É uma frase paradigmática da perícopa evangélica de João (Jo 4,5-42) proclamada na missa do 3.º domingo da Quaresma no Ano A e
que, segundo Frederico Lourenço, constitui o núcleo fulcral da religião
proposta por Jesus, pois, “o Pai procura
adoradores destes que O adorem”. Com efeito, Deus é espírito e os seus
adoradores devem adorá-lo em espírito e verdade” (cf
vv. 23-24).
Talvez seja oportuno meditar a espiritualidade desta passagem
evangélica nesta altura de contenção da expressão pública da fé e culto pelos
motivos que são do conhecimento público. Como o povo hebreu no deserto não
conseguiu aguentar a sede, também hoje os crentes a sentem e devem procurar
saciá-la, mas sem se revoltarem como os antigos no tempo de Massá e Meribá, o
tempo do litígio dos filhos de Israel, que puseram o Senhor à prova, dizendo: “Está o Senhor no meio de nós ou não?” (cf Ex 17,1-7; Sl 95,8). E, se calhar, em tempo de contenção da expressão pública da
fé pessoal e comunitária, este retiro forçado poderá inculcar no coração de
muitos o apelo à interioridade, àquele tom adorante em espírito e em verdade
preconizado pelo Evangelho desta dominga quaresmal.
O evangelista relata o extraordinário diálogo de Jesus com a
samaritana, uma situação que não podia ser mais inesperada ao tempo: pela hora
sexta, um homem e uma mulher encontram-se junto dum poço na cidade samaritana
de Sicar, num contexto em que mulheres sérias não falam com homens estranhos e
os membros do Povo Eleito não falam com pessoas de “raça rafeira e apóstata”,
segundo os judeus (cf
Barrett, apud F. Lourenço, Bíblia,
vol. I, Quetzal). De
facto, a Samaria era a região central da Palestina – heterodoxa e habitada por
uma raça de sangue misturado (de judeus e pagãos) e de religião sincretista.
Na época do Novo Testamento, era viva a animosidade entre
samaritanos (cerca de
800, quando já teriam atingido o milhão) e judeus, fruto da divisão iniciada quando, em 721 a .C., a Samaria foi
tomada pelos assírios e foi deportada em cerca de 4% da população. E ali se
instalaram, então, colonos assírios que se misturaram com a população local.
Segundo os judeus, os habitantes da Samaria começaram a paganizar-se (cf 2Rs 17,29) e a relação entre as duas
comunidades mais se deteriorou quando, após o Exílio, os judeus recusaram a
ajuda dos samaritanos (cf
Esd 4,1-5) para
reconstruir o Templo de Jerusalém (ano 437 a .C.) e denunciaram os casamentos mistos.
Tiveram, assim, de enfrentar a oposição dos samaritanos na reconstrução da
cidade (cf Ne 3,33-4,17). No ano 333 a .C., os samaritanos
construíram, no monte Garizim, um Templo, que veio a ser destruído em 128 a .C. por João Hircano. E
continuaram os conflitos, de que se destaca o ocorrido por volta do ano 6 d.C.,
tendo os samaritanos profanado o Templo de Jerusalém na festa da Páscoa,
espalhando ossos humanos nos átrios.
O “poço de Jacob” (segundo
a tradição, aberto pelo patriarca Jacob),
situado no rico vale entre os montes Ebal e Garizim, não longe da cidade
samaritana de Siquém (em aramaico, Sicara – a atual Askar), era um poço estreito aberto na
rocha calcária, com a profundidade de 32 metros. Revelam os dados arqueológicos
que o poço serviu os samaritanos entre o ano 1000 a.C. e o ano 500 d.C., mas
ainda hoje se pode água extrair dele. (cf Dehonianos, 3.º Domingo da Quaresma – Ano
A).
O poço, transformado em elemento mítico, simboliza os poços
abertos pelos patriarcas e a água que Moisés fez brotar do rochedo no deserto, tornando-se
figura da Lei (desta
brotava a água viva que mata a sede de vida do Povo de Deus), que a tradição judaica considerava
observada já pelos patriarcas, antes de ser dada explicitamente ao Povo por Moisés.
