Muito embora o mundo esteja abraços com uma crise
psicossocial devida ao Covid-19, que pode enviar para quarentena pessoas,
famílias e comunidades inteiras – fala-se em cercaduras populacionais e
territoriais a estabelecer pela via da declaração de emergência – e originar
uma alargada e profunda crise sistémica que abrangerá as vertentes
económico-financeira, política, social e cultural, a seu tempo rebentará a
primavera. Mais uma. Porém, nenhum de nós se fatiga por ser, à partida, só mais
uma como tantas outras. E afigura-se-nos que esta terá a marca de única, mercê
das circunstâncias que estamos a viver apontando oscilantemente para a
esperança e para a morte. Disto se faz a vida peregrina, de altos e baixos em
demanda da Vida Eterna, essa totalmente estável, plena e perfeita.
E nada impedirá que a primavera chegue, irradie,
renove. Assim o esperamos pela normalidade que a natureza imprime ao mundo dos
anos, das estações, dos meses das semanas e dos dias, bem como pela escuta da
divina palavra (que é espírito e vida) e oração (que é vigor) fervente da Igreja que autoisolada nas catacumbas das
casas de cada família e na monotonia dos templos vazios, apenas quebrada pelos
pastores que celebram os sagrados mistérios com meia dúzia de crentes em
representação de toda a comunidade local e/ou para que o fruto espiritual seja
acolhido por cada um com a sua perceção através da rádio, da televisão ou da
internet. Tudo isto acontece à mistura com um nó de amargura na garganta e um
esforço crente de esperança de que Deus nos reserva tempos melhores.
E, contudo, a primavera chegará, irradiará, renovará! E
nada ficará como dantes.
Já gorgolejam por todo o lado as águas, refolham as
árvores, reverdejam os montes e os vales enchem-se de pujança e vigor. O grão
de trigo, de centeio, de cevada ou de aveia, que aceitou apodrecer e morrer
debaixo da terra por ocasião da sementeira outonal, agora ressurgirá
transformado em haste pronta ou para espigar e abastecer a safra estival ou
para saciar o estômago tetrafólico dos animais possantes ou das crias
encantadoras, enquanto a lavoura faz enterrar o grão de milho que o verão de
calor ofertará em espiga madura ao outono que arremedará a primavera mas em
tons amarelecidos. A natureza oferecerá inúmeras paragens propícias à
tranquilidade da vida dos lavradores e dos pastores, que tanto dão para
inebriamento dos clássicos, árcades e humanistas, em razão da amenidade dos
lugares, como para o enamoramento infindo dos românticos. Que belo é o locus amoenus oferecido aos seres humanos
pelo bucolismo do campo e do monte, pela frescura das águas, pelo calor do sol!
Qualquer Ceres mortal ou Narciso encantado se poderá
perder no perfume floral, em muitos casos a dar origem a carnosos frutos, ou na
variedade tópica que as mais diversas linhas do horizonte sabem emoldurar com a
mais requintada mestria. E todo o homem atento acolherá o fluxo e refluxo do
trânsito das andorinhas, mesmo que alguma fique pelo caminho, o que não parará
a primavera!
E é neste contexto ciclicamente oferecido pela fecunda
mãe-terra e pela arejada atmosfera que, após um hibernante percurso humano,
eivado de um misto de austeridade penitente e de esperança jubilosa, que
rebenta a Páscoa da Vida que os textos das liturgias quaresmais nos dão já o
ensejo de viver. Ou seja, sobre a laje variegada que a natureza erige por toda
a terra em altar de renascimento das mais lídimas espécies, o cristianismo
montou a consolidada estratégia socioespiritual do itinerário pascal. A
Quarta-feira de Cinzas, com a distribuição do pó de que proveio o homem e ao
qual ele há de tornar, a par do convite ao arrependimento e à crença inabalável
no evangelho, abriu em solene cerimónia de humilhação elevante a temporada da
Quaresma. Com esta, a espraiar-se por cinco semanas, instruídos pela divina
Palavra, preparados pelo ritual da Reconciliação, alimentados pela Eucaristia –
desta feita apenas em espírito – e exercitados para a vida do dia a dia, os
cristãos entram na Semana Santa para exaltar o Deus que, feito homem em
Jesus Cristo, sem deixar de ser Deus, quis padecer e morrer para que os homens
tenham vida e a tenham em abundância (cf Jo 10,10).
E esse Mártir do Gólgota, apesar de ter morrido
graças à sanha dos homens, foi glorificado pelo Pai, pelo que ressuscitou e
está vivo no mundo dos vivos, está operante e com inestimável força no seio da
humanidade – força cuja perenidade dois milénios testemunham com verdade,
apesar das contradições graves ou leves que os homens infelizmente lhe souberam
contrapor.
Por consequência, o Cristo da
Fé, emergente do Cristo da História, ensina e manda ensinar a todas as nações
que o povo hebreu, escolhido por Javé para o ensaio do diálogo
divino-humano-divino, não pode reduzir à sua etnia a experiência da salvação
que os séculos deveriam ter feito alastrar. E, clamando que, em qualquer parte
do mundo e em todos os tempos, quem seguir os ditames da sua consciência e
quiser seguir a vontade de Deus será salvo, instrui a Igreja Católica não só
com o ónus da guarda da fé, mas também com a marca da humildade do serviço à
pobreza e à fraternidade universal e com o estatuto de testemunha da liberalidade
divina e de instrumento da libertação oferecida gratuitamente pelo Deus das
misericórdias a todos os homens e povos para que eles vivam na liberdade de
filhos de Deus e irmãos uns dos outros, na mais perfeita consciência da
dignidade humana.
Este ano, os doentes do Covid-19 ou os simples
suspeitos da infeção, tal como os que sofrem de outras morbosidades, segundo a
lógica paulina, completam na carne o que falta à Paixão de Cristo (Cl 1,24). Celebraremos a Páscoa e a Vida com outros contornos,
mas levantar-nos-emos e ergueremos a cabeça, tal como recomenda o Evangelho (Lc 21,28), e ergueremos as mãos para dar glória a Deus, como
recomenda o Padre Marcelo Rossi.
Portanto, apesar de tudo, ressoe por toda parte o
brado: Viva, para todos a Páscoa da Vida!
2020.03.16 – Louro de Carvalho
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