sexta-feira, 27 de março de 2020

Covid-19, um inimigo invisível que nos obriga a ser altruístas


Di-lo, em entrevista de hoje, dia 27 de março, Tony Neves, sacerdote e jornalista, que vive em Roma desde finais de 2018, a dirigir, a nível mundial, o departamento Justiça e Paz da Congregação do Espírito Santo. Exortando os cristãos a que confiem nas decisões da Igreja, que tem agido com “sentido de responsabilidade social”, diz que há sérias lições a colher desta pandemia que infeta o mundo, de modo que desejar voltar ao “normal” do antes, “será um erro histórico grave”, perspetivando-se como o grande desafio a construção de “um futuro mais ecológico, mais solidário e mais fraterno, onde as pessoas tenham mais lugar”.
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Da sua experiência de isolamento social em Roma diz que é diferente de muitas outras, pois vive numa comunidade de 20 pessoas de quase outros tantos países, pelo que está em contacto com o mundo. Mantêm as distâncias entre si, tomam os cuidados necessários, estão em casa, mas o mundo entra-lhes pela casa dentro – o que os ocupa e preocupa, pois têm “uma noção mais global do que este coronavírus está a fazer por esse mundo fora”.
Pensa que o maior drama ainda está para suceder nos países onde os seus 3000 confrades vivem, trabalham e acompanham o que se passa no mundo, pois localmente não há condições rastreio, o vírus já por lá anda e não há meios suficientes para o travar. Embora ainda não tenham Missões propriamente em risco, todos os seus missionários – de que “alguns eventualmente até já estão contaminados, mas não fizeram qualquer exame para o descobrir” – já receberam orientações no sentido de seguirem rigorosamente as orientações das autoridades e das igrejas locais, pois quem está numa das missões mais interiores (em África, Ásia ou América Latina), pode achar que isto é só para os outros. Ora, “é  preciso evitar que o vírus chegue e se espalhe muito em todo o mundo”. E o missionário jornalista diz:
Nós estamos, a partir aqui de Roma, a dar muitas orientações a quem está no terreno, sobretudo nesta perspetiva: muito cuidado, muito comprimento de orientações, e que se precavejam, por antecipação, que vejam as pessoas com quem lidam, para que aquilo que está acontecer aqui na Europa não aconteça na África, na Ásia e na América Latina, onde as consequências serão muito mais desastrosas. Se o vírus entra numa favela do Rio de São Paulo, ou em bairros de Luanda ou de Maputo, será muito mais complicado o combate.”.
Comparando esta situação pandémica com o tempo de guerra em que viveu enquanto missionário – e dizendo que vai escrever na próxima semana um texto a comparar com o que foi Angola há 30 anos, durante os combates dentro duma cidade, o que é o combate contra o novo coronavírus –, alude a enormes diferenças e explana uma delas:
Uma guerra é uma situação terrível, em que temos a cabeça a prémio em cada segundo, porque pode vir uma bomba ou uma bala perdida, podem entrar os militares com metralhadoras a dar rajada, e podemos morrer. Muita gente morre. Mas, o perigo de contaminação do jeito que o coronavírus provoca, esse perigo numa guerra não existe.”.
Conta que, durante a Guerra Civil do Huambo, por vezes, saiu debaixo das balas para ir para os fundos de uns prédios celebrar missa com o povo. Porém, conseguindo passar a rua e chegar ao fundo do prédio, não ia contaminar ninguém, antes ia dar alegria e esperança com a celebração conjunta da fé, naquele contexto. Ora, agora quando falamos dum vírus que não sabemos se não estamos a levá-lo às outras pessoas ou se estas o darão a nós e nós o transmitiremos a outrem, estamos a correr e a fazer correr riscos. Trata-se de um inimigo invisível e de alto contágio. Se fosse invisível, mas soubéssemos, ao menos, que não traria grandes problemas ao nível do contágio, cada um tomaria decisões independentemente dos outros, pondo eventualmente em risco a sua vida, mas não a dos outros. Porém, mercê das caraterísticas que a ciência atribui ao Covid-19, “temos de ter um sentido muito altruísta e pensar muito também nos outros”.
