Nos
termos do art.º 19.º da Constituição da República Portuguesa (CRP), que versa a “suspensão do exercício de direitos”,
fica prevista a declaração do estado de sítio ou o estado de emergência “no todo ou em parte do território
nacional, nos casos de agressão efetiva ou iminente por forças estrangeiras, de
grave ameaça ou perturbação da ordem constitucional democrática ou de
calamidade pública” (n.º 2).
O
n.º 3 do mesmo artigo estabelece que “o
estado de emergência é declarado quando os pressupostos referidos (…) se revistam de menor gravidade e
apenas pode determinar a suspensão de alguns dos direitos, liberdades e
garantias suscetíveis de serem suspensos”.
Em termos genéricos, o n.º 1 adverte que “os órgãos de soberania não podem,
conjunta ou separadamente, suspender o exercício dos direitos, liberdades e
garantias, salvo em caso de estado de sítio ou de estado de emergência, declarados
na forma prevista na Constituição”.
Por sua
vez, o n.º 4
determina que a opção por estas medidas excecionais, bem como a respetiva
declaração e execução, “deve respeitar o princípio da proporcionalidade e limitar-se,
nomeadamente quanto à sua extensão e duração e aos meios utilizados, ao
estritamente necessário ao pronto restabelecimento da normalidade
constitucional”.
O n.º 5
estabelece que a respetiva declaração
“é adequadamente fundamentada e contém a especificação dos direitos, liberdades
e garantias cujo exercício fica suspenso, não podendo o estado declarado ter
duração superior a quinze dias, ou à duração fixada por lei quando em
consequência de declaração de guerra, sem prejuízo de eventuais renovações, com
salvaguarda dos mesmos limites”.
Por
outro lado, nos termos do n.º 6, esta situação excecional “em nenhum caso pode afetar os
direitos à vida, à integridade pessoal, à identidade pessoal, à capacidade
civil e à cidadania, a não retroatividade da lei criminal, o direito de defesa
dos arguidos e a liberdade de consciência e de religião”. Mais ainda, segundo o
n.º 7, só pode alterar a normalidade constitucional nos termos previstos na
Constituição e na lei, não podendo nomeadamente afetar a aplicação das regras
constitucionais relativas à competência e ao funcionamento dos órgãos de
soberania e de governo próprio das regiões autónomas ou os direitos e
imunidades dos respetivos titulares”.
Por
fim, o n.º 8 estabelece que esta
situação “confere às autoridades competência para tomarem as providências necessárias
e adequadas ao pronto restabelecimento da normalidade”.
Depois, há vários artigos da CRP que estabelecem
a capacidade de intervenção de cada órgão de soberania. Assim, a alínea d) do
art.º 134.º, estabelece, no âmbito da competência do Presidente da República na
prática de atos próprios, a competência de “declarar
o estado de sítio ou o estado de emergência, observado o disposto nos artigos
19.º e 138.º”.
Como já
se analisou o art.º 19.º, veja-se agora o que estabelece o art.º 138.º:
“1. A
declaração do estado de sítio ou do estado de emergência depende de audição do
Governo e de autorização da Assembleia da República ou, quando esta não estiver
reunida nem for possível a sua reunião imediata, da respetiva Comissão
Permanente.
“2. A
declaração do estado de sítio ou do estado de emergência, quando autorizada
pela Comissão Permanente da Assembleia da República, terá de ser confirmada
pelo Plenário logo que seja possível reuni-lo.”.
Quer
dizer que a competência para esta declaração é do Presidente da República, mas
não se trata dum poder absoluto e/ou solitário, pois está condicionada à prévia
audição do Governo e autorização expressa do Parlamento.
Assim, a
alínea l) do art.º 161.º inscreve na linha da competência política e
legislativa da Assembleia da República a competência de “autorizar e confirmar a declaração do estado de sítio e do estado de
emergência”; e a alínea f) do art.º 197.º estabelece como uma das
competências do Governo no exercício de funções políticas a competência de “pronunciar-se sobre a declaração do estado
de sítio ou do estado de emergência”.
Acresce
que o art.º 275.º – depois de referir que “as Forças Armadas podem ser
incumbidas, nos termos da lei, de colaborar em missões de proteção civil, em
tarefas relacionadas com a satisfação de necessidades básicas e a melhoria da
qualidade de vida das populações, e em ações de cooperação técnico-militar no
âmbito da política nacional de cooperação” (n.º 6) – estabelece que “as leis que regulam o estado de sítio e o
estado de emergência fixam as condições do emprego das Forças Armadas quando se
verifiquem essas situações” (n.º 7).
***
Como se vê,
a possibilidade de declaração do estado de emergência, que tantos reclamam a
propósito da pandemia do Covid-19, está prevista na Constituição, embora em
democracia nunca tenha sido utilizado este instrumento que suspende direitos
fundamentais. Ora, como o país não está em
caso de “agressão efetiva ou iminente por forças estrangeiras, de grave ameaça
ou perturbação da ordem constitucional democrática”, de acordo com o material citado, a eventual declaração de
emergência deve ser precedida ou acompanhada da declaração de calamidade pública. A iniciativa, como decorre da
leitura da Constituição, compete ao Presidente da República, com audição do
Governo e autorização do Parlamento.