Ora o 4.º Evangelho apresenta Jesus como o Messias, Filho de
Deus, enviado pelo Pai para criar um Homem Novo. E o chamado “Livro dos Sinais”
(cf Jo 4,1-11,56) apresenta – pelo recurso aos
“sinais” da água, do pão, da luz, do pastor e da vida – um conjunto de
catequeses sobre a ação criadora do Messias. E, nesta perícopa (a primeira catequese do Livro dos
Sinais, através do “sinal da água), Jesus, embora tenha pedido de beber à samaritana,
desvaloriza a água deste poço tradicional para valorizar a água viva que Ele
dará de modo que quem beber dela nunca mais terá sede. É a ação criadora e
vivificadora de Jesus. Esta expressão “água viva” (em grego hídor zôn) já
aparece em Zacarias (14,18
– na LXX) e a ideia
surge por outras palavras em Jeremias (2,13)
e em Ezequiel (47,9). Ora, sendo a ideia da água viva comum
nos Profetas, a samaritana disse com acerto que o seu interlocutor devia ser um
profeta. Por outro lado, é importante atentar no segmento “Quem beber da água que eu lhe der”. O verbo “beber” no aoristo do conjuntivo
(traduzido em português
pelo futuro do conjuntivo), significa sentido pontual da ação futura, pelo que se conclui que Jesus fala duma água que não tem necessidades de beber
assiduamente porque se volta a ter sede, mas da água que se bebe uma vez por
todas, num momento único para nunca mais ter sede porque se trata duma fonte de
água gorgolejante ou “saltitante” (hýdatos halloménou) para a vida eterna.
A mulher (apresentada sem nome próprio) representa a Samaria, que busca a água que é capaz de matar
a sua sede de vida plena. Jesus encontra-se com a “mulher”. Haverá no episódio
uma referência ao Deus/esposo que vai ao encontro do povo/esposa infiel para
lhe fazer descobrir o verdadeiro amor. Aliás, Oseias, o grande preconizador desta
imagem matrimonial a caraterizar a relação Deus/Povo, profetizou na Samaria. O
“poço” representa a Lei, sistema em torno do qual gravitava a experiência dos
samaritanos. Era nele que os samaritanos procuravam a água da vida. Porém, os
próprios samaritanos tinham reconhecido a insuficiência do “poço” da Lei e
haviam buscado a vida plena noutras propostas religiosas. Por isso, Jesus faz
referência aos 5 maridos que a mulher já teve e ao homem com quem vive e que
não é seu marido: há aqui, provavelmente, uma alusão aos 5 deuses dos
samaritanos de que se fala em 2Rs 17,29-41. Barrett, já citado, regista as
seguintes propostas: os 5 maridos serão as 5 tribos da Samaria; serão os 5
livros do Pentateuco; e, ainda, a hipótese sustentada por Orígenes (séc. III) nos termos da qual os 5 maridos + um
configuram simbolicamente uma alegoria do mal.
A mulher dá conta da falência dessas “ofertas” de vida que
podem “matar a sede” por curtos instantes. E Jesus traz a novidade: sentou-se “assim”
na borda do poço (“assim”
– em grego, houtós, a designar a
mímica que perpassa no discurso oral, tal como em Jo 13,15, a descrever a atitude
do discípulo reclinado no peito de Jesus), como se pretendesse ocupar o seu lugar; e propõe à
samaritana uma “água viva”, que saciará definitivamente a sua sede de vida
eterna. Jesus, tal como passou nos sinóticos a ser o novo Moisés e o novo
Elias, passa a ser o “novo poço”, onde todos os que têm sede de vida eterna
encontrarão a resposta. Não é por acaso que o Mestre tira os discípulos da cena
mandando-os à cidade comprar alimentos tornando excecional este encontro: de
repente, a mulher de raça desprezada – e hostilizada socialmente por já ter
tido 5 maridos e agora viver com um homem que não é seu marido – dá-se conta de
que não está a falar com um judeu qualquer, mas com o Messias, aquele que oferece
a “água do Espírito”, o grande dom de Jesus.
