Na sequência do que se passou no Tribunal da
Relação de Lisboa (TRL), António Piçarra, presidente do Supremo Tribunal de
Justiça (STJ), veio a terreiro tomar posição e reafirmar a
importância de os cidadãos continuarem a confiar na justiça portuguesa.
Face às
suspeitas de manipulação do sorteio de processos no TRL pelo seu ex-presidente,
Vaz das Neves, e pelo sucessor, Orlando Nascimento, que acabou por
renunciar ao cargo face às suspeitas, o STJ decidiu fazer uma demonstração do
sorteio de juízes aos jornalistas.
No passado dia 4 de março, António Piçarra, admitindo que “houve um rombo na confiança
dos cidadãos na Justiça”, sustentava perante os jornalistas que “o sistema tem de funcionar, doa a quem
doer” e garantia que a ferramenta do sorteio pode e deve continuar a ser
melhorada para garantir maior fiabilidade e confiança. No entanto, por um lado,
assegurava que o sistema de sorteio de juízes é transparente e, por outro,
admitia que pode ser alterado por mão humana, mas concluía que “o sistema
funciona bem”.
Referindo-se
ao caso da “Operação Lex”, que
envolve suspeitas de corrupção e abuso de poder relacionadas com a distribuição
eletrónica de processos no TRL, o presidente do STJ – e por inerência do
Conselho Superior da Magistratura (CSM) – disse lamentar este levantar de dúvidas sobre a fiabilidade do sistema.
A este respeito, afirmou:
“Houve um rombo na confiança dos cidadãos na Justiça, mas eu espero que
os cidadãos possam continuar a confiar porque a generalidade dos juízes são
pessoas isentas, íntegras, dedicadas; e, se há um ou outro que não se comporta
com a dignidade que a função exige lá estarão os órgãos competentes, seja o
Ministério Publico, [seja] o Conselho Superior da Magistratura. O sistema
funciona e é para funcionar doa a quem doer, não há intocáveis.”.
***
A demonstração do mecanismo do sorteio eletrónico dos juízes que ali
chegam, para restaurar confiança dos cidadãos, ocorreu na manhã do referido dia
4 e evidenciou o seguinte:
A secretária
recebe os fluxos eletrónicos dos processos na presença do presidente ou dos
vice-presidentes e, não sendo possível a presença destes, cabe ao juiz
conselheiro mais antigo assistir à distribuição. No ecrã do computador surgem
várias pastas alinhadas à esquerda com o nome das áreas das secções e
tipologias de processos. Abrindo a pasta, acede-se à lista de recursos à espera
de distribuição naquela área. O simples clique num botão dá início à
distribuição que surge de imediato listada com o nome dos juízes conselheiros e
respetivo processo. A lista é, depois, afixada em pauta e divulgada publicamente
através do site do tribunal,
permitindo “automaticamente que as partes do processo possam pedir suspeição ou
recusa do juiz na intervenção no processo, caso essa situação se coloque”.
Antigamente,
a distribuição era manual e com bolas, ao passo que hoje é feita através duma
corrente eletrónica em que nos limitamos a ver os processos que entraram e
basta carregar num botão e imediatamente o programa faz a distribuição pelos
juízes conselheiros e o processo é-lhes automaticamente atribuído sem
intervenção humana. Todavia, há particularidades na distribuição dos vários
tribunais e situações em que a atribuição de processos ocorre de forma manual.
Por exemplo: um processo chega da Relação e é distribuído; o juiz entende que
deve anular a decisão da Relação porque a prova não foi bem apreciada e pede
mais instrução do caso; e, quando o processo regressa ao STJ, como o juiz já
conhece o processo, por imposição legal, esse é atribuído ao mesmo conselheiro.
Se o juiz está doente, pode ser retirado da lista; e, se tiver de se ausentar
por motivos de representação, fica também ausente do sorteio por tempo
determinado, mas vê o número de processos distribuídos agravado após o
regresso. O mesmo acontece com juízes novos que, por norma, recebem mais
processos que os restantes, uma vez que ainda não têm casos atribuídos.