É de
esclarecer que o estado de emergência não “suprime” direitos fundamentais, mas apenas
os “suspende” durante um determinado período de tempo, pelo que se trata dum
instrumento que nunca pode ser imposto sem uma justificação muito forte. Assim,
o Presidente da República deve avaliar se a situação que o país está a
atravessar integra ou não o conceito de calamidade pública, o que parece estar
subjacente na posição do Governo, que disse aceitar a decisão presidencial, e
no que transparece da posição dos partidos com assento parlamentar, que parece
ser quase unânime. Só falta que o Conselho de Estado, na próxima quarta-feira,
dê uma base confortável ao Presidente para tal decisão. Na verdade, o Conselho
de Estado “é o órgão político de consulta do Presidente
da República” (art.º 141.º), que deve pronunciar-se sobre: a
dissolução da Assembleia da República e das Assembleias Legislativas das
regiões autónomas; a demissão do Governo, quando tal se torne necessário para
assegurar o regular funcionamento das instituições democráticas; a declaração
da guerra e a feitura da paz; os atos do Presidente da República interino; nos
demais casos previstos na Constituição; e, em geral, aconselhar o Presidente no
exercício das suas funções, quando este lho solicitar (cf
art.º 145.º).
Estamos no
âmbito das medidas preventivas, por exemplo a imposição de recolher
obrigatório, barreiras na estrada ou controlo de circulação de pessoas, devendo
ser observado o princípio constitucional da proporcionalidade, por forma a
evitar excessos. Foi para garantir ao máximo o cumprimento das regras que houve
a grande preocupação por parte do legislador constituinte em que nenhum órgão
de soberania possa isoladamente declarar o estado de emergência.
Ora, porque o estado de emergência nunca foi
usado em democracia, não há jurisprudência sobre a matéria e mesmo a doutrina
pouco se tem debruçado sobre o assunto. De acordo com a lei fundamental, a
declaração do estado de emergência pode ocorrer no todo ou em parte do
território nacional, nos casos de agressão efetiva ou iminente por forças
estrangeiras, de grave ameaça ou perturbação da ordem constitucional democrática
ou de calamidade pública, sendo que o estado de sítio, mais rigoroso que o de
emergência, fica reservado para casos mais graves, quando se verifiquem ou
estejam iminentes atos de força ou insurreição que ponham em causa a soberania,
a independência, a integridade territorial ou a ordem constitucional
democrática e não possam ser eliminados pelos meios normais previstos na
Constituição e na lei.
Na prática, a
declaração do estado de emergência significa que há um conjunto de direitos
fundamentais, previstos na CRP, que ficam suspensos durante um certo período de
tempo. A Constituição estipula expressamente que em caso algum podem ser postos
em causa os direitos à vida, à integridade pessoal, à identidade pessoal, à
capacidade civil e à cidadania, que nunca será possível a retroatividade da lei
criminal nem afetado o direito de defesa dos arguidos e a liberdade de
consciência e religião e que não pode ser posto em causa o regular funcionamento
dos órgãos de soberania.
No caso
iminente, o que estará em causa é essencialmente o direito à liberdade de
circulação, na medida em que as pessoas poderão ser impedidas de sair de casa
ou de circular livremente. Será possível, por exemplo, a imposição dum recolher
obrigatório, a colocação de barreiras na estrada ou o controlo de pessoas que
usem os transportes públicos, como exemplifica o constitucionalista Jorge
Pereira da Silva. No caso das empresas, ficará suspensa a liberdade de
iniciativa económica, o que já está a acontecer de certo modo quando se
determina que determinadas atividades têm de encerrar ou cumprir horários
específicos, mas pode haver um alargamento, com o encerramento compulsivo de
todas as atividades económicas que não sejam fundamentais. A duração máxima é 15 dias, de acordo
com a CRP, que admite eventuais renovações, com salvaguarda dos limites
estabelecidos constitucionalmente.
Como ficou expresso, deverá ser o
Presidente da República a tomar a iniciativa de solicitar à Assembleia da
República, em mensagem fundamentada, autorização para declarar o estado de
emergência, sendo que Marcelo já anunciou que reunirá o Conselho de Estado no
próximo dia 18 para ouvir os conselheiros sobre esta matéria, após o que deverá
ouvir o Governo e obter autorização da Assembleia da República. O pedido
apresentado pelo Presidente da República ao Parlamento terá de ser fundamentado
e conter a especificação dos direitos, liberdades e garantias cujo exercício
fica suspenso.
Em
contrapartida à suspensão de direitos, de acordo com a Constituição, a lei
prevê, se necessário, o reforço dos poderes das autoridades administrativas
civis e o apoio às mesmas por parte das Forças Armadas – reforço que deverá
estar definido no decreto do Presidente da República que declara o estado de
emergência e cuja execução compete ao Governo.
***
Enfim,
veremos o que o Presidente da República decidirá no sentido da asserção
primoministerial de que “desejamos o melhor, mas devemos estar preparados para
o pior”.
2020,03.16 –
Louro de Carvalho
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