Decididamente o Evangelho de João apresenta Jesus como o
Messias, Filho de Deus, enviado pelo Pai para criar o Homem Novo. O chamado “Livro dos Sinais” (cf Jo 4,1-11,56) recorre aos sinais da água, do pão,
da luz, do pastor e da vida para uma série de catequeses em torno da ação
criadora do Messias. E o capítulo 9.º do 4.º Evangelho constitui, no contexto
da festa das colheitas (Festa
da Sukkot – com a iluminação dos 4 grandes candelabros do átrio das mulheres,
no Templo de Jerusalém),
a catequese da luz para caraterizar a ação criadora e vivificadora do Mestre.
A cura do cego de nascença ocorre somente em João e a
sensação provocada pela leitura deste episódio suscita a nossa admiração pelo
modo como o presente Evangelho se furta a um desfile de milagres avulsos, antes
valorizando um elenco reduzido de ocorrências milagrosas dotadas de forte
coesão significativa. E a narrativa destes 41 versículos que preenchem todo o
capítulo desagua na afirmação de Jesus para um juízo: “vim eu a este mundo para
que os cegos vejam e os que veem fiquem cegos” (v. 39) e liga-se a uma das grandes temáticas joânicas, a dialética da luz/escuridão,
categoricamente assumida por Jesus, que declara: “Enquanto estiver no mundo, Eu
sou a luz do mundo” (v.
4). De certo modo, todo
este capítulo funciona como sucedâneo e ilustração da asserção emitida no
capítulo 8.º: “Eu sou a luz do mundo”
(Jo 8,12).
Protagonizam o episódio, Jesus e um cego de nascença. Os
cegos pertenciam ao grupo dos excluídos – esta como outras deficiências, segundo
a teologia oficial, resultava do pecado dos próprios ou dos pais (nos caso dos deficientes natos,
pecado cometido pela criança no seio materno ou pelos pais) –, mas um dos objetivos da vinda do
Messias era dar vista aos cegos (cf Lc 4,18).
A cegueira, enquanto doença impeditiva do homem de estudar a
Lei, era resultado de pecado extremamente grave. Considerada uma enorme maldição
de Deus por excelência, impedia o paciente de servir de testemunha no tribunal
e de participar nos ritos no Templo.
Este capítulo não é reportagem ou história sobre a cura dum
cego, mas uma catequese sobre Jesus, a luz que veio iluminar o caminho dos
homens. O cego simboliza os homens e mulheres que vivem privados da luz,
prisioneiros das cadeias que os impedem de chegar à plenitude.
Num primeiro quadro (vv. 2-5), Jesus apresenta-se como “a luz do mundo”. Perante o cego de nascença,
os discípulos ficam preocupados em saber se foi o cego que pecou ou se foram os
pais (mentalidade
retribucionista). Jesus,
negando a relação entre pecado e sofrimento, invalida-lhes a preocupação e a
pergunta. E, sendo a ocasião propícia par avançar, mostra que a missão que o
Pai lhe confiou é ser “a luz do mundo” e encher de luz a vida de quem vive na
escuridão.
Num segundo quadro (vv. 6-7), Jesus prepara-se para dar a “luz” ao cego. Começa por cuspir no chão,
faz barro com a saliva e unge com o barro os olhos do cego – evocação do gesto
criador de Deus que amassou o barro e plasmou o homem (Ireneu, Contra as heresias, 5.15.2). Só João e Marcos põem Jesus a cuspir, o que nos causa
admiração, visto que Lucas e Mateus, tendo bebido na fonte de Marcos, eliminam
este gesto do Mestre. Quanto ao barro, a palavra grega aqui empregue é “pêlós”,
usada por Job quando diz a Deus: “Lembra-te
de que me plasmaste com o barro” (Jb 10,9). Mas, segundo a versão dos LXX, em Génesis (Gn 2,7), a palavra utilizada para “pó” é “khous” quando Deus
plasmou (éplasen) Adão. A saliva, que se pensava transmitir a força ou
energia vital equivale ao sopro de Deus, que deu vida a Adão (cf Gn 2,7). Assim, Jesus juntou ao barro a sua
própria energia vital, repetindo o gesto criador de Deus, pois a missão de
Jesus é criar o Homem Novo, animado pelo Espírito Santo, o dom de Deus.
