O aforismo Lex
orandi, lex credendi (a lei da oração é a lei da fé) sintetiza uma passagem do “De gratia Dei et libero voluntatis arbítrio”,
mais conhecido por “Indiculus
gratia Dei”, documento do século V compilado provavelmente por Próspero
de Aquitânia refletindo o pensamento da Igreja de Roma como resposta a
pelagianos e semipelagianos, que questionavam sobre a graça invocando
testemunhos dos Romanos Pontífices anteriores, tendo em vista a liturgia.
A passagem
essencial para o caso refere:
“Consideramos também nos sacramentos as orações que fazem os bispos,
que, proferidas pelos apóstolos e em todas as Igrejas Católicas recitadas de
maneira igual, de modo que a lei de rezar seja a lei de crer – ut legem
credendi lex statuat supplicandi” (cf A. Martimort. (1965) A Igreja em Oração: introdução à liturgia,
3.ª ed., Barcelos. Ed. Ora et Labora: pp 261-262).
O significado
preciso da frase deduz-se pelo confronto com o texto paulino seguinte:
“Recomendo,
pois, antes de tudo, que se façam preces, orações, súplicas e ações de graças
por todos os homens, pelos reis e por todos os que estão
constituídos em autoridade, a fim de que levemos uma vida serena e tranquila,
com toda a piedade e dignidade. Isto é bom e agradável diante de
Deus, nosso Salvador, que quer que todos os homens sejam
salvos e cheguem ao conhecimento da verdade.” (1Tm 2,1-4).
Ora,
recomendando o apóstolo as supraditas orações de rezar para que todos sejam
salvos e respeitando os bispos na liturgia tal recomendação – lex orandi
– fica evidente a obrigação de acreditar que a salvação é para todos – lex
credendi. Assim, abreviando o dito do “Indiculus gratia Dei” para Lex
orandi, Lex credendi, estabelece-se a relação umbilical existente entre fé
e liturgia, nos termos da qual o modo correto de rezar deriva de um reto modo
de crer. Por isso, a célebre expressão “legem credendi statuat Lex
supplicandi” (uma oração subordinada consecutiva), atribuída a Próspero de Aquitânia estabeleceu para o
ato de fé a originariedade no ato litúrgico, na esteira de Tertuliano, São
Cipriano e Santo Agostinho – cf Michele Pellegrino. (2002). Dicionário Patrístico e de Antiguidades Cristãs. Petrópolis, Vozes:
verbete Liturgia e Padres, p 835).
Por seu
turno, o Concílio Vaticano II correspondeu às expectativas contemporâneas,
exortando os fiéis, como São João Paulo II recordou na Carta Apostólica Orientale
lumen, “a mostrar com palavras e gestos de hoje as imensas riquezas
que as nossas Igrejas conservam nos depósitos das suas tradições” (n.º 4). Um destes
‘depósitos’ é, certamente, o Missale Romanum. Nele, a lex
orandi incluiu a experiência de fé de inteiras gerações, com inúmeras
particularidades caraterísticas de culturas que se foram transformando em civilizações
cristãs. Assim, a lex orandi, que
derivara da lex credendi, torna-se
fonte da mesma lex credendi, com o mérito de abrir os olhos da teologia,
da pastoral e da doutrina magisterial, às vezes, esquecido da dimensão originária
simbólico-ritual do ato de revelação e de fé. Assim, o ato do revelar-se por
parte de Deus como um ato de fé por parte dos fiéis é expresso por “signa sensibiliza”,
de modo personalístico – expressar-se – e realístico – com gestos. E o
Catecismo da Igreja Católica recorda esta máxima:
“A fé da Igreja é anterior
à fé do fiel, que é chamado a aderir a ela. Quando a Igreja celebra os
sacramentos, confessa a fé recebida dos Apóstolos. Daí o adágio antigo: ‘Lex
orandi, lex credendi – A lei da oração é a lei da fé’. (Ou: ‘Legem credendi lex statuat supplicandi –
A lei da fé é determinada pela lei da oração’, como diz
Próspero de Aquitânia [século V]). A lei
da oração é a lei da fé, a Igreja crê conforme reza. A liturgia é um elemento
constitutivo da Tradição santa e viva.” (n. 1124).
