quarta-feira, 25 de março de 2020

Vivemos num estado de exceção previsto na Constituição


Como assegura Gonçalo Almeida Ribeiro, juiz do Tribunal Constitucional, em artigo no “Observador” hoje, dia 25 de março, “a ordem constitucional não vive na cegueira”, pelo que “admite medidas extraordinárias em tempos de exceção”. Respigo alguns conteúdos, que adapto, amplio e a que dou tratamento conforme a minha visão pessoal.
A lei fundamental não adota a expressão “estado de exceção”, mas prevê, no seu artigo 19.º, com as necessárias limitações e cautelas, a “suspensão do exercício de direitos”, sendo que, “em nenhum caso, esta pode afetar os direitos à vida, à integridade pessoal, à identidade pessoal, à capacidade civil e à cidadania, a não retroatividade da lei criminal, o direito de defesa dos arguidos e a liberdade de consciência e de religião”, bem como “não pode afetar a aplicação das regras constitucionais relativas à competência e ao funcionamento dos órgãos de soberania e de governo próprio das regiões autónomas ou os direitos e imunidades dos respectivos titulares”.  
Não se trata duma exceção superficial ou pontual como a verificada num comportamento que infrinja a lei por motivo de urgência ou esgotamento físico. Almeida Ribeiro dá dois exemplos: legitimidade para infringir a norma que proíba o derramamento de sangue na via pública por parte de cirurgião que intervenha em prol dum sinistrado gravemente ferido, se tiver de o operar ali; não condenação de passageiro por adormecimento na estação do caminho de ferro cedência ao cansaço à espera dum comboio noturno extremamente atrasado. São obviamente situações pontuais de exceção que não constituem obrigações que impliquem toda a comunidade.
O mencionado artigo 19.º da Constituição prevê duas situações de exceção: o estado de sítio, como a forma mais severa do estado de exceção na ordem constitucional, previsto nos casos de agressão efetiva ou iminente por forças estrangeiras, de grave ameaça ou perturbação da ordem constitucional democrática; e o estado de emergência, a forma menos severa, previsto para os casos de calamidade pública. É certo que a norma constitucional junta as duas situações, mas o n.º 3 do art.º 19.º refere que “o estado de emergência é declarado quando os pressupostos (…) se revistam de menor gravidade e apenas pode determinar a suspensão de alguns dos direitos, liberdades e garantias susceptíveis de serem suspensos”. E o n.º 4 estabelece:
A opção pelo estado de sítio ou pelo estado de emergência, bem como as respetivas declaração e execução, devem respeitar o princípio da proporcionalidade e limitar-se, nomeadamente quanto às suas extensão e duração e aos meios utilizados, ao estritamente necessário ao pronto restabelecimento da normalidade constitucional”.
Assim, o “estado de emergência” decretado a 18 de março é a forma menos severa da situação excecional prevista na Constituição, em que a ordem constitucional admite a não aplicação integral das normas que definem o nosso modus vivendi coletivo.
Nos casos de exceção pontual como os apontados supra, não se aplica o preceito legal porque aplicá-lo contrariaria o real desiderato do legislador, como dizem os juristas contemporâneos, na esteira dos juristas romanos e medievais, pois tais casos se inscrevem, não na letra da lei, mas não no seu espírito. Ninguém contesta que o entendimento destes casos no espírito da lei permite aos advogados, magistrados e professores de direito pouparem-se ao descrédito de em casos importantes adotarem soluções caricatas aos olhos das pessoas sensatas.
Porém, não é nesse sentido superficial que são excecionais o estado de sítio e o estado de emergência. São-no num sentido radical que diz respeito às condições pressupostas na vigência da norma, fazendo-a cessar temporariamente. Assim, por exemplo, cede a proibição de derramamento de sangue na via pública face à ruína das instituições ou à queda do poder na rua, obrigando os cidadãos a defender, se necessário pela força, a sua vida e bens; e suspende-se a proibição de dormir nas estações de caminhos de ferro quando os habitantes duma localidade devastada por catástrofe natural procuram abrigo noturno nos poucos edifícios intactos. Insistir na aplicação da norma em tais circunstâncias seria ingénuo, porque ineficaz, e equívoco porque injustificado. O estado de exceção vigora enquanto as condições pressupostas pela vigência da norma não forem restauradas, sendo que o n.º 8 do referido art.º 19.º estabelece que o estado de exceção “confere às autoridades competência para tomarem as providências necessárias e adequadas ao pronto restabelecimento da normalidade constitucional”.
Não há nada há de preocupante na noção de que a vigência de algumas leis pode suspender-se em condições excecionais. Porém, esta ideia de estado de exceção constitucional encerra um paradoxo: as normas constitucionais são fundamentais por definição, mas admite-se a sua suspensão. Este paradoxo só ficará contornado se atendermos a que o estado de exceção implica apenas a suspensão parcial de alguns direitos fundamentais (que não a separação dos poderes), pela qual se admitem restrições, à partida intoleráveis, das liberdades (a suspensão do exercício de direitos significa a sua supressão praticamente total) e concedem-se ao executivo poderes, à partida intoleráveis, de restringir liberdades na medida das necessidades (a teor da sua interpretação das circunstâncias).  
Ora nos termos do art.º 16.º da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, “a sociedade em que não seja assegurada a garantia dos direitos nem estabelecida a separação de poderes não tem constituição”. Isto quer dizer que, sem direitos fundamentais e separação de poderes, nenhum diploma, ainda que denominado de constituição, tem força constitucional genuína. Assim, uma constituição que autoriza a suspensão de direitos ou corrompe a separação dos poderes configura uma disformidade constitucional, estando para o constitucionalismo ou para a democracia constitucional como a retórica para a justiça ou a culinária para a medicina.
