É a pertinente asserção de Eugénio Fonseca, presidente da Cáritas
Portuguesa, em entrevista de 6 de março à Ecclesia
e à Renascença sobre os principais
desafios que se colocam a quem trabalha pela erradicação da pobreza e a
propósito da próxima semana nacional, de 8 a 15 de março, sob o tema “Cáritas é Amor”, promovendo iniciativas
que visam dar a conhecer o seu trabalho no combate à pobreza e exclusão social.
Desde logo não o
surpreenderam os dados do relatório da Cáritas, que mostra haver “barreiras e
obstáculos consideráveis” no acesso aos principais direitos sociais (sobretudo para os grupos mais vulneráveis da
população), como a habitação,
a saúde, a educação, o emprego e outros serviços básicos. Com efeito, o
relatório fundamenta-se nos atendimentos de proximidade da maior parte das
paróquias do país, que nos dão conta dos problemas em causa. Trata-se de preocupações agora vertidas num documento
feito em comparação com outros 16 países da Europa, o que dá “uma visão muito
mais alargada do que aquela que se restringe ao espaço nacional”.
A sua apresentação assinalou
a demasiada condescendência e indiferença dos portugueses face à pobreza. Há efetivamente “pouca pressão por parte da população
e das instituições que a representam” mercê do preconceito ancestral perante “este
problema social”, pois “ainda predomina
em muitas mentes (…) a ideia de
que as vítimas da pobreza são os culpados da situação em que se encontram”, quando há “realidades que o país tem, e não se pode
julgar que são os pobres que as vão resolver”. Isto tem a ver “com situações
que se conhecem, que existem de facto, com formas de estar que as próprias condições
de vida geraram”. E observa:
“Nós temos em Portugal, relativamente à
pobreza, uma situação que é inadmissível – ainda mais quando sabemos que
existem tantas organizações relacionadas com os fenómenos sociais e económicos!
– que é termos gente que passa gerações seguidas na pobreza. E isso tem a ver
com o sistema.”.
Depois, o presidente da Cáritas aponta, preocupado, a estruturação do
sistema que “apela a uma relação de dependência dos serviços de proteção social”.
Muitas vezes a subsidiodependência das pessoas leva-as a não procurarem “superar
as causas dos seus problemas”. Com efeito, como sublinha, “o próprio sistema – as políticas de proteção social, os dinamismos das
próprias instituições –, conforme está tem metodologias que substituem as pessoas
na própria organização das suas vidas”. Ou seja, ditam-se receitas sem se
envolverem as pessoas, não se criando formas de “corresponsabilização na medida
das capacidades das pessoas”.
Assim, o sistema tem de ser revisto para se equacionar uma questão “crucial
na eliminação da pobreza, que é a autoestima”. Na verdade, a grande dificuldade
na superação da pobreza “é a pessoa julgar que não é capaz” e habituar-se “à
forma como o sistema se organiza”. Mesmo os grupos eclesiais, segundo Eugénio
Fonseca, “deviam estar mais interligados, devia haver uma relação colaborativa
maior, para evitar que certas pessoas (…) percorram tantas vezes diversas paróquias para verem satisfeitos os seus
bens de substância”.
Falando da pobreza e das suas caraterísticas, diz que não houve mudança de
conceito e vinca:
“Ser pobre é estar privado de recursos que
são necessários para uma substância digna, e arranjou-se uma bitola que é a mediana
do rendimento de cada país, e abaixo dessa mediana considera-se que a pessoa é
financeiramente pobre”.
Face à realidade dos
salários que não acompanham o crescimento da economia, explicita:
“O que mudou efetivamente foi o perfil da pessoa que
ficou em situação de pobreza. Depois da crise, a pobreza entrou pela classe
média adentro. É uma classe média baixa, que podemos dizer que é a classe média
mais popular, mas que tem condições que há 15 anos não tinha, em termos de
habilitações académicas, de capacitação. Por exemplo, ao nível da conexão com o
mundo, a internet veio trazer uma maior abrangência de conhecimentos, e os
nossos atendimentos sociais têm de se tornar muito mais capazes, porque as
pessoas já trazem consigo um conjunto de informações e vêm à procura da ajuda
para poderem aproveitar as oportunidades.”.
No atinente ao emprego, refere que as pessoas querem reconquistar o posto de
trabalho que perderam, pois os salários são “a fonte de rendimentos para a
maior parte das pessoas”. Porém, os empregadores, para criarem trabalho,
optaram pela “redução do salário”.
