terça-feira, 10 de março de 2020

Continuar a confiar na justiça, mas de outra maneira (!)


Na sequência do que se passou no Tribunal da Relação de Lisboa (TRL), António Piçarra, presidente do Supremo Tribunal de Justiça (STJ), veio a terreiro tomar posição e reafirmar a importância de os cidadãos continuarem a confiar na justiça portuguesa.
Face às suspeitas de manipulação do sorteio de processos no TRL pelo seu ex-presidente, Vaz das Neves, e pelo sucessor, Orlando Nascimento, que acabou por renunciar ao cargo face às suspeitas, o STJ decidiu fazer uma demonstração do sorteio de juízes aos jornalistas.
No passado dia 4 de março, António Piçarra, admitindo que “houve um rombo na confiança dos cidadãos na Justiça”, sustentava perante os jornalistas que “o sistema tem de funcionar, doa a quem doer” e garantia que a ferramenta do sorteio pode e deve continuar a ser melhorada para garantir maior fiabilidade e confiança. No entanto, por um lado, assegurava que o sistema de sorteio de juízes é transparente e, por outro, admitia que pode ser alterado por mão humana, mas concluía que “o sistema funciona bem”.
Referindo-se ao caso da “Operação Lex”, que envolve suspeitas de corrupção e abuso de poder relacionadas com a distribuição eletrónica de processos no TRL, o presidente do STJ – e por inerência do Conselho Superior da Magistratura (CSM) – disse lamentar este levantar de dúvidas sobre a fiabilidade do sistema. A este respeito, afirmou:
Houve um rombo na confiança dos cidadãos na Justiça, mas eu espero que os cidadãos possam continuar a confiar porque a generalidade dos juízes são pessoas isentas, íntegras, dedicadas; e, se há um ou outro que não se comporta com a dignidade que a função exige lá estarão os órgãos competentes, seja o Ministério Publico, [seja] o Conselho Superior da Magistratura. O sistema funciona e é para funcionar doa a quem doer, não há intocáveis.”.
***
A demonstração do mecanismo do sorteio eletrónico dos juízes que ali chegam, para restaurar confiança dos cidadãos, ocorreu na manhã do referido dia 4 e evidenciou o seguinte:
A secretária recebe os fluxos eletrónicos dos processos na presença do presidente ou dos vice-presidentes e, não sendo possível a presença destes, cabe ao juiz conselheiro mais antigo assistir à distribuição. No ecrã do computador surgem várias pastas alinhadas à esquerda com o nome das áreas das secções e tipologias de processos. Abrindo a pasta, acede-se à lista de recursos à espera de distribuição naquela área. O simples clique num botão dá início à distribuição que surge de imediato listada com o nome dos juízes conselheiros e respetivo processo. A lista é, depois, afixada em pauta e divulgada publicamente através do site do tribunal, permitindo “automaticamente que as partes do processo possam pedir suspeição ou recusa do juiz na intervenção no processo, caso essa situação se coloque”.
Antigamente, a distribuição era manual e com bolas, ao passo que hoje é feita através duma corrente eletrónica em que nos limitamos a ver os processos que entraram e basta carregar num botão e imediatamente o programa faz a distribuição pelos juízes conselheiros e o processo é-lhes automaticamente atribuído sem intervenção humana. Todavia, há particularidades na distribuição dos vários tribunais e situações em que a atribuição de processos ocorre de forma manual. Por exemplo: um processo chega da Relação e é distribuído; o juiz entende que deve anular a decisão da Relação porque a prova não foi bem apreciada e pede mais instrução do caso; e, quando o processo regressa ao STJ, como o juiz já conhece o processo, por imposição legal, esse é atribuído ao mesmo conselheiro. Se o juiz está doente, pode ser retirado da lista; e, se tiver de se ausentar por motivos de representação, fica também ausente do sorteio por tempo determinado, mas vê o número de processos distribuídos agravado após o regresso. O mesmo acontece com juízes novos que, por norma, recebem mais processos que os restantes, uma vez que ainda não têm casos atribuídos.