Não obstante, há valores em nome dos quais a ordem constitucional admite a suspensão das suas normas. Fá-lo em nome dos mesmos valores e normas. Na verdade, ao prever o estado de exceção, como sucedia na ditadura comissarial romana, admite a possibilidade de verificação de circunstâncias em que o normal exercício das liberdades fundamentais e dos poderes públicos pode comprometer a possibilidade futura dum ordenamento de convivência comum que respeite exatamente os direitos fundamentais e a separação de poderes. A exceção justifica um reforço do poder executivo porque reclama ação expedita, para a qual um poder reativo como o judicial e um poder moroso como o legislativo não se encontram naturalmente vocacionados. E a Constituição, ao invés de negar ou subvalorizar o facto, reconhece-o para o controlar. Admite, somente nos termos por ela regulados, a exceção com o fito de promover a restauração dos pressupostos para a vigência plena da Constituição, o estado de normalidade.
Em todo o caso, dois perigos espreitam este regime excecional: a sua perpetuação; e a exceção a este regime. Ora, para obviar a estes possíveis contratempos, a Constituição estabelece como pressupostos do estado de exceção a agressão efetiva ou iminente por forças estrangeiras, a perturbação grave da ordem democrática ou a calamidade pública. Por outro lado, giza os procedimentos a que obedece a declaração deste estado excecional, implicando a convergência dos dois órgãos de soberania que gozam de legitimidade democrática direta, o Presidente da República, que decreta, e a Assembleia da República, que autoriza o decreto, bem como a audição obrigatória do Governo, que emana do Parlamento e é nomeado e empossado pelo Chefe de Estado. E o Presidente pode ouvir o Conselho de Estado. Depois, fica estabelecida a real exigência de proporcionalidade na decisão de decretar um ou o outro estado de exceção, bem como na tomada das medidas de exceção autorizadas, o que vincula os poderes aos direitos fundamentais que em parte sacrificam. Estabelece-se, ainda, a vigência limitada no tempo (15 dias) do decreto (renovável com os mecanismos observados para a declaração), o que assegura a reposição da legitimidade democrática e do controlo de proporcionalidade do estado de exceção. Por fim, vêm os limites decorrentes da proibição da suspensão de certos direitos, como a vida, a capacidade civil, os direitos de defesa do arguido e a liberdade de consciência e religião. Tudo isto converge para a conservação da existência da ordem constitucional, o que não é garantido. Com efeito, se a normalidade não é restaurada e se a suspensão de liberdades e o reforço do executivo se normalizam, a promessa constitucional duma ordem plena de direitos fundamentais e separação de poderes deixa de respeitar a democracia constitucional perece na agonia da sua contingência, por força do abuso do executivo, que também ocorrerá se os poderes constituídos, na sua interpretação, considerarem as circunstâncias justificativas dum estado de exceção ao regime normal do estado de exceção (exceção anómica, isto é, à margem da lei), que, se for regulado, não dá margem a que ordem constitucional possa evadir-se a uma regressão infinita que leva à capitulação das normas face à riqueza dos factos.
Almeida Ribeiro cita o jurista alemão Carl Schmitt, colaborador do nazismo, que sustentava que “a exceção é mais interessante do que a norma” por significar que todo o direito depende da verificação continuada do estado de coisas pressuposto na sua vigência. A esta luz, a exceção parece revelar duas cedências: a da norma à decisão (o governo é dos homens e não das leis); e a da justiça à necessidade (salus populi suprema lex esto). Assim, constituirá hipocrisia liberal a pretensão de que os direitos fundamentais e a separação de poderes são compromissos incondicionais.
Porém, o constitucionalismo do artigo 16.º da Declaração de 1789, que nos garante direitos e moderação, não é pacto suicida e deve ser reconhecido pela força dos factos e pela antropologia da política. É uma boa expressão da justiça constitucional que a injustiça não pode britar.
E, sobre o regime constitucional do estado de exceção, deve dizer-se que a sua relativa rigidez, com a sua insistência no caráter temporário e limitado da figura, não é sinal de fraqueza, mas da força de caráter manifestada por Sócrates. No Górgias, Sócrates quer demonstrar a Polo que “toda a gente considera pior praticar do que sofrer uma injustiça”. Para tanto, propõe uma definição de belo, que Polo elogia, segundo a qual o mais belo é-o pelo maior prazer ou bem. Assim, praticar a injustiça só pode ser mais feio do que sofrê-la se for mais doloroso ou pior. Polo admite que o argumento de Sócrates é lógico, e este conclui que demonstrou que Polo considera que cometer a injustiça é pior do que sofrê-la. Na Apologia, Sócrates reitera ao tribunal o argumento, quando sustenta que que um homem mau não pode prejudicar um homem de bem; e acrescenta, já depois de condenado, que só uma vida justa é digna de ser vivida.
A ordem constitucional não ignora a realidade, pelo que admite medidas extraordinárias em tempo de exceção. Porém, como Sócrates recusou o plano de fuga sugerido por Críton, pois não vale salvar a vida com a indignidade, a Constituição não vende a sua alma democrática por uma côdea. É a transgressão dos limites impostos pelos seus valores essenciais que leva ao o pacto suicida a que se aludia – a autofagia moral da comunidade. Não se aceita o aforismo kantiano fiat iustitia et pereat mundus”, mas sim o aforismo romano “salus populi suprema lex esto”.
2020.03.25 – Louro de Carvalho

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