E evidencia “duas realidades na relação do trabalho e da pobreza”:
“os que trabalham e continuam pobres”; e os desempregados de longa duração. Quanto
aos primeiros, aponta a excessiva desproporção dos salários, que se torna “mais
escandalosa quando se percebe os desníveis salariais entre aqueles que ocupam
lugares de topo e os que operacionalizam a produção” – desnível escandaloso, “que
gera a profundidade das desigualdades que sentimos”. Já o desempregado de longa duração “é um conceito que nasceu na crise
que assolou o Vale do Ave e a Península de Setúbal”. E, neste sentido, lamenta:
“Quem está há mais de um ano sem conseguir
um novo posto de trabalho é considerado desempregado de longa duração, e o
grande problema é que isto se tornou um chavão classificativo dos patamares de
desempregados. O desempregado de longa duração está numa prateleira (…). Já não
se olha com tanta acuidade.”.
É certo que a procura de emprego pela primeira vez (jovens) também tem consequências muito negativas, mas os desempregados
de longa duração constituem uma faixa etária que “já não interessa ao mercado
de trabalho”, pois não têm idade e habilitações profissionais compatíveis com
uma indústria que “se faz a partir de meios tecnológicos que já são muito
avançados”. E aqui aponta a fragilidade da Segurança Social para confessar não
saber como se resolverá isto.
Sustenta que “não pode ser com subsídios” e ou a sociedade resolve
dignamente o problema ou se confrontará com uma tensão social e pessoal, que se
refletirá nos gastos com a saúde, “porque muitas destas pessoas já estão com
perturbações na ordem de saúde mental”, por recusarem a inatividade a que estão
votadas, sem que se encontre uma resposta para elas.
***
Questionado sobre o
indicador mais problemático revelado no predito relatório, o da habitação e
sobre a bondade da Lei de Bases da Habitação em vigor, começa por
afirmar que ela “tem uma
fragilidade que é estruturante”, a do “consenso que tem de existir entre quem
oferece a habitação e quem necessita dela”. E, falando das rendas, adianta:
“Devia haver um referencial legalmente
definido para um teto máximo, que tivesse sempre a ver com as caraterísticas da
própria habitação que se está a pôr no mercado de arrendamento. Porque não é só
o preço das casas não ser compatível com os rendimentos das pessoas, é o tipo
de casas e as condições de habitabilidade, que são muitas vezes
desproporcionadas em relação ao preço que se pede.”.
E o problema não é só de
Lisboa e Porto, pois chegam ecos “de outras
regiões do interior do país”. Refere que o aumento do turismo começara por ser “muito
positivo”, pois, “a seguir à crise, foi uma alavanca para o crescimento
económico, porque de outra forma não teríamos recuperado, tão facilmente”. Porém,
como o país não estava preparado para um fluxo tão grande, tiveram de criar-se outras
condições. E alguns proprietários viram nos alojamentos locais “uma fonte de
rendimento muito mais acessível, muito mais rentável”, o que redundou na coerção
do abandono de casas por parte de alguns para que os proprietários as colocassem
em alojamento local. E essas pessoas, muitas delas idosas, têm procurado a
Cáritas porque não conseguem casa, mesmo um T1 ou um T0, por preços conformes
às possibilidades das pensões, das reformas que auferem.
E as restrições que a própria Lei e o Orçamento do Estado impõem ao alojamento
local e à forma como se fazem os despejos “não são suficientes” – pensa o presidente
da Cáritas – porque estamos deficitários de um número significativo de habitações
para as pessoas que precisam, pois não são só os desalojados, são também os que
querem autonomia pessoal e familiar.
Depois, a Lei de Bases aponta que o Estado deve ser regulador,
mas não se concretiza esta vertente e Eugénio Fonseca esclarece:
“Eu não queria que o Estado fosse um Estado
polícia, por via, muitas vezes, de um controlo fiscal; gostava que fosse um
Estado regulador, que criasse condições motivadoras para que proprietários
coloquem as suas casas à disposição e sejam mais criteriosos na forma como
gerem as casas que têm para arrendar – porque existem em Portugal 700 mil casas
devolutas”.
Sabe-se que algumas casas estão devolutas por não estarem em condições de
ser habitadas e outras porque as pessoas têm receio de que essa habitação possa
não ser rentável, para os encargos que têm. Com efeito, muitos proprietários
são pobres, herdaram casas já com rendas excessivamente baixas. E, muitas
vezes, a desmotivação resulta dos impostos sobre a posse desses imóveis, que levam
ao aumento dos preços das rendas. Ora, na regulamentação, segundo o
entrevistado, “o que se tem de conquistar é uma concertação entre proprietários
e inquilinos”.
