segunda-feira, 30 de março de 2020

Jesus é a ressurreição e a vida e quem Nele crê não morrerá


A catequese da vida, do “Livro dos Sinais” do Evangelho de João (Jo 11,1-45) desenvolve-se numa narrativa que não tem paralelo nos outros três Evangelhos. Na verdade, como assinala Frederico Lourenço, “a ressurreição de Lázaro é um episódio da vida de Jesus que encontramos somente no Evangelho de João”, é o seu “milagre mais espetacular” e, no contexto do relato joânico, tem em vista “uma demonstração concreta da afirmação de Jesus feita no capítulo 5”:
Tal como o Pai ressuscita os mortos e os faz viver, assim também o Filho faz viver aqueles que quer” (Jo 5,21).
Na economia da narrativa joânica, este episódio “é um importante móbil na precipitação dos acontecimentos até ao Calvário”, pois é este milagre, “tão assombroso quanto inconcebível”, que dá azo à decisão definitiva dos inimigos de matarem Jesus (cf Jo 11,46.53). Ora, tanto Jesus como os discípulos têm consciência do risco da ida a Betânia, uma aldeia a Este do monte das Oliveiras, a cerca de três quilómetros de Jerusalém. Assim, pode dizer-se que, ao ressuscitar o amigo, Jesus dá por ele a sua própria vida, oferecendo antecipadamente a demonstração do enunciado que proferirá na noite da Última Ceia, segundo o qual não há maior prova de amor do que dar a vida pelos seus amigos (cf Jo 15,13).  
O autor desta catequese põe-nos diante dum episódio familiar triste: a morte dum homem. A família, constituída por três pessoas (Marta, Maria e Lázaro), é conhecida de Jesus: no v. 5, diz-se que Jesus amava Marta, a sua irmã Maria e Lázaro. A visita de Jesus a esta família é, aliás, mencionada em Lc 10,38-42; e João observa que a Maria, ora referenciada, é a que ungira “o Senhor” com perfume e lhe enxugara os pés com os cabelos (v. 2; cf. Jo 12,1-8).
Para Frederico Lourenço, esta referência não foi escrita pelo evangelista, pois, neste momento, não tinha ocorrido a unção, que é referida só no capítulo seguinte, pelo que terá sido introduzida mais tarde como glosa explicativa. Por outro lado, a referência a Jesus como “o Senhor”, neste momento, levanta o mesmo tipo de suspeita. Por seu turno, a Bíblia da CEP entende que “o episódio narrado apenas em 12,3 é referido antecipadamente talvez porque a comunidade já o conhecia quando o evangelho foi escrito”. Porém, é de ter em conta a índole catequética do texto, que foi escrito à luz da ressurreição do Senhor.
A família de Betânia apresenta caraterísticas peculiares. A narração não faz referência a outros membros, para lá de Maria, Marta e Lázaro: não há pai, mãe ou filhos. Além disso, João insiste no grau de parentesco que une os três: “irmãos” (vv. 1.2b.3.5.19.21.23.28.32.39). A palavra “irmão/a” (“adelfos/ê”, em grego) será a usada por Jesus, após a ressurreição, para definir a comunidade dos discípulos (Mt 28,10; Jo 20,17); e será comum entre os membros da comunidade cristã primitiva (Jo 21,23). Por outro lado, é peculiar a relação entre Jesus e esta família: família amiga de Jesus, que Ele conhece e que O conhece; que O ama e que é amada por Ele: e que O recebe em sua casa.
Um facto abala a vida desta família: o irmão está gravemente doente. As irmãs, na preocupação e solidariedade para com o irmão e informam Jesus “aquele que amas (phileîs, distinto de agapâs) está doente”. Então, além do discípulo amado, há outro homem que Jesus ama: Lázaro – o que faz dizer a alguns (Filson e Eckhardt) que o discípulo amado do Evangelho e Lázaro sejam a mesma pessoa e o Evangelho tenha sido escrito por Lázaro, o que não é aceite.
A relação de Jesus com Lázaro é de afeto e amizade; mas Jesus não vai imediatamente ao seu encontro; parece atrasar-se deliberadamente. Com a sua passividade, Jesus deixa que a morte do amigo se consume. Na verdade, este milagre supremo não é mais uma cura, mas a demonstração de que não está sujeito à morte quem Jesus quer. E, na intenção do catequista, o pormenor significa que Jesus não veio alterar o ciclo normal da vida do homem, libertando-o da morte biológica, mas para dar um novo sentido à morte física e oferecer ao homem a vida sem fim.