E o presidente do STJ relatou o caso do conselheiro Clemente Lima, um dos candidatos a juiz do Tribunal Constitucional. Pediu que não lhe fossem distribuídos processos. Ficou inibido de receber a distribuição porque já não teria tempo para despachar. A partir da informação de que tinha sido rejeitado o seu nome, entrou na distribuição e ficou com um novo processo.
António Piçarra quer acreditar que este processo de sorteio será sempre igual em todos os tribunais e de forma transparente, mas admite que possa haver comportamentos desviantes. E é categórico a observar:
Agora ou se confia nas pessoas que têm essa responsabilidade ou não. O sistema é transparente, agora qualquer um de nós pode ser desleal, desonesto nas suas atividades. Alguma intrusão no sistema está registada. Se alguém alguma vez pensasse em alterar o nome do juiz para um processo, isso ficava automaticamente registado no sistema.”.
Antes de janeiro, grande parte dos processos chegava em papel aos tribunais superiores e tinha de ser introduzida manualmente no sistema. Piçarra admite que poderia aqui haver atrasos propositados, mas diz que no STJ “o processo era sujeito a distribuição como qualquer outro de forma imediata”, sem, no entanto, garantir que nos outros tribunais a prática fosse essa.
Estiveram presentes dois responsáveis pelo IGFEJ (Instituto de Gestão Financeira dos Equipamentos da Justiça). Carlos Costa Brito, vogal do Conselho Diretivo, confrontado com a questão sobre o sistema permite alterações por mão humana, respondeu que “há vários métodos, uns incluem sorteio e outros não, por razões estabelecidas na lei”. Garantiu que “o sistema cumpre o que está na lei, não se tendo identificado falha informática ou intrusão” e que “todas as operações ficam registadas no sistema e são passiveis de auditoria sempre que a entidade competente assim o solicite”. Quem faz as configurações específicas no sistema conforme a necessidade de cada tribunal são os utilizadores do tribunal (neste caso oficiais de justiça ou administrador judiciário). O sistema regista todas as alterações e permite saber quem fez o quê.
O sistema informático da Justiça tem sofrido melhorias ao longo dos anos, mercê das assíduas análises. É sempre possível introduzir melhorias que juízes considerem necessárias. Todos os tribunais do país têm o mesmo software base, mas cada um depois tem ajustes próprios.
Sobre o tipo de anomalias reportadas neste sistema de sorteio, Costa Brito responde que “não há anomalias significativas registadas no sistema”. Não obstante, adianta:
Muitas vezes o problema tem a ver com a máquina e nunca com a execução do algoritmo do software. Nós damos respostas de anomalias a pedido das entidades, respondemos às solicitações dos tribunais, não há qualquer sistema de alerta definido, porque nunca foi solicitado.”.
***
No dia 7, o Expresso publicou uma entrevista com o presidente do STJ, que passou na SIC, em que disse, entre outras coisas, que o sistema ficou como estão as obras do edifício do STJ (esventrado, em estaleiro e andaimes) e reiterou que os casos do TRL abalaram a confiança no sistema de justiça. Sem deixar de dizer que o comum dos juízes é competente, honesto e rigoroso, porfiou que, se dependesse de si, juízes corruptos, desonestos e inéticos não voltariam a exercer.
Disse que os instrutores de inquérito e processo disciplinar podem determinar a suspensão preventiva dos arguidos e frisou que o tempo do processo disciplinar, como os que foram instaurados pelo CSM a alguns juízes e serão instaurados a outros, é diferente do tempo do processo-crime e que as conclusões podem ser diferentes, sendo que a inibição de exercer deriva da infração grave dos deveres funcionais, o que pode não levar a pena decretada por via da prática de crime.
