segunda-feira, 16 de março de 2020

Estado de emergência para prevenir a proliferação do Covid-19


Nos termos do art.º 19.º da Constituição da República Portuguesa (CRP), que versa a “suspensão do exercício de direitos”, fica prevista a declaração do estado de sítio ou o estado de emergência “no todo ou em parte do território nacional, nos casos de agressão efetiva ou iminente por forças estrangeiras, de grave ameaça ou perturbação da ordem constitucional democrática ou de calamidade pública” (n.º 2).
O n.º 3 do mesmo artigo estabelece que “o estado de emergência é declarado quando os pressupostos referidos (…) se revistam de menor gravidade e apenas pode determinar a suspensão de alguns dos direitos, liberdades e garantias suscetíveis de serem suspensos”.
Em termos genéricos, o n.º 1 adverte que “os órgãos de soberania não podem, conjunta ou separadamente, suspender o exercício dos direitos, liberdades e garantias, salvo em caso de estado de sítio ou de estado de emergência, declarados na forma prevista na Constituição”.
Por sua vez, o n.º 4 determina que a opção por estas medidas excecionais, bem como a respetiva declaração e execução, “deve respeitar o princípio da proporcionalidade e limitar-se, nomeadamente quanto à sua extensão e duração e aos meios utilizados, ao estritamente necessário ao pronto restabelecimento da normalidade constitucional”.
O n.º 5 estabelece que a respetiva declaração “é adequadamente fundamentada e contém a especificação dos direitos, liberdades e garantias cujo exercício fica suspenso, não podendo o estado declarado ter duração superior a quinze dias, ou à duração fixada por lei quando em consequência de declaração de guerra, sem prejuízo de eventuais renovações, com salvaguarda dos mesmos limites”.
Por outro lado, nos termos do n.º 6, esta situação excecional “em nenhum caso pode afetar os direitos à vida, à integridade pessoal, à identidade pessoal, à capacidade civil e à cidadania, a não retroatividade da lei criminal, o direito de defesa dos arguidos e a liberdade de consciência e de religião”. Mais ainda, segundo o n.º 7, só pode alterar a normalidade constitucional nos termos previstos na Constituição e na lei, não podendo nomeadamente afetar a aplicação das regras constitucionais relativas à competência e ao funcionamento dos órgãos de soberania e de governo próprio das regiões autónomas ou os direitos e imunidades dos respetivos titulares”.
Por fim, o n.º 8 estabelece que esta situação “confere às autoridades competência para tomarem as providências necessárias e adequadas ao pronto restabelecimento da normalidade”.
Depois, há vários artigos da CRP que estabelecem a capacidade de intervenção de cada órgão de soberania. Assim, a alínea d) do art.º 134.º, estabelece, no âmbito da competência do Presidente da República na prática de atos próprios, a competência de “declarar o estado de sítio ou o estado de emergência, observado o disposto nos artigos 19.º e 138.º”.
Como já se analisou o art.º 19.º, veja-se agora o que estabelece o art.º 138.º:
“1. A declaração do estado de sítio ou do estado de emergência depende de audição do Governo e de autorização da Assembleia da República ou, quando esta não estiver reunida nem for possível a sua reunião imediata, da respetiva Comissão Permanente.
“2. A declaração do estado de sítio ou do estado de emergência, quando autorizada pela Comissão Permanente da Assembleia da República, terá de ser confirmada pelo Plenário logo que seja possível reuni-lo.”.
Quer dizer que a competência para esta declaração é do Presidente da República, mas não se trata dum poder absoluto e/ou solitário, pois está condicionada à prévia audição do Governo e autorização expressa do Parlamento. 
Assim, a alínea l) do art.º 161.º inscreve na linha da competência política e legislativa da Assembleia da República a competência de “autorizar e confirmar a declaração do estado de sítio e do estado de emergência”; e a alínea f) do art.º 197.º estabelece como uma das competências do Governo no exercício de funções políticas a competência de “pronunciar-se sobre a declaração do estado de sítio ou do estado de emergência”.
Acresce que o art.º 275.º – depois de referir que “as Forças Armadas podem ser incumbidas, nos termos da lei, de colaborar em missões de proteção civil, em tarefas relacionadas com a satisfação de necessidades básicas e a melhoria da qualidade de vida das populações, e em ações de cooperação técnico-militar no âmbito da política nacional de cooperação” (n.º 6) – estabelece que “as leis que regulam o estado de sítio e o estado de emergência fixam as condições do emprego das Forças Armadas quando se verifiquem essas situações(n.º 7).
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Como se vê, a possibilidade de declaração do estado de emergência, que tantos reclamam a propósito da pandemia do Covid-19, está prevista na Constituição, embora em democracia nunca tenha sido utilizado este instrumento que suspende direitos fundamentais. Ora, como o país não está em caso de “agressão efetiva ou iminente por forças estrangeiras, de grave ameaça ou perturbação da ordem constitucional democrática”, de acordo com o material citado, a eventual declaração de emergência deve ser precedida ou acompanhada da declaração de calamidade pública. A iniciativa, como decorre da leitura da Constituição, compete ao Presidente da República, com audição do Governo e autorização do Parlamento.
