sábado, 7 de março de 2020

Mudou o perfil da pessoa que ficou em situação de pobreza


É a pertinente asserção de Eugénio Fonseca, presidente da Cáritas Portuguesa, em entrevista de 6 de março à Ecclesia e à Renascença sobre os principais desafios que se colocam a quem trabalha pela erradicação da pobreza e a propósito da próxima semana nacional, de 8 a 15 de março, sob o tema “Cáritas é Amor”, promovendo iniciativas que visam dar a conhecer o seu trabalho no combate à pobreza e exclusão social.
Desde logo não o surpreenderam os dados do relatório da Cáritas, que mostra haver “barreiras e obstáculos consideráveis” no acesso aos principais direitos sociais (sobretudo para os grupos mais vulneráveis da população), como a habitação, a saúde, a educação, o emprego e outros serviços básicos. Com efeito, o relatório fundamenta-se nos atendimentos de proximidade da maior parte das paróquias do país, que nos dão conta dos problemas em causa. Trata-se de preocupações agora vertidas num documento feito em comparação com outros 16 países da Europa, o que dá “uma visão muito mais alargada do que aquela que se restringe ao espaço nacional”.
A sua apresentação assinalou a demasiada condescendência e indiferença dos portugueses face à pobreza. Há efetivamente “pouca pressão por parte da população e das instituições que a representam” mercê do preconceito ancestral perante “este problema social”, pois “ainda predomina em muitas mentes (…) a ideia de que as vítimas da pobreza são os culpados da situação em que se encontram”, quando há “realidades que o país tem, e não se pode julgar que são os pobres que as vão resolver”. Isto tem a ver “com situações que se conhecem, que existem de facto, com formas de estar que as próprias condições de vida geraram”. E observa:
Nós temos em Portugal, relativamente à pobreza, uma situação que é inadmissível – ainda mais quando sabemos que existem tantas organizações relacionadas com os fenómenos sociais e económicos! – que é termos gente que passa gerações seguidas na pobreza. E isso tem a ver com o sistema.”.
Depois, o presidente da Cáritas aponta, preocupado, a estruturação do sistema que “apela a uma relação de dependência dos serviços de proteção social”. Muitas vezes a subsidiodependência das pessoas leva-as a não procurarem “superar as causas dos seus problemas”. Com efeito, como sublinha, “o próprio sistema – as políticas de proteção social, os dinamismos das próprias instituições –, conforme está tem metodologias que substituem as pessoas na própria organização das suas vidas”. Ou seja, ditam-se receitas sem se envolverem as pessoas, não se criando formas de “corresponsabilização na medida das capacidades das pessoas”.
Assim, o sistema tem de ser revisto para se equacionar uma questão “crucial na eliminação da pobreza, que é a autoestima”. Na verdade, a grande dificuldade na superação da pobreza “é a pessoa julgar que não é capaz” e habituar-se “à forma como o sistema se organiza”. Mesmo os grupos eclesiais, segundo Eugénio Fonseca, “deviam estar mais interligados, devia haver uma relação colaborativa maior, para evitar que certas pessoas (…) percorram tantas vezes diversas paróquias para verem satisfeitos os seus bens de substância”.
Falando da pobreza e das suas caraterísticas, diz que não houve mudança de conceito e vinca:
Ser pobre é estar privado de recursos que são necessários para uma substância digna, e arranjou-se uma bitola que é a mediana do rendimento de cada país, e abaixo dessa mediana considera-se que a pessoa é financeiramente pobre”.
Face à realidade dos salários que não acompanham o crescimento da economia, explicita:
“O que mudou efetivamente foi o perfil da pessoa que ficou em situação de pobreza. Depois da crise, a pobreza entrou pela classe média adentro. É uma classe média baixa, que podemos dizer que é a classe média mais popular, mas que tem condições que há 15 anos não tinha, em termos de habilitações académicas, de capacitação. Por exemplo, ao nível da conexão com o mundo, a internet veio trazer uma maior abrangência de conhecimentos, e os nossos atendimentos sociais têm de se tornar muito mais capazes, porque as pessoas já trazem consigo um conjunto de informações e vêm à procura da ajuda para poderem aproveitar as oportunidades.”.
No atinente ao emprego, refere que as pessoas querem reconquistar o posto de trabalho que perderam, pois os salários são “a fonte de rendimentos para a maior parte das pessoas”. Porém, os empregadores, para criarem trabalho, optaram pela “redução do salário”.