Passados dois dias, Jesus resolve dirigir-se à Judeia ao encontro do amigo. Mas os discípulos tentam dissuadi-Lo, pois a oposição a Jesus está na Judeia e, sobretudo, em Jerusalém. E Tomé (em português, devia ser Tomás) antecipa que vão a Betânia para morrerem com Ele (Jesus). Não tinham percebido que o plano do Pai é que Jesus dê vida ao homem enfermo, mesmo que, para isso, corra riscos e tenha de oferecer a própria vida. Jesus não atende ao medo dos discípulos: a sua preocupação é realizar o plano do Pai no sentido de dar vida ao homem. Ele é o pastor que desafia o perigo por amor das suas ovelhas.
Em Betânia, Jesus encontrou o amigo sepultado havia 4 dias. Segundo os judeus, a morte era considerada definitiva a partir do 3.º dia. Lázaro está, pois, mesmo morto. Jesus não elimina a morte física; mas, para os amigos de Jesus, essa morte não passa dum sono, de que se acorda para descobrir a vida definitiva. Entretanto, surgem as irmãs de Lázaro. Marta vem ao encontro de Jesus e exprime o seu desconforto: Jesus evitaria a morte do amigo, se estivesse presente. Agora, nada feito, como comentava Dom Joaquim Mendes na homilia da Missa do V domingo da Quaresma. No entanto, Jesus pode interceder junto de Deus, Deus atendê-lo-á. Assim, o amigo assegura: “Eu sou a ressurreição e a vida; quem crê em mim, ainda que morra, viverá; e todo aquele que vive e acredita em mim jamais morrerá para sempre”. E desafia: “Crês nisto?”. Marta já acreditava que Jesus era um profeta, através de quem Deus atua no mundo, mas pensava que as palavras de Jesus eram uma simples consolação e que Ele se refere à crença farisaica, segundo a qual os mortos reviveriam, no fim dos tempos, quando se registasse a última intervenção de Deus na história humana. Mas ainda não tinha consciência de que Jesus é a vida do Pai e que Ele próprio dá a vida. Agora, quando Jesus lhe diz que o irmão ressuscitará, é resoluta ao afirmar: “Sim, Senhor, eu creio que Tu és o Cristo, o Filho de Deus que vem ao mundo”. “Creio, acredito” está no pretérito perfeito (pepísteuka), com o sentido de “eu tenho vindo a acreditar e, por isso, acredito”. É o resultado do processo da fé.
O que Jesus diz é que, para quem é seu amigo, não há morte. Jesus é “a ressurreição e a vida”. Para os seus amigos, a morte física é apenas a passagem desta vida para a vida plena. Jesus não evita a morte física; mas Ele oferece ao homem a vida que se prolonga para sempre. Mas, para que a vida definitiva chegue ao homem, é necessário que o homem adira a Jesus e O siga, (“todo aquele que vive e acredita em mim, não morrerá”). A comunidade de Jesus é a comunidade dos e das que possuem a vida definitiva. Passarão pela morte física, mas essa morte será apenas a passagem para a verdadeira vida, que Jesus quer oferecer. Jesus traz a liberdade, como fica bem patente na ordem dada aos circunstantes, depois de Lázaro vir para fora: “Desligai-o e deixai-o andar”.
