segunda-feira, 16 de março de 2020

A Páscoa da vida presente e da Vida Eterna


Muito embora o mundo esteja abraços com uma crise psicossocial devida ao Covid-19, que pode enviar para quarentena pessoas, famílias e comunidades inteiras – fala-se em cercaduras populacionais e territoriais a estabelecer pela via da declaração de emergência – e originar uma alargada e profunda crise sistémica que abrangerá as vertentes económico-financeira, política, social e cultural, a seu tempo rebentará a primavera. Mais uma. Porém, nenhum de nós se fatiga por ser, à partida, só mais uma como tantas outras. E afigura-se-nos que esta terá a marca de única, mercê das circunstâncias que estamos a viver apontando oscilantemente para a esperança e para a morte. Disto se faz a vida peregrina, de altos e baixos em demanda da Vida Eterna, essa totalmente estável, plena e perfeita.
E nada impedirá que a primavera chegue, irradie, renove. Assim o esperamos pela normalidade que a natureza imprime ao mundo dos anos, das estações, dos meses das semanas e dos dias, bem como pela escuta da divina palavra (que é espírito e vida) e oração (que é vigor) fervente da Igreja que autoisolada nas catacumbas das casas de cada família e na monotonia dos templos vazios, apenas quebrada pelos pastores que celebram os sagrados mistérios com meia dúzia de crentes em representação de toda a comunidade local e/ou para que o fruto espiritual seja acolhido por cada um com a sua perceção através da rádio, da televisão ou da internet. Tudo isto acontece à mistura com um nó de amargura na garganta e um esforço crente de esperança de que Deus nos reserva tempos melhores.
E, contudo, a primavera chegará, irradiará, renovará! E nada ficará como dantes.
Já gorgolejam por todo o lado as águas, refolham as árvores, reverdejam os montes e os vales enchem-se de pujança e vigor. O grão de trigo, de centeio, de cevada ou de aveia, que aceitou apodrecer e morrer debaixo da terra por ocasião da sementeira outonal, agora ressurgirá transformado em haste pronta ou para espigar e abastecer a safra estival ou para saciar o estômago tetrafólico dos animais possantes ou das crias encantadoras, enquanto a lavoura faz enterrar o grão de milho que o verão de calor ofertará em espiga madura ao outono que arremedará a primavera mas em tons amarelecidos. A natureza oferecerá inúmeras paragens propícias à tranquilidade da vida dos lavradores e dos pastores, que tanto dão para inebriamento dos clássicos, árcades e humanistas, em razão da amenidade dos lugares, como para o enamoramento infindo dos românticos. Que belo é o locus amoenus oferecido aos seres humanos pelo bucolismo do campo e do monte, pela frescura das águas, pelo calor do sol!   
Qualquer Ceres mortal ou Narciso encantado se poderá perder no perfume floral, em muitos casos a dar origem a carnosos frutos, ou na variedade tópica que as mais diversas linhas do horizonte sabem emoldurar com a mais requintada mestria. E todo o homem atento acolherá o fluxo e refluxo do trânsito das andorinhas, mesmo que alguma fique pelo caminho, o que não parará a primavera!
E é neste contexto ciclicamente oferecido pela fecunda mãe-terra e pela arejada atmosfera que, após um hibernante percurso humano, eivado de um misto de austeridade penitente e de esperança jubilosa, que rebenta a Páscoa da Vida que os textos das liturgias quaresmais nos dão já o ensejo de viver. Ou seja, sobre a laje variegada que a natureza erige por toda a terra em altar de renascimento das mais lídimas espécies, o cristianismo montou a consolidada estratégia socioespiritual do itinerário pascal. A Quarta-feira de Cinzas, com a distribuição do pó de que proveio o homem e ao qual ele há de tornar, a par do convite ao arrependimento e à crença inabalável no evangelho, abriu em solene cerimónia de humilhação elevante a temporada da Quaresma. Com esta, a espraiar-se por cinco semanas, instruídos pela divina Palavra, preparados pelo ritual da Reconciliação, alimentados pela Eucaristia – desta feita apenas em espírito – e exercitados para a vida do dia a dia, os cristãos entram na Semana Santa para exaltar o Deus que, feito homem em Jesus Cristo, sem deixar de ser Deus, quis padecer e morrer para que os homens tenham vida e a tenham em abundância (cf Jo 10,10).
E esse Mártir do Gólgota, apesar de ter morrido graças à sanha dos homens, foi glorificado pelo Pai, pelo que ressuscitou e está vivo no mundo dos vivos, está operante e com inestimável força no seio da humanidade – força cuja perenidade dois milénios testemunham com verdade, apesar das contradições graves ou leves que os homens infelizmente lhe souberam contrapor.
Por consequência, o Cristo da Fé, emergente do Cristo da História, ensina e manda ensinar a todas as nações que o povo hebreu, escolhido por Javé para o ensaio do diálogo divino-humano-divino, não pode reduzir à sua etnia a experiência da salvação que os séculos deveriam ter feito alastrar. E, clamando que, em qualquer parte do mundo e em todos os tempos, quem seguir os ditames da sua consciência e quiser seguir a vontade de Deus será salvo, instrui a Igreja Católica não só com o ónus da guarda da fé, mas também com a marca da humildade do serviço à pobreza e à fraternidade universal e com o estatuto de testemunha da liberalidade divina e de instrumento da libertação oferecida gratuitamente pelo Deus das misericórdias a todos os homens e povos para que eles vivam na liberdade de filhos de Deus e irmãos uns dos outros, na mais perfeita consciência da dignidade humana.
Este ano, os doentes do Covid-19 ou os simples suspeitos da infeção, tal como os que sofrem de outras morbosidades, segundo a lógica paulina, completam na carne o que falta à Paixão de Cristo (Cl 1,24). Celebraremos a Páscoa e a Vida com outros contornos, mas levantar-nos-emos e ergueremos a cabeça, tal como recomenda o Evangelho (Lc 21,28), e ergueremos as mãos para dar glória a Deus, como recomenda o Padre Marcelo Rossi.
Portanto, apesar de tudo, ressoe por toda parte o brado: Viva, para todos a Páscoa da Vida!
2020.03.16 – Louro de Carvalho

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