“Aliás, uma vez que os
sacramentos exprimem e desenvolvem a comunhão da fé na Igreja, a lex
orandi é um dos critérios essenciais do diálogo que procura restaurar
a unidade dos cristãos” (n. 1126).
Também o
Código do Direito Canónico tem presente esta doutrina. Assim, o Cânon 837, §
1 enfatiza o caráter público do culto divino interligando um princípio de
liturgia com os princípios da fé segundo a máxima lex orandi, lex credendi,
ao mesmo tempo que se configura como um dos pilares no qual se sustenta o
princípio de comunhão plena: profissão de fé, sacramentos e regime
eclesiástico. Veja-se o teor do referido § 1:
“As ações litúrgicas não são ações privadas, mas celebrações da própria
Igreja, que é ‘sacramento da unidade’, ou seja, o povo santo, reunido e
ordenado sob a dependência dos Bispos; por isso, pertencem a todo o corpo da
Igreja, que manifestam e afetam; atingem, porém, cada um dos seus membros de
modo diverso, em razão da diversidade das ordens, funções e participação atual”.
E o cânon
897, ao tratar da Eucaristia, ensina:
“O
augustíssimo Sacramento é a santíssima Eucaristia, na qual o próprio Senhor
Jesus Cristo se contém, se oferece e se recebe, e pela qual continuamente vive
e cresce a Igreja. O Sacrifício eucarístico, memorial da morte e ressurreição
do Senhor, em que se perpetua através dos séculos o Sacrifício da Cruz, é a
culminância e a fonte de todo o culto e da vida cristã, pelo qual se significa
e se realiza a unidade do povo de Deus e se completa a edificação do Corpo de
Cristo. Os demais sacramentos e todas as obras eclesiásticas de apostolado
relacionam-se com a santíssima Eucaristia e para ela se ordenam.”.
Quer dizer
que o augusto mistério da Eucaristia é o máximo expoente de comunhão eclesial,
pelo qual se significa e realiza a unidade do Povo de Deus e chega a termo a
edificação do Corpo de Cristo. Não há, pois, dúvida alguma sobre a necessidade
de uma ordem adequada nas celebrações litúrgicas estabelecida por quem tem
autoridade na Igreja, não para encarecer o valor ritual das rubricas, mas para
regulamentar as celebrações em ordem à participação dos crentes, à perceção da
profundidade do mistério e ao acolhimento dos frutos que ele produz.
Assim, a
regulamentação canónica não será mais um capricho de liturgistas ou de
canonistas, constituirá a atividade normativa em sentido amplo mediante a qual
se ordenam adequadamente os atos litúrgicos em sentido estrito, não sendo o
Código do Direito Canónico o repositório destas normas (vd cân. 2) e se estabelece o regime jurídico ou disciplinar para
garantir o valor intrínseco dos sinais litúrgico-sacramentais, a licitude e
dignidade de sua celebração enquanto culto sagrado, a frutuosidade enquanto bem
salvífico e a sua justa administração por se tratar de bens devidos em justiça
aos fiéis convenientemente dispostos.
Na verdade,
a Igreja crê o que reza e celebra ou reza o que ela crê. Para isso acontecer é
mister partir do mistério de Cristo, celebrado nos mistérios da
sacramentalidade litúrgica, chegando à união entre a lex orandi e a lex credendi e
desembocando na lex vivendi,
pois, se a fé tem consequências práticas na vida toda dos crentes, a oração
implica o compromisso para com a vida pessoal e comunitária. Com
efeito, a experiência espiritual cristã encontra na Liturgia a referência,
as balizas, a fonte e o cume de sua realização. Não se trata duma experiência
ritualista, mas de celebração empapada do mistério – o próprio Deus. É uma experiência
que não se circunscreve à celebração, mas que transborda para a vida. A
teologia redescobriu no movimento litúrgico a estrutura fundamental da oração
litúrgica, que ou é trinitária ou não será verdadeiramente cristã. E possibilitou
à teologia trinitária perceber-se na lex orandi, já que a lex
credendi possui a sua fonte e ápice no ato celebrativo, que é um ato
da fé. Porque não se podem separar ato de fé, ato celebrativo e ato de viver, a
lex
orandi e a lex credendi transbordam na moral
de atitude cristã. E a vida cristã é relação com a Trindade, configurando-se
deste modo uma nova “lex vivendi”.
