domingo, 15 de março de 2020

Os verdadeiros adoradores hão de adorar o Pai em espírito a verdade


É uma frase paradigmática da perícopa evangélica de João (Jo 4,5-42) proclamada na missa do 3.º domingo da Quaresma no Ano A e que, segundo Frederico Lourenço, constitui o núcleo fulcral da religião proposta por Jesus, pois, “o Pai procura adoradores destes que O adorem”. Com efeito, Deus é espírito e os seus adoradores devem adorá-lo em espírito e verdade” (cf vv. 23-24).
Talvez seja oportuno meditar a espiritualidade desta passagem evangélica nesta altura de contenção da expressão pública da fé e culto pelos motivos que são do conhecimento público. Como o povo hebreu no deserto não conseguiu aguentar a sede, também hoje os crentes a sentem e devem procurar saciá-la, mas sem se revoltarem como os antigos no tempo de Massá e Meribá, o tempo do litígio dos filhos de Israel, que puseram o Senhor à prova, dizendo: “Está o Senhor no meio de nós ou não?(cf Ex 17,1-7; Sl 95,8). E, se calhar, em tempo de contenção da expressão pública da fé pessoal e comunitária, este retiro forçado poderá inculcar no coração de muitos o apelo à interioridade, àquele tom adorante em espírito e em verdade preconizado pelo Evangelho desta dominga quaresmal.
O evangelista relata o extraordinário diálogo de Jesus com a samaritana, uma situação que não podia ser mais inesperada ao tempo: pela hora sexta, um homem e uma mulher encontram-se junto dum poço na cidade samaritana de Sicar, num contexto em que mulheres sérias não falam com homens estranhos e os membros do Povo Eleito não falam com pessoas de “raça rafeira e apóstata”, segundo os judeus (cf Barrett, apud F. Lourenço, Bíblia, vol. I, Quetzal). De facto, a Samaria era a região central da Palestina – heterodoxa e habitada por uma raça de sangue misturado (de judeus e pagãos) e de religião sincretista.
Na época do Novo Testamento, era viva a animosidade entre samaritanos (cerca de 800, quando já teriam atingido o milhão) e judeus, fruto da divisão iniciada quando, em 721 a.C., a Samaria foi tomada pelos assírios e foi deportada em cerca de 4% da população. E ali se instalaram, então, colonos assírios que se misturaram com a população local. Segundo os judeus, os habitantes da Samaria começaram a paganizar-se (cf 2Rs 17,29) e a relação entre as duas comunidades mais se deteriorou quando, após o Exílio, os judeus recusaram a ajuda dos samaritanos (cf Esd 4,1-5) para reconstruir o Templo de Jerusalém (ano 437 a.C.) e denunciaram os casamentos mistos. Tiveram, assim, de enfrentar a oposição dos samaritanos na reconstrução da cidade (cf Ne 3,33-4,17). No ano 333 a.C., os samaritanos construíram, no monte Garizim, um Templo, que veio a ser destruído em 128 a.C. por João Hircano. E continuaram os conflitos, de que se destaca o ocorrido por volta do ano 6 d.C., tendo os samaritanos profanado o Templo de Jerusalém na festa da Páscoa, espalhando ossos humanos nos átrios.
O “poço de Jacob” (segundo a tradição, aberto pelo patriarca Jacob), situado no rico vale entre os montes Ebal e Garizim, não longe da cidade samaritana de Siquém (em aramaico, Sicara – a atual Askar), era um poço estreito aberto na rocha calcária, com a profundidade de 32 metros. Revelam os dados arqueológicos que o poço serviu os samaritanos entre o ano 1000 a.C. e o ano 500 d.C., mas ainda hoje se pode água extrair dele. (cf Dehonianos, 3.º Domingo da Quaresma – Ano A).
O poço, transformado em elemento mítico, simboliza os poços abertos pelos patriarcas e a água que Moisés fez brotar do rochedo no deserto, tornando-se figura da Lei (desta brotava a água viva que mata a sede de vida do Povo de Deus), que a tradição judaica considerava observada já pelos patriarcas, antes de ser dada explicitamente ao Povo por Moisés.
