Como
assegura Gonçalo Almeida Ribeiro, juiz do Tribunal Constitucional, em artigo no
“Observador” hoje, dia 25 de março,
“a ordem constitucional não vive na cegueira”, pelo que “admite medidas extraordinárias
em tempos de exceção”. Respigo alguns conteúdos, que adapto, amplio e a que dou tratamento
conforme a minha visão pessoal.
A lei
fundamental não adota a expressão “estado de exceção”, mas prevê, no seu artigo
19.º, com as necessárias limitações e cautelas, a “suspensão
do exercício de direitos”, sendo que, “em nenhum
caso, esta pode afetar os direitos
à vida, à integridade pessoal, à identidade pessoal, à capacidade civil e à
cidadania, a não retroatividade
da lei criminal, o direito de defesa dos arguidos e a liberdade de consciência
e de religião”, bem como “não
pode afetar a aplicação das regras constitucionais relativas à competência e ao
funcionamento dos órgãos de soberania e de governo próprio das regiões
autónomas ou os direitos e imunidades dos respectivos titulares”.
Não se trata
duma exceção superficial ou pontual como a verificada num comportamento que
infrinja a lei por motivo de urgência ou esgotamento físico. Almeida Ribeiro dá
dois exemplos: legitimidade para infringir a norma que proíba o derramamento de
sangue na via pública por parte de cirurgião que intervenha em prol dum
sinistrado gravemente ferido, se tiver de o operar ali; não condenação de
passageiro por adormecimento na estação do caminho de ferro cedência ao cansaço
à espera dum comboio noturno extremamente atrasado. São obviamente situações
pontuais de exceção que não constituem obrigações que impliquem toda a
comunidade.
O mencionado
artigo 19.º da Constituição prevê duas situações de exceção: o estado de sítio,
como a forma mais severa do estado de exceção na ordem constitucional, previsto
nos casos de
agressão efetiva ou iminente por forças estrangeiras, de grave ameaça
ou perturbação da ordem constitucional democrática; e o estado de emergência, a
forma menos severa, previsto para os casos de calamidade pública. É certo que a
norma constitucional junta as duas situações, mas o n.º 3 do art.º 19.º refere que
“o estado de emergência é declarado quando os pressupostos (…) se revistam de
menor gravidade e apenas pode determinar a suspensão de alguns dos direitos,
liberdades e garantias susceptíveis de serem suspensos”. E o n.º 4 estabelece:
“A opção pelo
estado de sítio ou pelo estado de emergência, bem como as respetivas declaração
e execução, devem respeitar o princípio da proporcionalidade e limitar-se, nomeadamente
quanto às suas extensão e duração e aos meios utilizados, ao estritamente
necessário ao pronto restabelecimento da normalidade constitucional”.
Assim, o
“estado de emergência” decretado a 18 de março é a forma menos severa da
situação excecional prevista na Constituição, em que a ordem constitucional admite
a não aplicação integral das normas que definem o nosso modus vivendi coletivo.
Nos casos de
exceção pontual como os apontados supra, não se aplica o preceito legal porque
aplicá-lo contrariaria o real desiderato do legislador, como dizem os juristas
contemporâneos, na esteira dos juristas romanos e medievais, pois tais casos se
inscrevem, não na letra da lei, mas não no seu espírito. Ninguém contesta que o
entendimento destes casos no espírito da lei permite aos advogados, magistrados
e professores de direito pouparem-se ao descrédito de em casos importantes
adotarem soluções caricatas aos olhos das pessoas sensatas.
Porém, não é
nesse sentido superficial que são excecionais o estado de sítio e o estado de
emergência. São-no num sentido radical que diz respeito às condições pressupostas
na vigência da norma, fazendo-a cessar temporariamente. Assim, por exemplo, cede
a proibição de derramamento de sangue na via pública face à ruína das
instituições ou à queda do poder na rua, obrigando os cidadãos a defender, se
necessário pela força, a sua vida e bens; e suspende-se a proibição de dormir
nas estações de caminhos de ferro quando os habitantes duma localidade devastada
por catástrofe natural procuram abrigo noturno nos poucos edifícios intactos. Insistir
na aplicação da norma em tais circunstâncias seria ingénuo, porque ineficaz, e equívoco
porque injustificado. O estado de exceção vigora enquanto as condições
pressupostas pela vigência da norma não forem restauradas, sendo que o n.º 8 do
referido art.º 19.º estabelece que o
estado de exceção “confere às autoridades competência para
tomarem as providências necessárias e adequadas ao pronto restabelecimento da normalidade constitucional”.
Não há nada
há de preocupante na noção de que a vigência de algumas leis pode suspender-se
em condições excecionais. Porém, esta ideia de estado de exceção constitucional
encerra um paradoxo: as normas constitucionais são fundamentais por definição,
mas admite-se a sua suspensão. Este paradoxo só ficará contornado se atendermos
a que o estado de exceção implica apenas a suspensão parcial de alguns direitos
fundamentais (que não a separação dos poderes), pela qual se
admitem restrições, à partida intoleráveis, das liberdades (a suspensão
do exercício de direitos significa a sua supressão praticamente total) e concedem-se ao executivo poderes, à partida intoleráveis,
de restringir liberdades na medida das necessidades (a teor da sua
interpretação das circunstâncias).
Ora nos termos
do art.º 16.º da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, “a
sociedade em que não seja assegurada a garantia dos direitos nem estabelecida a
separação de poderes não tem constituição”. Isto quer dizer que, sem direitos
fundamentais e separação de poderes, nenhum diploma, ainda que denominado de constituição,
tem força constitucional genuína. Assim, uma constituição que autoriza a
suspensão de direitos ou corrompe a separação dos poderes configura uma
disformidade constitucional, estando para o constitucionalismo ou para a
democracia constitucional como a retórica para a justiça ou a culinária para a
medicina.