E Jesus, quando ela diz que sabe que virá o Messias, o
Cristo, que ensinará todas essas coisas, disse com prontidão: “Sou Eu, que
estou a falar contigo”.
Note-se que, em grego, as palavras
correspondentes a “sou eu” vem por
esta ordem: “eu sou” – egô eimí. A importância desta sequência
é tal que Jesus a emprega em momentos solenes, por exemplo em: 6,35 (“Eu sou o pão da vida”); 8,24 (“Eu sou a luz do mundo”); 10,11 (“Eu sou o bom Pastor”); e 14,6 (“Eu sou o caminho, a verdade e a vida”).
Já na conversa com Nicodemos, Jesus avisara que “quem não
nascer da água e do Espírito não pode entrar no Reino de Deus” (Jo 3,5); e, quando Jesus se apresenta explicitamente como a
“água viva”, João tem o cuidado de explicar que Ele se referia ao Espírito que
iam receber os que acreditassem n’Ele (cf Jo 7,37-39). Esse Espírito, uma vez acolhido no coração do homem,
transforma-o, renova-o e torna-o capaz de amar Deus e os outros.
Por isso, por mais desconcertante que pareça, o Messias, embora
sustente que a salvação (sôtêría, palavra nunca usada por Mateus
e Marcos e utilizada aqui por João) vem dos judeus, subvaloriza o lugar do Templo como espaço
privilegiado de adoração para propor o culto em espírito e verdade, o culto dos
verdadeiros adoradores, como o Pai deseja, que ultrapassa as barreiras geográficas,
históricas, sociológicas e rituais em favor do culto da pessoa prestado a Deus
em articulação com a comunidade que nasce dos corações e não dos balizamentos
impostos do exterior.
É de salientar a importância da asserção de Jesus de que “Deus é espírito”. A novidade do que
Jesus está a dizer é arrojada e absoluta, pois, no Antigo Testamento, não se
encontra expressão que traduza literalmente esta ideia. E o espírito postula o tratamento
pelo espírito.
Inicialmente, a mulher fica confusa. Parece disposta a
remediar a situação de falência de felicidade que carateriza a sua vida, mas não
sabe bem como. No entanto, Jesus nega que se trate de escolher entre o caminho
dos judeus e o caminho dos samaritanos. Não é no Templo de pedra de Jerusalém
ou no Templo de pedra do monte Garizim que Deus está. O que se trata é de
acolher a novidade do próprio Jesus, aderir a Ele e aceitar o Espírito que Ele
quer comunicar a todos os homens. Só dessa forma desaparecerá a barreira de
inimizade que separa os povos. A única coisa que passa a contar é a vida do
Espírito que encherá o coração de todos, que a todos ensinará o amor a Deus e
aos outros e que fará de todos – sem distinção de raças ou de perspetivas
religiosas – uma família de irmãos.
A mulher responde à proposta de Jesus abandonando o cântaro e
correndo a anunciar aos habitantes da cidade o desafio que Jesus lhe faz, o que
provoca a adesão entusiástica de todos os que tomam conhecimento da proposta de
Jesus e a “confissão da fé”: Jesus é reconhecido como o verdadeiro salvador do
mundo (é a única vez que
a palavra sôtêr, salvador, aparece
neste Evangelho) – isto
é, como Aquele que dá ao homem a vida plena.
O texto define, portanto, a missão de Jesus: comunicar aos
homens o Espírito que dá vida, o Espírito que desenvolve e fecunda o coração dos
homens, dando-lhes a capacidade de amar sem medida e elevando-os à categoria de
Homens Novos, filhos de Deus que fazem as obras de Deus. E deste dom de Jesus
nasce a nova comunidade.
Esta é uma lição para os discípulos, admirados e talvez incomodados
por verem o Mestre a falar com uma mulher (no
judaísmo era impensável um rabi falar com mulheres e sobretudo em assuntos
religiosos), como é uma lição para todos. Na verdade, “não há judeu nem
grego, não há escravo nem livre, nem homem nem mulher porque todos vós sois um
em Cristo Jesus” (Gl 3,28).
2020.03.15
– Louro de Carvalho
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