Interpelado sobre se a Igreja Católica, no seu todo, reagiu adequadamente a esta pandemia, incluindo a suspensão das eucaristias coletivas e o encerramento das igrejas, o missionário disso não tem quaisquer dúvidas e justifica:
Se há coisa que Deus nos dá é inteligência, e essa inteligência ao longo dos séculos foi ganhando expressões, também no plano da investigação e da tecnologia. Hoje em dia a ciência diz-nos que um vírus como este é altamente transmissível por contágio, portanto, a partir do momento em que Deus nos diz, através dos cientistas, que este vírus tem estas caraterísticas e pode fazer estas maldades, então a Igreja tem de dar ouvidos a essas pessoas e tomar medidas de acordo com a situação.”.
Nestes termos, diz que a Igreja católica (como as outras igrejas e religiões) não tinha alternativa. E a Igreja, decidindo assim, “aceitou estar neste combate, que é difícil, mas que vamos ganhar”.
Lembrado da reflexão da sua recente crónica, do dia 26, sob o título ‘padres antivírus’, onde afirma “não peçam aos padres que violem as orientações das autoridades civis e do Papa” e face à contestação a estas medidas da parte de alguns cristãos, não condena ninguém: limita-se a dar a sua “colaboração para uma reflexão séria, que seja também uma reflexão de fé sobre este tipo de situações”. Censura a ideia de quem pensa que “tudo o que acontece de desgraça como um castigo de Deus”, tal como censura a ideia de quem olha assim para a ciência. E sustenta:
Deus é bom, e a ciência também é fruto da sabedoria que Deus dá, portanto, temos é de olhar para a ciência que nos diz: ‘as caraterísticas deste vírus são estas e estas, vamos fazer distanciamento social’. É isso que temos de fazer.”.
A única forma de combater este vírus não é só rezar mais e, neste caso, o combate não passa por “manifestações públicas de fé juntando muita gente”. E o sacerdote jornalista garante:
Nós podemos rezar, podemos descobrir uma nova forma de relação com Deus, e até de uns com os outros enquanto comunidades, respondendo com inteligência, mas também com sentido de responsabilidade social a este tipo de pandemias.”.
Por isso, assenta em que as decisões do Papa e das hierarquias são muito acertadas, pelo que as pessoas que não compreendem essas decisões devem refletir e acatar as orientações.
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A seguir, fala do projeto que está a desenvolver com o Padre Artur Teixeira, ex-presidente da Conferência dos Institutos Religiosos de Portugal e agora Conselheiro Geral dos missionários claretianos, que também está em Roma e que o desafiou a publicarem, dia sim, dia não, no Facebooke depois divulgarem-nas através de outros meios – reflexões para “ajudar as pessoas a perceber este momento a partir da nossa maneira própria de estar na vida. Começaram no dia 20. E a crónica dos ‘padres antivírus’, surgiu da necessidade que sentem de explicar a missão destes enquanto padres, como podem os cristãos e o mundo todo olhar para ela e qual é a colaboração que todos temos de dar para combater esta pandemia.
Como jornalista, sente o desafio de estar sempre atento e refletir sobre as coisas e continua a fazê-lo semanalmente no projeto ‘Lusofonias’, através do site da Ecclesia e de diversas rádios lusófonas; escreve e grava um comentário sobre um tema da atualidade, que tem sido, nos últimos tempos, sobre a temática que o Covid-19 impõe. Porfia “que este vírus não pode esconder outros problemas”, ou seja, “o mundo não se pode reduzir a este vírus”, pois continuam as guerras, a fome, as pragas de gafanhotos que dizimam uma parte da África e da Ásia, tal como persiste a instabilidade e a insegurança em muitos lugares do mundo. Por outro lado, “o Covid-19 já está a gerar problemas de desemprego”, de modo que “muita gente que vivia do seu trabalho diário não está a conseguir sobreviver”. E há idosos em casa mais ou menos abandonados e pessoas a sofrer de outras doenças, para quem agora não se olha tanto. Ora, diz o missionário jornalista, “temos de ter esta preocupação de não deixar afunilar de tal maneira a nossa reflexão e a nossa prática”, pois “o mundo continua a andar…”.