Aliás, o
Pater Noster (vd
Mt 6,9-13; Lc 11,2-4),
ensinado por Jesus é o espelho programático da oração simples e comunitária que
enforma a fé-oração de dois ou três que se reúnem em nome do Senhor (vd
Mt 18,19-20). Na
verdade, só chama pai a Deus quem acredita na sua íntima paternidade universal.
O mesmo se diga da santificação do seu nome, da vinda do seu Reino, do
cumprimento da sua Vontade, da frugalidade do pedido equilibrado do pão de cada
dia no hoje, do pedido de perdão e no compromisso para com o perdão aos outros
a oferecer sempre, bem como na confiança de que Ele não nos deixa cair em
tentação e nos livra do mal.
E, a
propósito do Pater Noster, não
resisto a um apontamento. O texto de Mateus reza em grego “elthétô hê basileia sou” (Mt 6,10; Lc 11,2), sendo a tradução latina “adveniat regnum tuum”, pelo que deve a
tradução portuguesa ser “venha o teu
reino”. Nada há que justifique o acrescento “a nós”, inscrito nas versões litúrgicas ou populares, a não ser um
certo egoísmo que devia ser banido da oração. Não temos qualquer forma do
pronome pessoal complemento grego (hêmin ou eis hêmâs) ou o latino (nobis ou ad nos) da
1.ª pessoa do plural, ao passo que o vocativo Pater Hêmôn ou Pater Noster
inclui o “de nós” ou “nosso” (Mt 6,9; Lc 11,2).
Algo
semelhante sucede com as invocações “Kýrie
eleison” e “Christe eleison” – “Senhor tem piedade”, “Cristo tem piedade”. Os portugueses lá
acrescentaram “de nós”. Ora, tanto o
verbo “eleéô”, grego, como o verbo “misereor”, latino, significam “ter
compaixão, ter piedade, ter misericórdia”. Assim, é desejável que habitualmente
se peça o Reino e a compaixão para todos, especialmente para quem mais
precisar. É óbvio que, se a liturgia quer circunscrever o pedido “a nós”, sabe fazê-lo. Assim, na liturgia
da adoração da Cruz em Sexta-feira Santa o cântico “Hágios ho Theós” termina em “Hágios
athánatos, eleison hymás (por hêmás)
– santo imortal tem compaixão de nós”.
Portanto,
sendo a lei da oração a lei da fé, é bom que os zeladores da liturgia tenham em
conta a necessidade normal da universalização das preces. Aliás, já abundam as
preces “tem piedade” e simplesmente “misericórdia”, nomeadamente no
estribilho da Oração Universal ou nas preces das horas canónicas, bem como
nalguns cantares vernáculos do kýrie.
De facto, como diz Charles de Foucauld, nós “pedimos a manifestação da glória
de Deus e a salvação dos homens” ou, como afirma o Padre Mário de Oliveira, nós
pedimos que se realize em nós a vontade de Deus, tal como Cristo pedia na oração
ao Pai. Na verdade, Jesus garante que, se nós, apesar de sermos maus, sabemos
dar boas coisas aos nossos filhos, quanto mais o nosso Pai, que está nos Céus,
dará coisas boas a quem lhe pedir (cf Mt 7,11), ou melhor, a grande garantia de
Jesus sobre os nossos pedidos na oração é:
“Pois, se vós, que sois maus, sabeis dar coisas boas aos vossos filhos,
quanto mais o Pai do Céu dará o Espírito Santo àqueles que lho pedem!” (Lc
11,13).
De
facto, o Espírito Santo é o dom de Deus, prometido e enviado por Jesus, que
anula todo o egoísmo para criar e fazer crescer a comunidade e, nela, o homem
de Deus.
2020.03.18 –
Louro de Carvalho
Há um testemunho da carga egoística da referida introdução do pronome "nós" na tradução do "Pai nosso" numa tradição familiar de uso da expressão. Sempre que alguém estava a tirar vantagem dos demais, dizia-se na minha família que "Pelo visto, é só 'venha a nós o Vosso Reino' e nada de 'seja feita a Vossa Vontade!'"
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