Não obstante,
há valores em nome dos quais a ordem constitucional admite a suspensão das suas
normas. Fá-lo em nome dos mesmos valores e normas. Na verdade, ao prever o estado
de exceção, como sucedia na ditadura comissarial romana, admite a possibilidade
de verificação de circunstâncias em que o normal exercício das liberdades
fundamentais e dos poderes públicos pode comprometer a possibilidade futura dum
ordenamento de convivência comum que respeite exatamente os direitos
fundamentais e a separação de poderes. A exceção justifica um reforço do poder
executivo porque reclama ação expedita, para a qual um poder reativo como o
judicial e um poder moroso como o legislativo não se encontram naturalmente
vocacionados. E a Constituição, ao invés de negar ou subvalorizar o facto, reconhece-o
para o controlar. Admite, somente nos termos por ela regulados, a exceção com o
fito de promover a restauração dos pressupostos para a vigência plena da Constituição,
o estado de normalidade.
Em todo o caso, dois perigos espreitam este regime excecional: a sua perpetuação;
e a exceção a este regime. Ora, para obviar a estes possíveis contratempos, a Constituição
estabelece como pressupostos
do estado de exceção a agressão efetiva ou iminente por forças estrangeiras, a
perturbação grave da ordem democrática ou a calamidade pública. Por outro lado,
giza os procedimentos a que obedece a declaração deste estado excecional,
implicando a convergência dos dois órgãos de soberania que gozam de
legitimidade democrática direta, o Presidente da República, que decreta, e a
Assembleia da República, que autoriza o decreto, bem como a audição obrigatória
do Governo, que emana do Parlamento e é nomeado e empossado pelo Chefe de Estado.
E o Presidente pode ouvir o Conselho de Estado. Depois, fica estabelecida a real
exigência de proporcionalidade na decisão de decretar um ou o outro estado de
exceção, bem como na tomada das medidas de exceção autorizadas, o que vincula os
poderes aos direitos fundamentais que em parte sacrificam. Estabelece-se,
ainda, a vigência limitada no tempo (15 dias) do decreto (renovável com os mecanismos
observados para a declaração), o que
assegura a reposição da legitimidade democrática e do controlo de
proporcionalidade do estado de exceção. Por fim, vêm os limites decorrentes da
proibição da suspensão de certos direitos, como a vida, a capacidade civil, os
direitos de defesa do arguido e a liberdade de consciência e religião. Tudo isto
converge para a conservação da existência da ordem constitucional, o que não é
garantido. Com efeito, se a normalidade não é restaurada e se a suspensão de
liberdades e o reforço do executivo se normalizam, a promessa constitucional duma
ordem plena de direitos fundamentais e separação de poderes deixa de respeitar a
democracia constitucional perece na agonia da sua contingência, por força do abuso
do executivo, que também ocorrerá se os poderes constituídos, na sua
interpretação, considerarem as circunstâncias justificativas dum estado de
exceção ao regime normal do estado de exceção (exceção anómica, isto é, à margem da lei), que, se for regulado, não dá margem a que ordem
constitucional possa evadir-se a uma regressão infinita que leva à capitulação
das normas face à riqueza dos factos.
Almeida Ribeiro
cita o jurista alemão Carl Schmitt, colaborador do nazismo, que sustentava que
“a exceção é mais interessante do que a norma” por significar que todo o
direito depende da verificação continuada do estado de coisas pressuposto na
sua vigência. A esta luz, a exceção parece revelar duas cedências: a da norma à
decisão (o governo é
dos homens e não das leis); e a da justiça
à necessidade (salus populi suprema lex esto). Assim, constituirá hipocrisia liberal a pretensão de
que os direitos fundamentais e a separação de poderes são compromissos
incondicionais.
Porém, o
constitucionalismo do artigo 16.º da Declaração de 1789, que nos garante direitos
e moderação, não é pacto suicida e deve ser reconhecido pela força dos factos e
pela antropologia da política. É uma boa expressão da justiça constitucional
que a injustiça não pode britar.
E, sobre o regime constitucional do estado de exceção, deve dizer-se
que a sua relativa rigidez, com a sua insistência no caráter temporário e
limitado da figura, não é sinal de fraqueza, mas da força de caráter
manifestada por Sócrates. No Górgias, Sócrates quer demonstrar a Polo que “toda a
gente considera pior praticar do que sofrer uma injustiça”. Para tanto, propõe
uma definição de belo, que Polo elogia, segundo a qual o mais belo é-o pelo
maior prazer ou bem. Assim, praticar a injustiça só pode ser mais feio do que
sofrê-la se for mais doloroso ou pior. Polo admite que o argumento de Sócrates
é lógico, e este conclui que demonstrou que Polo considera que cometer a
injustiça é pior do que sofrê-la. Na Apologia, Sócrates
reitera ao tribunal o argumento, quando sustenta que que um homem mau não pode prejudicar
um homem de bem; e acrescenta, já depois de condenado, que só uma vida justa é
digna de ser vivida.
A ordem
constitucional não ignora a realidade, pelo que admite medidas extraordinárias
em tempo de exceção. Porém, como Sócrates recusou o plano de fuga sugerido por
Críton, pois não vale salvar a vida com a indignidade, a Constituição não vende
a sua alma democrática por uma côdea. É a transgressão dos limites impostos
pelos seus valores essenciais que leva ao o pacto suicida a que se aludia – a
autofagia moral da comunidade. Não se aceita o aforismo kantiano “fiat iustitia
et pereat mundus”, mas sim o aforismo romano “salus populi suprema lex
esto”.
2020.03.25 – Louro de Carvalho
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