Questionado sobre se – usando a Igreja os meios digitais ao seu dispor para comunicar com os fiéis – estamos a assistir a uma nova fase de comunicação na Igreja, nada vindo a ser no futuro igual ao que era, responde que espera que o futuro seja diferente, pois é preciso descobrir outras formas de ser Igreja, de estar com as pessoas, de celebrar e de ser solidário. E Tony Neves menciona gestos simples, como o do padre que põe no Facebook a mensagem ‘eu agora não gasto tempo em celebrações e em catequeses e reuniões, por favor, pessoas mais idosas e dependentes que precisam de ir à farmácia ou ao supermercado contactem-me, eu faço isso por vocês’; e como o da quantidade de bispos e padres que celebram diariamente a Eucaristia com transmissão pela internet, com as suas meditações.
Depois, sublinha a importância do humor, que está muito presente e que é muito libertador. Não se trata de gozar com a situação, mas de “pegar nestas situações e sermos capazes de distender um bocadinho”, fazendo passar mensagens através de posts ou publicações de pequenos vídeos e filmes, que “nos ajudam a distender, a rir um bocadinho, e sobretudo a lançar perspetivas de futuro, com esperança, com alegria”. E dá uma nota de esperança e de futuro:
Porque isto vai passar! O mundo já provou muitas vezes que estas situações acontecem, e têm de ser situações que nos purifiquem e nos ajudem a partir para um amanhã melhor. É assim que eu vejo o futuro.”.
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Obviamente, como responsável mundial pelo Departamento Justiça e Paz dos missionários Espiritanos, tem normalmente de viajar e acompanhar as missões em vários países. A este respeito, refere que esta a situação ainda não tem dificultado o seu trabalho a esse nível. Aponta como próximo o Capítulo Geral na Polónia, em finais de junho, que ainda não foi desmarcado. E regista que, devendo, em termos de agenda, terminar as suas saídas com uma visita de um mês a Cabo Verde, a completou. Assim, o trabalho desta altura já era muito de casa, ou seja, preparar o Capitulo Geral. E é nisso que tem estado empenhado. Mas admite o adiamento do Capítulo Geral por força das circunstâncias, sendo que, nesse caso, os trabalhados sofrerão alterações. Mas está a ser ajudado por todos e espera, como todos, que isto se resolva depressa.
E, quanto a lições a colher no pós-pandemia, nomeadamente ao nível do sistema económico, sustenta que fazem agora mais sentido os alertas do Papa para a necessidade dum novo modelo económico. E adverte que, “se o que queremos depois da passagem deste vírus é voltar ao ‘normal’, estaremos a cometer um erro histórico grave”. Ora, o mundo, que “investiu muito a pensar na guerra, nas armas e no terrorismo”, devia ter investido “na saúde, na educação e na ciência, porque isso é que nos teria agora dado ferramentas para estarmos preparados para a chegada desta pandemia”. E, apostando no pensamento num futuro diferente, defende:
Temos de pensar num futuro com um estilo de vida mais simples. O Papa propôs isso na ‘Laudato Si’ e noutros documentos. Temos de ter uma economia muito mais solidária e assente nas pessoas, uma ecologia mais integral, o respeito pela natureza.”.
E, anotando que bastou um mês (com esta pandemia) para uma série de indicadores serem neste momento muito melhores do que eram há dois meses, por exemplo a poluição e afins, quer que aprendamos com esta experiência forçada para, de forma livre e responsável, construirmos um futuro mais ecológico, solidário e fraterno onde as pessoas tenham mais lugar.
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Que o Covid-19 nos leve ousadamente ao abandono do individualismo e do egoísmo e nos abra para maior solidariedade e sentido comunitário!
2020.03.27 – Louro de Carvalho

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