqueles que lho pedem!” (Lc 11,13).
De facto, o Espírito Santo é o dom de Deus, prometido e enviado por Jesus, que anula todo o egoísmo para criar e fazer crescer a comunidade e, nela, o homem de Deus.
2020.03.18 – Louro de Carvalho

1 comentário:

  1. Há um testemunho da carga egoística da referida introdução do pronome "nós" na tradução do "Pai nosso" numa tradição familiar de uso da expressão. Sempre que alguém estava a tirar vantagem dos demais, dizia-se na minha família que "Pelo visto, é só 'venha a nós o Vosso Reino' e nada de 'seja feita a Vossa Vontade!'"

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