E evidencia “duas realidades na relação do trabalho e da pobreza”: “os que trabalham e continuam pobres”; e os desempregados de longa duração. Quanto aos primeiros, aponta a excessiva desproporção dos salários, que se torna “mais escandalosa quando se percebe os desníveis salariais entre aqueles que ocupam lugares de topo e os que operacionalizam a produção” – desnível escandaloso, “que gera a profundidade das desigualdades que sentimos”. Já o desempregado de longa duração “é um conceito que nasceu na crise que assolou o Vale do Ave e a Península de Setúbal”. E, neste sentido, lamenta:
Quem está há mais de um ano sem conseguir um novo posto de trabalho é considerado desempregado de longa duração, e o grande problema é que isto se tornou um chavão classificativo dos patamares de desempregados. O desempregado de longa duração está numa prateleira (…). Já não se olha com tanta acuidade.”.
É certo que a procura de emprego pela primeira vez (jovens) também tem consequências muito negativas, mas os desempregados de longa duração constituem uma faixa etária que “já não interessa ao mercado de trabalho”, pois não têm idade e habilitações profissionais compatíveis com uma indústria que “se faz a partir de meios tecnológicos que já são muito avançados”. E aqui aponta a fragilidade da Segurança Social para confessar não saber como se resolverá isto.
Sustenta que “não pode ser com subsídios” e ou a sociedade resolve dignamente o problema ou se confrontará com uma tensão social e pessoal, que se refletirá nos gastos com a saúde, “porque muitas destas pessoas já estão com perturbações na ordem de saúde mental”, por recusarem a inatividade a que estão votadas, sem que se encontre uma resposta para elas.
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Questionado sobre o indicador mais problemático revelado no predito relatório, o da habitação e sobre a bondade da Lei de Bases da Habitação em vigor, começa por afirmar que ela “tem uma fragilidade que é estruturante”, a do “consenso que tem de existir entre quem oferece a habitação e quem necessita dela”. E, falando das rendas, adianta:
Devia haver um referencial legalmente definido para um teto máximo, que tivesse sempre a ver com as caraterísticas da própria habitação que se está a pôr no mercado de arrendamento. Porque não é só o preço das casas não ser compatível com os rendimentos das pessoas, é o tipo de casas e as condições de habitabilidade, que são muitas vezes desproporcionadas em relação ao preço que se pede.”.
E o problema não é só de Lisboa e Porto, pois chegam ecos “de outras regiões do interior do país”. Refere que o aumento do turismo começara por ser “muito positivo”, pois, “a seguir à crise, foi uma alavanca para o crescimento económico, porque de outra forma não teríamos recuperado, tão facilmente”. Porém, como o país não estava preparado para um fluxo tão grande, tiveram de criar-se outras condições. E alguns proprietários viram nos alojamentos locais “uma fonte de rendimento muito mais acessível, muito mais rentável”, o que redundou na coerção do abandono de casas por parte de alguns para que os proprietários as colocassem em alojamento local. E essas pessoas, muitas delas idosas, têm procurado a Cáritas porque não conseguem casa, mesmo um T1 ou um T0, por preços conformes às possibilidades das pensões, das reformas que auferem.
E as restrições que a própria Lei e o Orçamento do Estado impõem ao alojamento local e à forma como se fazem os despejos “não são suficientes” – pensa o presidente da Cáritas – porque estamos deficitários de um número significativo de habitações para as pessoas que precisam, pois não são só os desalojados, são também os que querem autonomia pessoal e familiar.
Depois, a Lei de Bases aponta que o Estado deve ser regulador, mas não se concretiza esta vertente e Eugénio Fonseca esclarece:
Eu não queria que o Estado fosse um Estado polícia, por via, muitas vezes, de um controlo fiscal; gostava que fosse um Estado regulador, que criasse condições motivadoras para que proprietários coloquem as suas casas à disposição e sejam mais criteriosos na forma como gerem as casas que têm para arrendar – porque existem em Portugal 700 mil casas devolutas”.
Sabe-se que algumas casas estão devolutas por não estarem em condições de ser habitadas e outras porque as pessoas têm receio de que essa habitação possa não ser rentável, para os encargos que têm. Com efeito, muitos proprietários são pobres, herdaram casas já com rendas excessivamente baixas. E, muitas vezes, a desmotivação resulta dos impostos sobre a posse desses imóveis, que levam ao aumento dos preços das rendas. Ora, na regulamentação, segundo o entrevistado, “o que se tem de conquistar é uma concertação entre proprietários e inquilinos”.