E o
presidente do STJ relatou o caso do conselheiro Clemente Lima, um dos
candidatos a juiz do Tribunal Constitucional. Pediu que não lhe fossem
distribuídos processos. Ficou inibido de receber a distribuição porque já não
teria tempo para despachar. A partir da informação de que tinha sido rejeitado
o seu nome, entrou na distribuição e ficou com um novo processo.
António
Piçarra quer acreditar que este processo de sorteio será sempre igual em todos
os tribunais e de forma transparente, mas admite que possa haver comportamentos
desviantes. E é categórico a observar:
“Agora ou se confia nas pessoas que têm essa responsabilidade ou não. O
sistema é transparente, agora qualquer um de nós pode ser desleal, desonesto
nas suas atividades. Alguma intrusão no sistema está registada. Se alguém
alguma vez pensasse em alterar o nome do juiz para um processo, isso ficava
automaticamente registado no sistema.”.
Antes de
janeiro, grande parte dos processos chegava em papel aos tribunais superiores e
tinha de ser introduzida manualmente no sistema. Piçarra admite que poderia aqui
haver atrasos propositados, mas diz que no STJ “o processo era sujeito a
distribuição como qualquer outro de forma imediata”, sem, no entanto, garantir
que nos outros tribunais a prática fosse essa.
Estiveram presentes
dois responsáveis pelo IGFEJ (Instituto de Gestão Financeira dos Equipamentos da
Justiça). Carlos Costa Brito, vogal do
Conselho Diretivo, confrontado com a questão sobre o sistema permite alterações
por mão humana, respondeu que “há vários métodos, uns incluem sorteio e outros
não, por razões estabelecidas na lei”. Garantiu que “o sistema cumpre o que
está na lei, não se tendo identificado falha informática ou intrusão” e que “todas
as operações ficam registadas no sistema e são passiveis de auditoria sempre
que a entidade competente assim o solicite”. Quem faz as configurações
específicas no sistema conforme a necessidade de cada tribunal são os
utilizadores do tribunal (neste caso oficiais de justiça ou administrador
judiciário). O sistema
regista todas as alterações e permite saber quem fez o quê.
O sistema
informático da Justiça tem sofrido melhorias ao longo dos anos, mercê das assíduas
análises. É sempre possível introduzir melhorias que juízes considerem
necessárias. Todos os tribunais do país têm o mesmo software base, mas cada um depois tem ajustes próprios.
Sobre o tipo
de anomalias reportadas neste sistema de sorteio, Costa Brito responde que “não
há anomalias significativas registadas no sistema”. Não obstante, adianta:
“Muitas vezes o problema tem a ver com a máquina e nunca com a execução
do algoritmo do software. Nós damos
respostas de anomalias a pedido das entidades, respondemos às solicitações dos
tribunais, não há qualquer sistema de alerta definido, porque nunca foi
solicitado.”.
***
No dia
7, o Expresso publicou uma entrevista
com o presidente do STJ, que passou na SIC, em que disse, entre outras coisas,
que o sistema ficou como estão as obras do edifício do STJ (esventrado,
em estaleiro e andaimes)
e reiterou que os casos do TRL abalaram a confiança no sistema de justiça. Sem deixar
de dizer que o comum dos juízes é competente, honesto e rigoroso, porfiou que,
se dependesse de si, juízes corruptos, desonestos e inéticos não voltariam a
exercer.
Disse
que os instrutores de inquérito e processo disciplinar podem determinar a
suspensão preventiva dos arguidos e frisou que o tempo do processo disciplinar,
como os que foram instaurados pelo CSM a alguns juízes e serão instaurados a
outros, é diferente do tempo do processo-crime e que as conclusões podem ser
diferentes, sendo que a inibição de exercer deriva da infração grave dos
deveres funcionais, o que pode não levar a pena decretada por via da prática de
crime.