É de registar que a cura não foi imediata, mas requereu a
cooperação do paciente, que obedeceu, começando a trilhar pela obediência a via
da fé. A referência ao banho na piscina do “Enviado” (o Evangelista informa que Siloé
significa “enviado”)
alude à água de Jesus (o
enviado do Pai), a água do
Espírito Santo, prometida à samaritana (Jo 4,10.13-14) e, depois, aos judeus, que torna os homens novos, livres das
trevas/escravidão. A interpretação eclesial, inspirada no sentir da comunidade
joânica vê aqui uma alegoria do Batismo (pela unção e banho: “lavei-me e comecei a ver), o “sacramento da iluminação”, pois quem
quiser sair das trevas para viver na luz, como Homem Novo, tem de aceitar a
água do Batismo, para nascer de novo, como exigia Jesus na conversa com
Nicodemos (Jo 3,1-21) – isto é, tem de optar por Jesus e
acolher a sua oferta de salvação.
A seguir, o evangelista põe em cena várias personagens, que,
representando vários papéis, assumem atitudes diversas face à cura do cego no
decurso da investigação sobre a cura.
Os vizinhos e conhecidos do cego, que, vendo o dependente e
inválido transformado em homem livre e independente, se interrogam e percebem
que de Jesus vem o dom da vida, mas não ousam dar o passo para ter acesso à
luz, representam os que percebem a novidade e sabem que a proposta é
libertadora, mas vivem na inércia, sem disposição de sair da zona de conforto.
Ao grupo dos fariseus, que sabem perfeitamente que Jesus
oferece a luz, mas a recusam, interessa continuar com o esquema das trevas.
Estes representam os que têm conhecimento da novidade de Jesus, mas não se
dispõem a acolhê-la, confortáveis que estão nos seus mecanismos de autossuficiência
e não dispostos a renunciar às trevas. Opõem-se à luz e não aceitam que alguém
queira sair da escravidão para a liberdade. Ao verificarem que o homem curado
por Jesus não está disposto a regressar aos esquemas de escravidão, expulsam-no
da sinagoga: entre as trevas e a luz não pode haver meio-termo. Acresce que a
cura ocorrera ao sábado. Parece ser sempre ao sábado que Jesus é apanhado em
situações destas. No capítulo 10.º Jesus afirma que “a Escritura não pode ser
anulada” (Jo 10,35), mas abre exceções, como se vê pelas
asserções bombásticas no Evangelho de Marcos: “O sábado foi feito para o homem e não o homem para o sábado. O Filho do
Homem até do sábado é Senhor” (Mc 2,27-28). Assim, Jesus refuta a asserção de que a não observância do sábado implica
a pena de morte (cf Nm
15,35-36).
E os pais do cego limitam-se a constatar o acontecimento: o
filho nasceu cego e agora vê. Porém, não se comprometem. É o medo de quem é
escravo e não tem coragem de passar das trevas para a luz: “tinham medo de ser
expulsos da sinagoga”. Embora o medo dos judeus seja recorrente no Evangelho de
João, no caso dos pais do cego de nascença, ora curado, o medo explica-se pelo
facto de vir a ser expulso da sinagoga quem afirmasse que Jesus era o Cristo,
pois, nos sinóticos, tal asserção era apanágio dos demónios (Mc 1,24; 3,11; Lc 4,34), pelo menos até à profissão de fé de
Pedro em Cesareia de Filipe (vd Mt 16,13-20; Mc 8,27-30; Lc 9,18-20). João, porém, dá-nos outra perspetiva: as pessoas que
entravam em contacto com Jesus ficavam aptas a reconhecê-lo como o Cristo; e,
para fazer face a tal situação, as autoridades judaicas já tinham determinado
que, se alguém o fizesse, seria expulso da sinagoga. “Sinagoga” designava tanto
o local do encontro da comunidade israelita como comunidade do Povo de Deus.
Ser expulso da sinagoga implicava a excomunhão, com a declaração de herege e
apóstata, caindo na solidão, ridículo, descrédito e marginalidade. Assim, aqueles
pais preferem a segurança da ordem estabelecida aos riscos da vida livre.
Representam quem, por medo, prefere a escravidão, não provocando os chefes ou a
opinião pública, a correr o risco da transformação salvadora.
