segunda-feira, 9 de março de 2020

A estranha quarentena voluntária do nosso Presidente da República


Como anunciou, a 8 de março, a Presidência da República, Rebelo de Sousa suspendeu por duas semanas a agenda de contactos nacionais e estrangeiros e vai permanecer em casa sob monitorização, “apesar de não apresentar nenhum sintoma” de infeção por Covid-19.
A decisão foi tomada depois de o Presidente da República ter estado no passado dia 3 (terça-feira), no Palácio de Belém, com uma turma duma escola de Felgueiras (distrito do Porto), que foi encerrada posteriormente devido ao internamento de um aluno.
A nota da Presidência da República é explícita:  
Atendendo ao que se sabe hoje e não se sabia na terça-feira passada, tendo ouvido as autoridades de saúde, o Presidente da República, apesar de não apresentar qualquer sintoma virótico, decidiu cancelar toda a sua atividade pública, que compreendia várias presenças com número elevado de portugueses, assim como a própria ida a Belém, durante as próximas duas semanas. O mesmo fará com deslocações previstas ao estrangeiro.”.
Segundo a predita nota, “nem o aluno ora internado, nem a sua turma estiveram em Belém”.
No dia 3, uma turma da aludida escola de Felgueiras tinha estado em Belém, no âmbito da iniciativa “Artistas no Palácio de Belém”, numa sessão a que assistiu Marcelo Rebelo de Sousa, “tendo, no final, tirado fotografias com os alunos e professores, sem, no entanto, os ter cumprimentado um a um”.
A Presidência da República refere também que estão já em curso contactos “com todos os que estiveram presentes na sessão de terça-feira”, tendo sido suspensa a iniciativa “Artistas no Palácio de Belém”, que deveria durar até ao fim do ano letivo.
Reforça ainda a nota em referência de Belém:
No momento em que todos os portugueses demonstram elevada maturidade cívica perante o surto virótico, entende o Presidente da República que deve dar exemplo reforçado de prevenção, sem embargo de continuar a trabalhar na sua residência particular”.
Assim, embora estivesse previsto, em agenda não oficial, que o Presidente da República participaria na procissão do Senhor dos Passos, em Lisboa, no início da tarde do domingo, dia 8, o Chefe de Estado acabou por não comparecer. Igualmente, apesar de a agenda oficial prever a visita do Presidente da República à Unidade Especial de Polícia (UEP) da Polícia de Segurança Pública, na Amadora, distrito de Lisboa, Marcelo não compareceu em virtude da sua quarentena voluntária. Aliás, já no passado dia 7, o Presidente da República tinha referido que decidiu reduzir “uma parte da agenda” a nível nacional por causa do surto de Covid-19, “para não criar problemas em concentrações em recintos fechados”, mas estimava manter as viagens previstas. E, quanto às viagens internacionais, entre as quais uma a Espanha no final do mês para participar no encontro da COTEC Europa, em Málaga, disse que estaria “dependente de outros Estados”, que tinham manifestado intenção de manter os programas previstos.
Em Portugal, estão confirmados cerca de 40 casos de infeção e o Governo anunciou a suspensão temporária de visitas em hospitais, lares e estabelecimentos prisionais na região Norte. E foram encerrados temporariamente alguns estabelecimentos do ensino secundário e do superior.
A Ministra da Saúde admitiu que o risco da epidemia em Portugal poderá ser reavaliado nas próximas horas e levar à adoção de novas medidas excecionais.
No dia 3, depois da iniciativa “Artistas em Belém”, o Presidente da República participou na cerimónia de entrega do Prémio BIAL Biomedicina 2019, em Lisboa. No dia seguinte, esteve no Camões – Instituto da Cooperação e da Língua I.P, também em Lisboa, na iniciativa “Camões dá que falar” e esteve reunido, no Palácio de Belém, com os presidentes das câmaras municipais de Lisboa e Porto. No dia 5, esteve no Hospital Curry Cabral, em Lisboa, a visitar os doentes infetados com Covid-19 ali estavam internados, tendo falado “por intercomunicador” com três doentes infetados. No mesmo dia, participou na sessão de encerramento da conferência “Portugal… e agora?”, promovida pelo Público no âmbito dos seus 30 anos. No dia 6, não teve agenda aberta à comunicação social, mas no dia 7 esteve presente na homenagem à economista Manuela Silva, que decorreu no Instituto Superior de Economia e Gestão, em Lisboa, e visitou os doentes infetados com Covid-19 no Hospital de São João, no Porto, e esteve, à noite na comemoração do centenário do Teatro Nacional São João, juntamente com o Primeiro-Ministro.
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Não é muito compreensível esta atitude presidencial, sobretudo pelo facto de hoje, dia 9, a Presidência da República ter divulgado que “foi negativo o resultado do teste efetuado, ao começo da tarde, ao Presidente da República”. Estranhamente, a mesma nota adianta que, “apesar de continuar sem sintomas viróticos, o Presidente da República continuará a trabalhar em casa até perfazer as duas semanas referidas na nota ontem divulgada”.
Ora, era suposto, como sucede noutros países em circunstâncias análogas, promover o isolamento de áreas e indivíduos e grupos de infetados ou suspeitos, mas não a autoridade máxima. Protegê-la não equivale a isolá-la. É justa a suspensão das iniciativas previstas de ajuntamentos para o Palácio de Belém ou das viagens internacionais. Porém, é ainda menos compreensível o autoisolamento marcelino prolongado, se o aluno internado e a sua turma não se cruzaram com o Presidente e se os testes a que se submeteu deram resultados negativos. E não é crível que a Direção-Geral da Saúde lhe tenha imposto ou recomendado a quarentena. Só a conhecida hipocondria do Presidente a pode explicar, embora a não justifique.
Compreendendo-se o cancelamento de atividades extraordinárias, não se entende muito bem que negócios do Estado sejam despachados a partir da residência particular do Chefe de Estado, como será o caso da promulgação (ou eventual veto) da Lei do Orçamento do Estado. Aliás, Marcelo criou um precedente, a que ninguém reagiu, quando tratou de negócios do Estado e promulgou diplomas partir do hospital onde foi intervencionado por via duma hérnia umbilical. Os seus antecessores promulgaram diplomas a partir de lugares diferentes de Belém, mas fizeram-no no âmbito de presidências abertas em que, por exemplo, o Paço dos Duques em Guimarães se constituiu em sede da Presidência. Ora, a casa particular de Marcelo não pode ser considerada sede da Presidência: por exemplo, não irão ali embaixadores apresentar as cartas credenciais. Por isso, a segurança pessoal (que tem a componente médica) deveria curar da deslocação do Presidente a Belém, onde até o supremo magistrado da nação pode assentar arraiais.
Se, como afirma, é amigo do Papa, pode acolher o seu exemplo: apesar de este residir habitualmente em Santa Marta e ter cancelado atos em que é notório o ajuntamento de pessoas, tem-se deslocado ao Palácio Apostólico para atos oficiais como a recitação do Angelus e as audiências gerais e protocolares. E, de facto, entrou no Palácio Apostólico um indivíduo infetado com o Covid-19, o que levou a Direção de Saúde do Vaticano, a reboque das autoridades de saúde italianas, talvez exageradas, a ditar o aconselhamento acolhido pelo Papa.
Enfim, de Presidente dos afetos, tão expansivo e charmoso, passou Marcelo a refugiado em casa, marcado pela excessiva cautela em nome da prevenção. Ora, nem oito nem oitenta…
Exemplo não é. Quem se pode arrogar a ter emprego que o deixe trabalhar a partir de casa? 
2020.03.09 – Louro de Carvalho

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