Também
se mostrou contra a organização dos megaprocessos que absorvem meios e tempo
excessivo, levando a que a justiça morosa não seja eficaz e não seja justiça,
competindo ao Ministério Público desdobrar os processos pela extração de
certidões. E criticou o estrelato dos juízes, ou seja, a falta de discrição de
alguns juízes, que pretendem um certo vedetismo, estando neste caso alguns
juízes de instrução, nomeadamente do TCIC, referindo que se trata não de juízes
que fazem julgamentos, mas de juízes das liberdades. Por outro lado, entende
que já não se justifica a existência do DCIAP e do TCIC, convindo que os
grandes processos se distribuam pelo país, até porque hoje já há juízes com boa
formação nos vários distritos judiciais.
O que me
deixou dúvidas foi a afirmação que fez em resposta à pergunta se podíamos continuar
a confiar na justiça. Disse que sim, que podíamos e devíamos confiar, mas de
outra maneira, o que não especificou. E aqui interrogo-me se há várias maneiras
de confiar, pois, em meu entender, não se confia a meio gás, nem desta ou
daquela maneira: ou se confia ou não se confia. Sabe-me a sua afirmação, no
contexto do esforço para recredibilizar o sistema, a oco ou ao tapar do sol com
a peneira. Por isso, em vez da confiança, suponho que devemos todos estar
atentos e esperar para ver e crer. Se os demais órgãos de soberania estão sob
escrutínio dos cidadãos, também os tribunais o devem estar, pelo que, embora as
suas decisões prevaleçam sobre as das demais entidades, o escrutínio não pode
ficar pura e simplesmente entre portas.
***
A título
adicional cumpre dar conta da posição semiclara de Marcelo, que tantas vezes
diz que tudo tem de ser investigado custe o que custar, doa a quem doer, desta
vez limitou-se a elogiar a postura do sistema judicial em relação aos
presumíveis prevaricadores.
Assim
não parece sem motivo a crítica de Paulo Rangel a supor que o Presidente da República, garante constitucional do regular
funcionamento das instituições democráticas, “esteve mal ao não fazer nada”
face às suspeitas de abuso de poder no sorteio de processos no TRL. De facto,
no programa “Casa Comum” do dia 4, na “Rádio
Renascença”, o eurodeputado socialdemocrata disse que Marcelo lavou as mãos
como Pôncio Pilatos, quando estamos frente a uma matéria constitucional de
primeira linha e ele esteve mal ao não fazer nada”.
Apesar de
garantir que tem “uma enorme confiança na Justiça portuguesa”, Rangel contrapõe
que “este é um caso com reação tardia que contribui para a demagogia sobre a
Justiça”.
Por sua vez,
o ex-eurodeputado socialista Francisco Assis, sobre o mesmo assunto, é menos
crítico da figura do Presidente da República, admitindo que este se tenha
resguardado “para esperar pela reação do aparelho judicial, embora sem deixar
de sublinhar que estamos perante “um dos casos mais graves na Justiça em
Portugal” de que tem memória. E diz:
“É um tudo gravíssimo, tem de ser totalmente elucidado, não pode
subsistir qualquer dúvida”.
***
Quando estes
casos de irregularidade no sorteio para a distribuição de processos, de venda
de sentenças, decisões de favor, utilização da sala de audiências para atos de
mediação particular, sucedem em tribunais superiores (tribunais
de recurso que têm o dever de aferir da qualidade das decisões da 1.ª
instância, confirmando-as, alterando-as ou levando à repetição de julgamento na
1.ª instância), onde
cresce a responsabilidade, é caso para dizer que estamos no fim da linha ou que
a justiça se tornou espetáculo da degradação. E só há um remédio: os operadores
da justiça pedirem desculpas públicas, arrepiarem caminho, expulsarem os
desonestos, ponderarem (filtrarem) as críticas
que a opinião pública lhes dirigir e decidirem fazer justiça equitativa, célere
e confiável.
2020.03.10 – Louro de Carvalho
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