Maria tinha ficado em casa, paralisada pela dor sem esperança. Porém, instigada por Marta – que falara com Jesus e encontrara n’Ele a resposta para a situação – vai sem dar explicações a ninguém, pois tem consciência de que só em Jesus encontrará solução para o sofrimento que lhe enche o coração. Também nas suas palavras há sinal de desconforto por Jesus não ter estado presente, impedindo a morte de Lázaro. Jesus não pronuncia qualquer palavra de consolo, nem a exorta à resignação. Mas, vendo-a chorar, irritou-se no espírito e agitou-se. Diz Frederico Lourenço que não há como escapar ao sentido do verbo “embrimaómai”, que se repete no v. 38, já usado na versão dos LXX com o sentido de “encolerizar-se(Dn 11,30). E surge em Mt 9,30 e Marcos 1,43 e 14,4 (nos dois primeiros casos, Jesus irrita-se com os doentes a quem curou; no terceiro, os discípulos irritam-se com o desperdício do perfume que a mulher anónima derramava sobre Jesus em Betânia, na casa do leproso Simão). No princípio e no tempo da Patrística, aceitava-se que a Bíblia atribuísse a Jesus a irritabilidade; depois, começou a suavizar-se a ideia com o “suspirar profundamente”. Como causa da “zanga” de Jesus provavelmente estará o choro descontrolado de Maria e a certeza de que este milagre trará consequências para si. Seja como for, as emoções de Jesus estão à flor da pele como sucede no v. 35: Jesus chorou. Este é o versículo mais curto do Evangelho com três palavras gregas: edrákusen ho Iêssous. É desconcertante e comovente como se tem acesso ao perfil emocional do Mestre, que se irrita, compadece e chora.  
A cena da ressurreição de Lázaro começa, pois, com Jesus a chorar. Jesus mostra publicamente, dessa forma, o seu afeto e saudade por Lázaro. Sente a dor face à morte física da pessoa amada, mas a sua dor não é desespero. Chegado junto do sepulcro de Lázaro, vê a entrada da gruta onde o morto está sepultado fechada com uma pedra. A pedra é, aqui, símbolo da definitividade da morte. Separa o mundo dos vivos do mundo dos mortos, cortando qualquer relação entre eles. Porém, Jesus manda tirar essa “pedra”. Com efeito, para os crentes, estes mundos não são duas realidades sem qualquer relação. Jesus, ao oferecer a vida plena, abate as barreiras criadas pela morte física, que não afasta o homem da vida. E a ação de dar vida a Lázaro representa a concretização da missão que o Pai confiou a Jesus: dar vida plena e definitiva ao homem. Por isso, antes de mandar Lázaro sair do sepulcro, ergue os olhos ao céu e diz: “Agradeço-te, Pai”.
O modo de dizer aqui em grego “Eukharistô soi” não terá agradado a leitores cultos da época, que teriam preferido uma forma mais clássica de exprimir agradecimento (khárin eidénai). Este modernismo linguístico posto na boca de Jesus é fruto da ficção joânica, graças à qual Jesus fala em grego corrente e, neste caso, a expressão parece-se com o nosso “obrigado”.
No fundo, a oração de Jesus evidencia a sua comunhão com o Pai e a sua obediência na concretização do plano paterno. E Jesus “gritou com voz forte”. O verbo “kraugásein”, gritar, só aparece uma vez em Mateus (12,19) e uma vez em Lucas (4,41). Mas João usa-o 6 vezes, 4 das quais para exprimir os gritos da multidão (Jo 18,40; 19, 6.12.15) a pedir a crucifixão de Jesus. Diz o Padre Raymond Brown:
Poderia estabelecer-se um contraste entre o grito da multidão que dá a morte a Jesus e o grito de Jesus que dá a vida a Lazaro” (Brown, vol. I, pg 427, apud Lourenço, Bíblia vol I, pgs 375-376).  
Depois, Jesus mostra Lázaro vivo na morte, provando à comunidade dos crentes, representada aqui pela família de Betânia, que a morte não interrompe a vida plena do discípulo que ama Jesus e O segue. Essa família faz a experiência da morte física e tem de lidar com ela, não com o desespero de quem acha que tudo acabou, o que irrita mesmo Jesus, mas sabendo, crendo e professando, na amizade de Jesus, que Ele é a ressurreição e a vida e que dá aos seus a vida plena, em todos os momentos, de modo que aqueles e aquelas que Nele acreditam e O seguem, vivendo em comunhão de santos, têm a vida que não terá fim, a vida eterna. Podemos chorar a saudade pela partida de um irmão, mas temos de saber que, ao deixar este mundo, ele encontrou a vida plena, na glória de Deus. Por isso, a fé de Marta tem de ressoar na vida de cada um, da Igreja e do mundo: “Senhor, eu creio que Tu és o Cristo, o Filho de Deus que vem ao mundo”.
Não esqueçamos: Ele morreu para reunir os filhos de Deus que andavam dispersos (cf Jo 11,32).
2020.03.30 – Louro de Carvalho

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