quarta-feira, 18 de março de 2020

Estado de emergência: razões, conteúdo e consequências


O Chefe de Estado decretou o estado de emergência em todo o território nacional para reforçar o combate ao novo coronavírus. Para tanto, precisou de, ouvido o Governo e (facultativamente) do Conselho de Estado, requerer a autorização à Assembleia da República, conseguindo assim armas para a que, nas palavras do Presidente da República, é “uma verdadeira guerra”.
Houve conselheiros que levantaram dúvidas sobre declaração de Estado de emergência, mas no fim quase ninguém se opôs à intenção de Marcelo. Foram três horas e quarenta e cinco minutos em videoconferência, mas os conselheiros não tiveram dificuldade em alinhar as suas posições. Quase sem divergências, o Conselho de Estado deu o parecer favorável à decisão de declarar o estado de emergência, o que permite ao Governo restringir algumas liberdades para conter o surto de Covid-19. A esmagadora maioria dos conselheiros fez intervenções favoráveis. Houve, no entanto, conselheiros que suscitaram dúvidas e outro que manifestou reservas claras, mas ninguém se opôs à ideia do Presidente de decretar estado de emergência. Um dos conselheiros presentes na reunião confessou que “não houve votação”, como avisou, desde o princípio o Presidente, mas se houvesse, a perceção é de que “teria sido aprovado por unanimidade”.
O Governo pode usar ou não as prerrogativas concedidas, mas, como explicava um conselheiro, está protegido de ver declaradas como inconstitucionais “algumas das suas ações necessárias”.
Marcelo não mostrou o documento em causa aos participantes na reunião, mas informou os conselheiros sobre o tipo de liberdades que ia propor que pudessem ser restringidas e as que não podem ser limitadas neste combate. A principal liberdade que vai ser vedada – como consta do decreto e que o Presidente permite que o Governo possa restringir – é a livre circulação de pessoas, ficando claro que tem de ser garantido o abastecimento e o acesso a bens essenciais .
Na reunião falou-se também das liberdades que não podem ser restringidas: liberdade de imprensa, liberdade de expressão, liberdade de se deslocar para o local de trabalho ou para adquirir mantimentos. No fundo, trata-se duma autorização política ao Governo, o que significa que o Decreto do Presidente da República n.º 14-A/2020, de 18 de março, não apresenta nenhuma medida, competindo ao executivo de Costa decidir as medidas a tomar na próxima reunião do Conselho de Ministros.
E, embora a saúde fosse a prioridade de todos, houve outra matéria que levantou dúvidas aos conselheiros de Estado. É, aliás, uma das questões que mais reservas tem levantado entre quem duvida da eficácia e teme as repercussões duma medida desta gravidade: o impacto económico. Alguns dos participantes mostraram-se preocupados e Marcelo garantiu que em breve (provavelmente em maio) convocará uma reunião Conselho de Estado para abordar a questão.
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Consciente da divisão de que o recurso ao estado de emergência gera entre os portugueses, Marcelo, em comunicação ao país, apresentou as cinco razões essenciais que explicam o passo:
- Antecipação e reforço da solidariedade entre poderes públicos e deles com o Povo. Embora o povo português tenha sido exemplar, este é um sinal político dado por Presidente da República, Assembleia da República e Governo como afirmação de solidariedade institucional, de confiança e determinação, para o que tiver de ser feito nestes dias, semanas, e meses.
- Prevenção, pois mais vale prevenir do que remediar. O que foi aprovado não impõe ao Governo decisões concretas, mas dá-lhe uma mais vasta base de Direito para as tomar, assim lhe permitindo tomar, com rapidez e em patamares ajustados, medidas necessárias no futuro.
- Certeza, uma base de Direito que dá o quadro geral de intervenção e garante que, acabada a crise, não venha a ser questionado o fundamento jurídico das medidas já tomadas e a tomar.
- Contenção, pois um estado de emergência confinado não atinge o essencial dos direitos fundamentais, porque obedece ao fim preciso do combate à crise da saúde pública e da criação de condições de normalidade na produção e distribuição de bens essenciais a esse combate.
- Flexibilidade. De facto, o estado de emergência dura 15 dias, no fim dos quais pode ser renovado, com avaliação, no terreno, do estado da pandemia e sua previsível evolução.
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O decreto de declaração do estado de emergência suspende direitos, liberdades e garantias para evitar o contágio pelo novo coronavírus. Nestes termos, fica “parcialmente suspenso”:
- O direito de deslocação e fixação em qualquer parte do território nacional. As autoridades podem impor o confinamento compulsivo no domicílio ou em estabelecimento de saúde e cercas sanitárias, bem como interditar deslocações e a permanência injustificada na via pública. Pode sair-se de casa para atividades profissionais, obtenção de cuidados de saúde, assistência a terceiros e “por outras razões ponderosas” que sejam estipuladas pelo Governo.
- O direito de propriedade e iniciativa económica privada. Assim, as autoridades podem requisitar “a prestação de quaisquer serviços e a utilização de bens móveis e imóveis, de unidades de prestação de cuidados de saúde, de estabelecimentos comerciais e industriais de empresas e outras unidades produtivas”, bem como determinar a “obrigatoriedade de abertura, laboração e funcionamento” de certas empresas, estabelecimentos ou meios de produção.