***
Um outro problema apontado pelo relatório é o da falta de creches, que tem
de levar a um compromisso das organizações da sociedade civil vocacionadas para
o efeito. De facto, segundo o entrevistado, algumas necessitam de reconversão
no seu objeto social, “porque deixaram de ter justificação as respostas que
estavam a dar, para idades mais velhas”. Efetivamente, tendo a demografia levado
algumas a não terem utentes, elas podem reconverter-se para creche. Há, pois,
que “criar mais creches e essa criação advém da construção de mais
equipamentos, mas também da reconversão dos que já existem”. Porém, não pode
ignorar-se que se trata duma resposta que, para as instituições sociais, se
torna muito cara, porque “é exigida uma proteção maior por parte dos adultos
relativamente às crianças”. Por exemplo, “o
número de profissionais por sala tem de ser maior”, o que desequilibra em termos
de custos, pelo que “o Estado tem de criar apoios”. E, partindo dum comportamento
recorrente, alerta:
“Quando a mulher engravida, a família
inscreve-se logo numa creche, para ficar em lista de espera, muitas vezes até
pagando antecipadamente essa situação, o que é injusto. É urgente, não só para
darmos respostas às necessidades das famílias, mas também porque sabemos que é
muito profícuo para a criança que ela possa ter acesso a um equipamento desta
ordem.”.
***
No respeitante à Semana
Nacional da Cáritas, que inclui várias atividades locais, com destaque para
o peditório público (mas cujo produto reverte
para as Cáritas Diocesanas), a partir do dia 12, refere que o contributo deste
peditório, juntamente
com as coletas dos ofertórios das Eucaristias, no domingo, dia 15, é o único
financiamento da Cáritas para o atendimento de proximidade. E enumera, a título de exemplo, as aplicações
deste dinheiro: ajudar, durante o ano, nas rendas, antes que a pessoa
seja despejada; na saúde, que é fundamental; no pagamento das próprias creches
e infantários; no pagamento de próteses auditivas e oculares, muitas vezes
pedidas por famílias que não têm como suportar o custo; ajudas no campo da
deslocação das pessoas, a tratamentos médicos ou consultas, porque deixaram de
existir apoios.
E na Semana Nacional da Cáritas será
apresentado o 1.º Caderno de Intervenção Sociopolítica, com a reflexão
do Núcleo de Observação Social da Cáritas.
A propósito, esclarece que a Cáritas não se pode dispensar de estar atenta às
necessidades diárias e urgentes das pessoas, sendo que “a assistência é um
patamar de intervenção social”. Todavia, a Cáritas vai mais além, “dando a sua
colaboração para que as causas dos problemas, que trazem as pessoas até nós,
sejam superadas”. Assim, há um grupo de pessoas, com uma preparação reconhecida
em vários domínios que se reúne, pelo menos, uma vez por mês para analisar os
problemas chegam à Cáritas. Sistematicamente, atravessando já vários governos,
têm sido feitas propostas para se conseguir alcançar a transformação de
situações menos adequadas, que não têm tido sequer resposta quanto mais aceitação,
mas vai-se insistindo nas propostas, algumas delas repetidas. E lamenta:
“O que nos
preocupa é que nem sequer tivesse havido abertura para discutir essas
propostas. Entendo que elas possam ser vistas como desinteressantes, porque não
são megalómanas; o Estado tende a dedicar-se mais a respostas de grande vulto e
que envolvem milhões de euros, mas estas propostas têm em si a potencialidade
de envolver, na linha da subsidiariedade, as organizações que estão mais
próximas dos cidadãos. (…) Uma das caraterísticas das propostas que fizemos nas
várias áreas é que não eram muito onerosas. Tivemos esse cuidado, com os
economistas que pertencem a este núcleo, sabendo nós das limitações orçamentais
que o Estado tem.”.
A publicação do caderno reivindicativo pretende ser
uma chamada de atenção para os políticos – partidos e Governo – e para a
população perceber as preocupações da Cáritas e saber que esta não está apenas
no campo da denúncia, mas também no anúncio de alternativas aos problemas. E pretende-se
que o documento chegue às diversas instâncias antes da conferência de imprensa
que se realizará no próximo dia 10.
***
Enfim, uma grande e bela entrevista a testemunhar a intervenção contínua e
aprofundada desta organização católica a que Eugénio Fonseca preside e que se
constitui em serviço específico da dimensão sócio-pastoral da Igreja.
2020.03.07 –
Louro de Carvalho
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