Ora o 4.º Evangelho apresenta Jesus como o Messias, Filho de Deus, enviado pelo Pai para criar um Homem Novo. E o chamado “Livro dos Sinais” (cf Jo 4,1-11,56) apresenta – pelo recurso aos “sinais” da água, do pão, da luz, do pastor e da vida – um conjunto de catequeses sobre a ação criadora do Messias. E, nesta perícopa (a primeira catequese do Livro dos Sinais, através do “sinal da água), Jesus, embora tenha pedido de beber à samaritana, desvaloriza a água deste poço tradicional para valorizar a água viva que Ele dará de modo que quem beber dela nunca mais terá sede. É a ação criadora e vivificadora de Jesus. Esta expressão “água viva” (em grego hídor zôn) já aparece em Zacarias (14,18 – na LXX) e a ideia surge por outras palavras em Jeremias (2,13) e em Ezequiel (47,9). Ora, sendo a ideia da água viva comum nos Profetas, a samaritana disse com acerto que o seu interlocutor devia ser um profeta. Por outro lado, é importante atentar no segmento “Quem beber da água que eu lhe der”. O verbo “beber” no aoristo do conjuntivo (traduzido em português pelo futuro do conjuntivo), significa sentido pontual da ação futura, pelo que se conclui que Jesus fala duma água que não tem necessidades de beber assiduamente porque se volta a ter sede, mas da água que se bebe uma vez por todas, num momento único para nunca mais ter sede porque se trata duma fonte de água gorgolejante ou “saltitante” (hýdatos halloménou) para a vida eterna.   
A mulher (apresentada sem nome próprio) representa a Samaria, que busca a água que é capaz de matar a sua sede de vida plena. Jesus encontra-se com a “mulher”. Haverá no episódio uma referência ao Deus/esposo que vai ao encontro do povo/esposa infiel para lhe fazer descobrir o verdadeiro amor. Aliás, Oseias, o grande preconizador desta imagem matrimonial a caraterizar a relação Deus/Povo, profetizou na Samaria. O “poço” representa a Lei, sistema em torno do qual gravitava a experiência dos samaritanos. Era nele que os samaritanos procuravam a água da vida. Porém, os próprios samaritanos tinham reconhecido a insuficiência do “poço” da Lei e haviam buscado a vida plena noutras propostas religiosas. Por isso, Jesus faz referência aos 5 maridos que a mulher já teve e ao homem com quem vive e que não é seu marido: há aqui, provavelmente, uma alusão aos 5 deuses dos samaritanos de que se fala em 2Rs 17,29-41. Barrett, já citado, regista as seguintes propostas: os 5 maridos serão as 5 tribos da Samaria; serão os 5 livros do Pentateuco; e, ainda, a hipótese sustentada por Orígenes (séc. III) nos termos da qual os 5 maridos + um configuram simbolicamente uma alegoria do mal.
A mulher dá conta da falência dessas “ofertas” de vida que podem “matar a sede” por curtos instantes. E Jesus traz a novidade: sentou-se “assim” na borda do poço (“assim” – em grego, houtós, a designar a mímica que perpassa no discurso oral, tal como em Jo 13,15, a descrever a atitude do discípulo reclinado no peito de Jesus), como se pretendesse ocupar o seu lugar; e propõe à samaritana uma “água viva”, que saciará definitivamente a sua sede de vida eterna. Jesus, tal como passou nos sinóticos a ser o novo Moisés e o novo Elias, passa a ser o “novo poço”, onde todos os que têm sede de vida eterna encontrarão a resposta. Não é por acaso que o Mestre tira os discípulos da cena mandando-os à cidade comprar alimentos tornando excecional este encontro: de repente, a mulher de raça desprezada – e hostilizada socialmente por já ter tido 5 maridos e agora viver com um homem que não é seu marido – dá-se conta de que não está a falar com um judeu qualquer, mas com o Messias, aquele que oferece a “água do Espírito”, o grande dom de Jesus.