- Alguns direitos dos trabalhadores, podendo estes ser chamados a trabalhar, independentemente do tipo de vínculo. Podem, “se necessário”, ter de desempenhar “funções em local diverso, em entidade diversa e em condições e horários de trabalho diversos dos que correspondem ao vínculo existente”. E fica “suspenso o exercício do direito à greve na medida em que possa comprometer” infraestruturas e unidades essenciais à população.
- A circulação internacional. Podem ser impostos controlos fronteiriços de pessoas e bens, incluindo controlos sanitários em portos e aeroportos para “impedir a entrada em território nacional ou de condicionar essa entrada” e tomadas medidas para “assegurar a circulação internacional de bens e serviços essenciais”.
- O direito de reunião e de manifestação. Pode ser limitada ou proibida a realização de reuniões ou manifestações que, pelo número de pessoas envolvidas, potenciem a transmissão do vírus.
- A liberdade de culto na sua dimensão coletiva. As autoridades públicas passam a ter o poder de limitar ou proibir a “realização de celebrações de cariz religioso e de outros eventos de culto que impliquem uma aglomeração de pessoas”.
- O direito de resistência. Fica impedido todo o ato de resistência ativa ou passiva às ordens emanadas das autoridades públicas competentes em execução do estado de emergência”.
Porém, há direitos fundamentais que permanecerão em vigor neste estado de emergência. Entre os direitos que permanecem ativos estão o direito à vida, à integridade pessoal, à identidade pessoal, à capacidade civil e à cidadania, à não retroatividade da lei criminal, à defesa dos arguidos e à liberdade de consciência e de religião. Também não são afetadas a liberdade de expressão nem a de informação. “Em caso algum pode ser posto em causa o princípio do Estado unitário ou a continuidade territorial do Estado”. E a Procuradoria-Geral da República e a Provedoria de Justiça manter-se-ão, doravante, “em sessão permanente”.
Em carta a acompanhar o projeto de decreto, remetida à Assembleia da República, Marcelo salienta que o documento permite “adotar medidas necessárias à contenção da propagação da doença Covid-19” e que o Governo deu “o seu acordo” à declaração de estado de emergência.
Faltava, assim, a Assembleia da República pronunciar-se sobre a declaração do estado de emergência para o mesmo entrar em vigor. O Parlamento reuniu na tarde deste dia 18 para discutir e votar o documento, numa altura em que existem pelo menos 642 casos confirmados de infeção pelo novo coronavírus.
A declaração do estado de emergência decretada pelo Presidente da República foi autorizada pela Assembleia da República de modo que o Governo está capacitado para adotar medidas necessárias à contenção da propagação da doença Covid-19, que está a assolar o país e o mundo. Assim, os portugueses apenas poderão ausentar-se de casa para saídas estritamente necessárias, como idas ao supermercado ou farmácia. Quem não cumprir incorre em crime de desobediência, segundo o art.º 7.º do Regime do Estado de Sítio e do Estado de Emergência  (Lei n.º 44/86, de 30 de setembro, na sua redação atual). É um crime cujo objeto é a violação da declaração ou da execução da lei que determina o estado de emergência.
Aos cidadãos será aplicada a norma incriminatória prevista no artigo 348.º do Código Penal:
Quem faltar à obediência devida a ordem ou a mandado legítimos, regularmente comunicados e emanados de autoridade ou funcionário competente, é punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 120 dias”.
Porém, é de anotar que o crime de desobediência é apenas um dos muitos que pode ser praticado no contexto de estado de emergência, cuja punição visa a defesa do próprio Estado de Direito, seja por violação de deveres emergentes da declaração vertida na lei, seja por limitações excessivas aos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos. Em relação a este aspeto, as autoridades têm de prestar atenção à necessidade constitucional de preservar os direitos à vida, à integridade pessoal, à identidade pessoal, à capacidade civil e à cidadania, à não retroatividade da lei criminal, à defesa dos arguidos, liberdade de expressão e à liberdade de religião, que são alguns dos direitos que estão assegurados, mesmo estando em vigor o estado de emergência.
Assim, o Primeiro-Ministro garantiu que “a democracia não está suspensa” e disse, em declarações transmitidas pelas televisões:
É fundamental que a vida continue, tudo aquilo que são as cadeias de abastecimento fundamentais de bens essenciais têm de ser assegurados, os serviços essenciais têm de continuar a ser prestados. O país não vai parar.”.
A seguir, virá a determinação de medidas de apoio financeiro a empresas e trabalhadores. Com efeito, se forem implementadas medidas de quarentena e/ou isolamento obrigatórios, as empresas terão de recorrer obrigatoriamente ao teletrabalho para assegurarem a continuação da atividade profissional, pois os trabalhadores não poderão deslocar-se ao seu local de trabalho.
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Esta situação diverge do estado de sítio, pois esse pode ocorrer em caso de ameaça de invasão externa ou a iminência desta, bem como de graves alterações à ordem constitucional, quando o estado de emergência está concatenado com a calamidade pública. Por outro lado, no estado de sítio, a supervisão das operações cabe às forças armadas no topo das quais está o Estado-Maior General das Forças Armadas, por o país estar em pé de guerra ou em descontrolo constitucional, ao passo que na situação de emergência a supervisão cabe às autoridades civis, podendo ser necessária a colaboração das forças armadas a bem das populações.
Enfim, tudo se faz para a democracia não perigar, sendo prioritário o bem superior das pessoas.
2020.03.18 – Louro de Carvalho

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