Também se mostrou contra a organização dos megaprocessos que absorvem meios e tempo excessivo, levando a que a justiça morosa não seja eficaz e não seja justiça, competindo ao Ministério Público desdobrar os processos pela extração de certidões. E criticou o estrelato dos juízes, ou seja, a falta de discrição de alguns juízes, que pretendem um certo vedetismo, estando neste caso alguns juízes de instrução, nomeadamente do TCIC, referindo que se trata não de juízes que fazem julgamentos, mas de juízes das liberdades. Por outro lado, entende que já não se justifica a existência do DCIAP e do TCIC, convindo que os grandes processos se distribuam pelo país, até porque hoje já há juízes com boa formação nos vários distritos judiciais.
O que me deixou dúvidas foi a afirmação que fez em resposta à pergunta se podíamos continuar a confiar na justiça. Disse que sim, que podíamos e devíamos confiar, mas de outra maneira, o que não especificou. E aqui interrogo-me se há várias maneiras de confiar, pois, em meu entender, não se confia a meio gás, nem desta ou daquela maneira: ou se confia ou não se confia. Sabe-me a sua afirmação, no contexto do esforço para recredibilizar o sistema, a oco ou ao tapar do sol com a peneira. Por isso, em vez da confiança, suponho que devemos todos estar atentos e esperar para ver e crer. Se os demais órgãos de soberania estão sob escrutínio dos cidadãos, também os tribunais o devem estar, pelo que, embora as suas decisões prevaleçam sobre as das demais entidades, o escrutínio não pode ficar pura e simplesmente entre portas.
***
A título adicional cumpre dar conta da posição semiclara de Marcelo, que tantas vezes diz que tudo tem de ser investigado custe o que custar, doa a quem doer, desta vez limitou-se a elogiar a postura do sistema judicial em relação aos presumíveis prevaricadores.
Assim não parece sem motivo a crítica de Paulo Rangel a supor que o Presidente da República, garante constitucional do regular funcionamento das instituições democráticas, “esteve mal ao não fazer nada” face às suspeitas de abuso de poder no sorteio de processos no TRL. De facto, no programa “Casa Comum” do dia 4, na “Rádio Renascença”, o eurodeputado socialdemocrata disse que Marcelo lavou as mãos como Pôncio Pilatos, quando estamos frente a uma matéria constitucional de primeira linha e ele esteve mal ao não fazer nada”.
Apesar de garantir que tem “uma enorme confiança na Justiça portuguesa”, Rangel contrapõe que “este é um caso com reação tardia que contribui para a demagogia sobre a Justiça”.
Por sua vez, o ex-eurodeputado socialista Francisco Assis, sobre o mesmo assunto, é menos crítico da figura do Presidente da República, admitindo que este se tenha resguardado “para esperar pela reação do aparelho judicial, embora sem deixar de sublinhar que estamos perante “um dos casos mais graves na Justiça em Portugal” de que tem memória. E diz:
É um tudo gravíssimo, tem de ser totalmente elucidado, não pode subsistir qualquer dúvida”.
***
Quando estes casos de irregularidade no sorteio para a distribuição de processos, de venda de sentenças, decisões de favor, utilização da sala de audiências para atos de mediação particular, sucedem em tribunais superiores (tribunais de recurso que têm o dever de aferir da qualidade das decisões da 1.ª instância, confirmando-as, alterando-as ou levando à repetição de julgamento na 1.ª instância), onde cresce a responsabilidade, é caso para dizer que estamos no fim da linha ou que a justiça se tornou espetáculo da degradação. E só há um remédio: os operadores da justiça pedirem desculpas públicas, arrepiarem caminho, expulsarem os desonestos, ponderarem (filtrarem) as críticas que a opinião pública lhes dirigir e decidirem fazer justiça equitativa, célere e confiável.
2020.03.10 – Louro de Carvalho      

Sem comentários:

Enviar um comentário