E Jesus, quando ela diz que sabe que virá o Messias, o Cristo, que ensinará todas essas coisas, disse com prontidão: “Sou Eu, que estou a falar contigo”.
Note-se que, em grego, as palavras correspondentes a “sou eu” vem por esta ordem: “eu sou” – egô eimí. A importância desta sequência é tal que Jesus a emprega em momentos solenes, por exemplo em: 6,35 (“Eu sou o pão da vida”); 8,24 (“Eu sou a luz do mundo”); 10,11 (“Eu sou o bom Pastor”); e 14,6 (“Eu sou o caminho, a verdade e a vida”).
Já na conversa com Nicodemos, Jesus avisara que “quem não nascer da água e do Espírito não pode entrar no Reino de Deus” (Jo 3,5); e, quando Jesus se apresenta explicitamente como a “água viva”, João tem o cuidado de explicar que Ele se referia ao Espírito que iam receber os que acreditassem n’Ele (cf Jo 7,37-39). Esse Espírito, uma vez acolhido no coração do homem, transforma-o, renova-o e torna-o capaz de amar Deus e os outros.
Por isso, por mais desconcertante que pareça, o Messias, embora sustente que a salvação (sôtêría, palavra nunca usada por Mateus e Marcos e utilizada aqui por João) vem dos judeus, subvaloriza o lugar do Templo como espaço privilegiado de adoração para propor o culto em espírito e verdade, o culto dos verdadeiros adoradores, como o Pai deseja, que ultrapassa as barreiras geográficas, históricas, sociológicas e rituais em favor do culto da pessoa prestado a Deus em articulação com a comunidade que nasce dos corações e não dos balizamentos impostos do exterior.
É de salientar a importância da asserção de Jesus de que “Deus é espírito”. A novidade do que Jesus está a dizer é arrojada e absoluta, pois, no Antigo Testamento, não se encontra expressão que traduza literalmente esta ideia. E o espírito postula o tratamento pelo espírito.
Inicialmente, a mulher fica confusa. Parece disposta a remediar a situação de falência de felicidade que carateriza a sua vida, mas não sabe bem como. No entanto, Jesus nega que se trate de escolher entre o caminho dos judeus e o caminho dos samaritanos. Não é no Templo de pedra de Jerusalém ou no Templo de pedra do monte Garizim que Deus está. O que se trata é de acolher a novidade do próprio Jesus, aderir a Ele e aceitar o Espírito que Ele quer comunicar a todos os homens. Só dessa forma desaparecerá a barreira de inimizade que separa os povos. A única coisa que passa a contar é a vida do Espírito que encherá o coração de todos, que a todos ensinará o amor a Deus e aos outros e que fará de todos – sem distinção de raças ou de perspetivas religiosas – uma família de irmãos.
A mulher responde à proposta de Jesus abandonando o cântaro e correndo a anunciar aos habitantes da cidade o desafio que Jesus lhe faz, o que provoca a adesão entusiástica de todos os que tomam conhecimento da proposta de Jesus e a “confissão da fé”: Jesus é reconhecido como o verdadeiro salvador do mundo (é a única vez que a palavra sôtêr, salvador, aparece neste Evangelho) – isto é, como Aquele que dá ao homem a vida plena.
O texto define, portanto, a missão de Jesus: comunicar aos homens o Espírito que dá vida, o Espírito que desenvolve e fecunda o coração dos homens, dando-lhes a capacidade de amar sem medida e elevando-os à categoria de Homens Novos, filhos de Deus que fazem as obras de Deus. E deste dom de Jesus nasce a nova comunidade.
Esta é uma lição para os discípulos, admirados e talvez incomodados por verem o Mestre a falar com uma mulher (no judaísmo era impensável um rabi falar com mulheres e sobretudo em assuntos religiosos), como é uma lição para todos. Na verdade, “não há judeu nem grego, não há escravo nem livre, nem homem nem mulher porque todos vós sois um em Cristo Jesus” (Gl 3,28). 
2020.03.15 – Louro de Carvalho

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