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Um outro problema apontado pelo relatório é o da falta de creches, que tem de levar a um compromisso das organizações da sociedade civil vocacionadas para o efeito. De facto, segundo o entrevistado, algumas necessitam de reconversão no seu objeto social, “porque deixaram de ter justificação as respostas que estavam a dar, para idades mais velhas”. Efetivamente, tendo a demografia levado algumas a não terem utentes, elas podem reconverter-se para creche. Há, pois, que “criar mais creches e essa criação advém da construção de mais equipamentos, mas também da reconversão dos que já existem”. Porém, não pode ignorar-se que se trata duma resposta que, para as instituições sociais, se torna muito cara, porque “é exigida uma proteção maior por parte dos adultos relativamente às crianças”. Por exemplo, “o número de profissionais por sala tem de ser maior”, o que desequilibra em termos de custos, pelo que “o Estado tem de criar apoios”. E, partindo dum comportamento recorrente, alerta:
Quando a mulher engravida, a família inscreve-se logo numa creche, para ficar em lista de espera, muitas vezes até pagando antecipadamente essa situação, o que é injusto. É urgente, não só para darmos respostas às necessidades das famílias, mas também porque sabemos que é muito profícuo para a criança que ela possa ter acesso a um equipamento desta ordem.”.
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No respeitante à Semana Nacional da Cáritas, que inclui várias atividades locais, com destaque para o peditório público (mas cujo produto reverte para as Cáritas Diocesanas), a partir do dia 12, refere que o contributo deste peditório, juntamente com as coletas dos ofertórios das Eucaristias, no domingo, dia 15, é o único financiamento da Cáritas para o atendimento de proximidade. E enumera, a título de exemplo, as aplicações deste dinheiro: ajudar, durante o ano, nas rendas, antes que a pessoa seja despejada; na saúde, que é fundamental; no pagamento das próprias creches e infantários; no pagamento de próteses auditivas e oculares, muitas vezes pedidas por famílias que não têm como suportar o custo; ajudas no campo da deslocação das pessoas, a tratamentos médicos ou consultas, porque deixaram de existir apoios.
E na Semana Nacional da Cáritas será apresentado o 1.º Caderno de Intervenção Sociopolítica, com a reflexão do Núcleo de Observação Social da Cáritas.
A propósito, esclarece que a Cáritas não se pode dispensar de estar atenta às necessidades diárias e urgentes das pessoas, sendo que “a assistência é um patamar de intervenção social”. Todavia, a Cáritas vai mais além, “dando a sua colaboração para que as causas dos problemas, que trazem as pessoas até nós, sejam superadas”. Assim, há um grupo de pessoas, com uma preparação reconhecida em vários domínios que se reúne, pelo menos, uma vez por mês para analisar os problemas chegam à Cáritas. Sistematicamente, atravessando já vários governos, têm sido feitas propostas para se conseguir alcançar a transformação de situações menos adequadas, que não têm tido sequer resposta quanto mais aceitação, mas vai-se insistindo nas propostas, algumas delas repetidas. E lamenta:
O que nos preocupa é que nem sequer tivesse havido abertura para discutir essas propostas. Entendo que elas possam ser vistas como desinteressantes, porque não são megalómanas; o Estado tende a dedicar-se mais a respostas de grande vulto e que envolvem milhões de euros, mas estas propostas têm em si a potencialidade de envolver, na linha da subsidiariedade, as organizações que estão mais próximas dos cidadãos. (…) Uma das caraterísticas das propostas que fizemos nas várias áreas é que não eram muito onerosas. Tivemos esse cuidado, com os economistas que pertencem a este núcleo, sabendo nós das limitações orçamentais que o Estado tem.”.
A publicação do caderno reivindicativo pretende ser uma chamada de atenção para os políticos – partidos e Governo – e para a população perceber as preocupações da Cáritas e saber que esta não está apenas no campo da denúncia, mas também no anúncio de alternativas aos problemas. E pretende-se que o documento chegue às diversas instâncias antes da conferência de imprensa que se realizará no próximo dia 10.
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Enfim, uma grande e bela entrevista a testemunhar a intervenção contínua e aprofundada desta organização católica a que Eugénio Fonseca preside e que se constitui em serviço específico da dimensão sócio-pastoral da Igreja.
2020.03.07 – Louro de Carvalho

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