Por fim, temos de considerar o percurso do homem curado por
Jesus. Antes de se encontrar com Jesus, é um homem dependente e limitado,
prisioneiro das trevas. Depois, recebe a luz. Tanto assim é que, perante as
dúvidas se este homem era ele mesmo o cego ou outro parecido com ele, afirma
categoricamente: “Sou eu”. Veem
alguns nesta expressão grega “egô eimi”,
tantas vezes ouvida da boca de Jesus, a convicção do ex-cego a dizer “sou eu
pós-Jesus”. Com Jesus não se passa apenas da escuridão para a luz, mas também e
sobretudo de “não ser” para “ser”.
O relato descreve, com simplicidade, a progressiva
transformação por que vai passando o homem. Nos momentos imediatos à cura, não
tem ainda certezas, pois, quando lhe perguntam por Jesus, responde que não sabe;
mas, quando lhe perguntam quem é Jesus, responde: “É um profeta”
(excetuando Elias e Eliseu, os profetas no At não se destacam como taumaturgos). Entretanto, a luz vai-o
amadurecendo progressivamente. Assim, interpelado pelos dirigentes e intimado a
renegar a luz e a liberdade, torna-se o homem das certezas e das convicções
argumentando com agilidade e inteligência e, fazendo uso da ironia, recusa-se a
regressar à escravidão. Mostra-se o homem livre, sem medo, dando aos
interlocutores lições sobre Jesus e sobre quem teme a Deus:
“Sabemos
que Deus não ouve pecadores, mas ouve o homem temente a Deus e pratica a sua
vontade. Ninguém jamais ouviu que os olhos de um cego de nascença
tivessem sido abertos. Se esse homem não fosse
de Deus, não poderia fazer coisa alguma.” (Jo 9,31-33).
Na expressão “temente a Deus”, repare-se no adjetivo
“theosebês” (derivado do
verbo “sébomai”, adorar, venerar, respeitar, honrar), que unicamente aparece aqui em todo
o NT.
Finalmente, temos o desfecho do drama, com a descrição do
estádio final da caminhada: a adesão plena a Jesus (vv. 35-38) da parte do beneficiário da
misericórdia divina. Encontrando o que fora cego, Jesus convida-o
explicitamente à fé no Filho do Homem. E a resposta é de adesão total: “Creio, Senhor”. “Senhor” (kyrios) era o
título com que a comunidade cristã primitiva designava Jesus, o Senhor
glorioso. Depois, como refere o texto, o que fora cego prostrou-se e adorou
Jesus. Ora, adorar Jesus significa reconhecê-Lo como o portador do projeto de
Homem Novo que Deus apresenta aos homens.
Neste percurso está simbolizado o caminho do catecúmeno. O
primeiro passo é o encontro com Jesus; depois, o catecúmeno manifesta a sua
adesão à luz e vai amadurecendo a sua descoberta. Torna-se, progressivamente,
um homem livre, confiante; e esse caminho desemboca na adesão total a Jesus,
acreditando que Ele conduz a história e é o salvador do homem. Depois, ao cristão
nada mais interessa do que seguir Jesus, disponibilizando-Lhe o coração.
A missão de Jesus é, pois, a criação do Homem Novo. Deus
criou o homem para a liberdade e felicidade, mas o egoísmo e a autossuficiência,
dominando o coração do homem e prenderam-no na cegueira humana, de quem não
quer ver, e frustraram o projeto de Deus. A missão de Jesus consiste em
destruir a cegueira, libertar o homem, abrir-lhe o coração e fazê-lo viver na
luz. É a nova criação, é o nascimento do Homem Novo, que vive na liberdade rumo
à plenitude.
Refira-se que o tema da recuperação da vista é típico de
Isaías (vd Is 29,18;
35,5) e cegar quem vê
ocorre no mesmo livro (vd
Is 6,10; 42,19). João
claramente quer ensinar que receber Jesus é receber a luz do mundo e rejeitá-Lo
é rejeitar a luz, fechando os olhos. Assim, os seus contemporâneos, se fossem
cegos, não teriam pecado, mas, como estão convictos de que veem, o seu erro é
maior e inamovível. É, pois, necessário despirmo-nos da cegueira e acorrer à
Luz.
2020.03.22
– Louro de Carvalho
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