É de esclarecer que o estado de emergência não “suprime” direitos fundamentais, mas apenas os “suspende” durante um determinado período de tempo, pelo que se trata dum instrumento que nunca pode ser imposto sem uma justificação muito forte. Assim, o Presidente da República deve avaliar se a situação que o país está a atravessar integra ou não o conceito de calamidade pública, o que parece estar subjacente na posição do Governo, que disse aceitar a decisão presidencial, e no que transparece da posição dos partidos com assento parlamentar, que parece ser quase unânime. Só falta que o Conselho de Estado, na próxima quarta-feira, dê uma base confortável ao Presidente para tal decisão. Na verdade, o Conselho de Estado “é o órgão político de consulta do Presidente da República(art.º 141.º), que deve pronunciar-se sobre: a dissolução da Assembleia da República e das Assembleias Legislativas das regiões autónomas; a demissão do Governo, quando tal se torne necessário para assegurar o regular funcionamento das instituições democráticas; a declaração da guerra e a feitura da paz; os atos do Presidente da República interino; nos demais casos previstos na Constituição; e, em geral, aconselhar o Presidente no exercício das suas funções, quando este lho solicitar (cf art.º 145.º).
Estamos no âmbito das medidas preventivas, por exemplo a imposição de recolher obrigatório, barreiras na estrada ou controlo de circulação de pessoas, devendo ser observado o princípio constitucional da proporcionalidade, por forma a evitar excessos. Foi para garantir ao máximo o cumprimento das regras que houve a grande preocupação por parte do legislador constituinte em que nenhum órgão de soberania possa isoladamente declarar o estado de emergência.
Ora, porque o estado de emergência nunca foi usado em democracia, não há jurisprudência sobre a matéria e mesmo a doutrina pouco se tem debruçado sobre o assunto. De acordo com a lei fundamental, a declaração do estado de emergência pode ocorrer no todo ou em parte do território nacional, nos casos de agressão efetiva ou iminente por forças estrangeiras, de grave ameaça ou perturbação da ordem constitucional democrática ou de calamidade pública, sendo que o estado de sítio, mais rigoroso que o de emergência, fica reservado para casos mais graves, quando se verifiquem ou estejam iminentes atos de força ou insurreição que ponham em causa a soberania, a independência, a integridade territorial ou a ordem constitucional democrática e não possam ser eliminados pelos meios normais previstos na Constituição e na lei.
Na prática, a declaração do estado de emergência significa que há um conjunto de direitos fundamentais, previstos na CRP, que ficam suspensos durante um certo período de tempo. A Constituição estipula expressamente que em caso algum podem ser postos em causa os direitos à vida, à integridade pessoal, à identidade pessoal, à capacidade civil e à cidadania, que nunca será possível a retroatividade da lei criminal nem afetado o direito de defesa dos arguidos e a liberdade de consciência e religião e que não pode ser posto em causa o regular funcionamento dos órgãos de soberania.
No caso iminente, o que estará em causa é essencialmente o direito à liberdade de circulação, na medida em que as pessoas poderão ser impedidas de sair de casa ou de circular livremente. Será possível, por exemplo, a imposição dum recolher obrigatório, a colocação de barreiras na estrada ou o controlo de pessoas que usem os transportes públicos, como exemplifica o constitucionalista Jorge Pereira da Silva. No caso das empresas, ficará suspensa a liberdade de iniciativa económica, o que já está a acontecer de certo modo quando se  determina que determinadas atividades têm de encerrar ou cumprir horários específicos, mas pode haver um alargamento, com o encerramento compulsivo de todas as atividades económicas que não sejam fundamentais. A duração máxima é 15 dias, de acordo com a CRP, que admite eventuais renovações, com salvaguarda dos limites estabelecidos constitucionalmente.  
Como ficou expresso, deverá ser o Presidente da República a tomar a iniciativa de solicitar à Assembleia da República, em mensagem fundamentada, autorização para declarar o estado de emergência, sendo que Marcelo já anunciou que reunirá o Conselho de Estado no próximo dia 18 para ouvir os conselheiros sobre esta matéria, após o que deverá ouvir o Governo e obter autorização da Assembleia da República. O pedido apresentado pelo Presidente da República ao Parlamento terá de ser fundamentado e conter a especificação dos direitos, liberdades e garantias cujo exercício fica suspenso.
Em contrapartida à suspensão de direitos, de acordo com a Constituição, a lei prevê, se necessário, o reforço dos poderes das autoridades administrativas civis e o apoio às mesmas por parte das Forças Armadas – reforço que deverá estar definido no decreto do Presidente da República que declara o estado de emergência e cuja execução compete ao Governo.
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Enfim, veremos o que o Presidente da República decidirá no sentido da asserção primoministerial de que “desejamos o melhor, mas devemos estar preparados para o pior”.
2020,03.16 – Louro de Carvalho

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