Foi, no
momento extraordinário de oração do passado dia 27 de março, pelas 18 horas de
Roma, a mensagem nevrálgica do Papa aos fiéis de todo o mundo que, neste
momento, se encontram a braços com a tempestade causada pela pandemia do novo coronavírus.
A partir do
átrio da Basílica de São Pedro e diante daquela Praça completamente vazia, mas
em sintonia com milhões de pessoas que se uniram ao Santo Padre, através dos poderosos
meios de comunicação, para invocarem o Senhor neste momento de extrema necessidade da
humanidade, desenrolou-se um ritual, simples, mas repleto
de significado humana e espiritual, inundando de graças a todos aqueles que
tiveram a oportunidade de participar virtualmente.
Eram
cinco os elementos que suscitavam a atenção de quem teve a oportunidade de
contemplar aquele átrio da basílica petrina: a sede donde um Papa
verdadeiramente compungido estava a presidir; a estante/ambão donde foi
proclamada a perícopa do Evangelho de Marcos que narra o episódio da tempestade acalmada por Jesus (Mc 4,35-41) e que o Pontífice comentou na
homilia dele fazendo extrair várias lições de vida; o Crucifixo da Igreja de
São Marcelo, que foi levado em procissão pelo povo durante uma peste que
atingiu a cidade de Roma no século XVI e aos pés do qual Francisco, depois das orantes
palavras de confiança que dirigiu aos crentes, pediu perdão, implorou o divino
auxílio e lançou o afetuoso ósculo de fé, esperança e caridade; o ícone de
Nossa Senhora, “Salus Populi Romani”,
de que a tradição refere ter sido pintado por São Lucas nas tábuas de uma mesa
feita pelo próprio Jesus Cristo quando jovem; e, no centro de tudo, o
Santíssimo Sacramento alçado pelo Sumo Pontífice para abençoar a todos os
homens e mulheres de boa vontade, unidos ou não a ele, naquele momento – Bênção
Urbi et Orbi
(à cidade e Roma e ao mundo),
a que se associou a concessão da Indulgência Plenária.
***
Na sua
homilia, em que alternam a exortação aos crentes e a oração ao Senhor, o Papa
Francisco afirmou que é “diante do sofrimento
que se mede o verdadeiro desenvolvimento dos povos” e apontou a ilusão de se pensar
“que continuaríamos sempre saudáveis num mundo doente”.
A meditação
homilética papal começa por glosar o entardecer e, depois, desenvolve-se
anaforicamente em torno da interpelação:
“Porque sois tão medrosos? Ainda não
tendes fé?”.
Os
discípulos já tinham alguma fé, pois até invocam o Senhor, mas não era uma fé
inabalável, confiante, comprometida, uma fé de arriscar tudo por tudo.
Assim, considerando
que, há várias semanas que parece a tarde ter caído e ter coberto de trevas
densas, de indizível e ensurdecedor silêncio e “de um vazio desolador”, sente que nos vemos existencialmente “amedrontados
e perdidos”. E observou que esta situação nos fez entender que estamos
todos no mesmo barco e que somos “chamados a remar juntos”, carecidos de mútuo encorajamento. Depois, temos de saber que, neste mesmo barco, está
Jesus agora connosco tal como estava com os discípulos daquele tempo. Mas
Jesus, no meio da tempestade, dorme. E Francisco anotou que este é o único relato
do Evangelho em que se nos diz que Jesus dorme.
Ao ser
despertado pelos discípulos em pânico, confronta-os como o medo e a falta de fé
deles.
A tempestade,
agora como naquele tempo, desmascara a nossa vulnerabilidade e deixa a nu as autossuficientes,
falsas e supérfluas seguranças com que gizamos os nossos programas, projetos, hábitos
e prioridades. Mostra como deixamos adormecido e abandonado o que nutre,
sustenta e fortalece a nossa vida e a nossa comunidade. Com a tempestade cai o
nosso “ego” sempre preocupado com a própria imagem e vem à tona a abençoada
pertença comum que não podemos ignorar: a pertença como irmãos e desfaz-se a
ilusão de que iríamos continuar saudáveis num mundo doente. E o Papa ora em
autocrítica e enálage de pessoa:
“Na
nossa avidez de lucro, deixamo-nos absorver pelas coisas e transtornar pela
pressa. Não nos detivemos perante os teus apelos, não despertamos face a
guerras e injustiças planetárias, não ouvimos o grito dos pobres e do nosso
planeta gravemente enfermo. Avançamos, destemidos, pensando que continuaríamos
sempre saudáveis num mundo doente. Agora, sentindo-nos em mar agitado,
imploramos-Te: ‘Acorda, Senhor!’.”.
Tendo em
conta que o Senhor nos dirige um insistente apelo à fé e nos chama a viver este
tempo de provação como um tempo de decisão, o Santo Padre adverte para o tempo
de escolher entre o que conta e o que passa, de separar o que é necessário do
que não o é, “o tempo de reajustar a rota da vida rumo ao Senhor e aos outros”.
E Francisco
citou o exemplo de tantas pessoas que doaram a sua vida e estão a escrever hoje
os momentos decisivos da nossa história. Não são pessoas famosas, mas são
“médicos, enfermeiros, funcionários de supermercados, pessoal da limpeza,
transportadores, forças policiais, voluntários, sacerdotes, religiosas e muitos
– mas muitos – outros que compreenderam que ninguém se salva sozinho”.
“É diante do
sofrimento que se mede o verdadeiro desenvolvimento dos nossos povos”, afirmou
o Papa, que recordou que a oração e o serviço silencioso são as nossas “armas
vencedoras”.
A tempestade
mostra que não somos autossuficientes, que sozinhos nos afundamos. Por isso,
devemos convidar Jesus a embarcar em nossas vidas, pois, com Ele a bordo, não
naufragamos, porque esta é a força de Deus: transformar em bem tudo o que nos
acontece, inclusive as coisas negativas. Com Deus, a vida jamais morre.
No meio da
tempestade, o Senhor interpela-nos e pede que nos despertemos. “Temos uma
âncora: na sua cruz fomos salvos. Temos um leme: na sua cruz, fomos resgatados.
Temos uma esperança: na sua cruz, fomos curados e abraçados, para que nada nem
ninguém nos separe do seu amor redentor.” Abraçar a sua cruz, explanou o Papa,
significa encontrar a coragem de abraçar todas as contrariedades desta hora em
que sofremos, abandonando por um momento a nossa ânsia de omnipotência e posse,
para dar espaço à criatividade que só o Espírito é capaz de suscitar. Abraçar o
Senhor, para abraçar a esperança – eis a força da fé, que liberta do medo.
E Francisco
concluiu:
“Deste lugar que atesta a fé rochosa de Pedro, gostaria nesta tarde de
confiar todos ao Senhor, pela intercessão de Nossa Senhora, saúde do seu povo,
estrela do mar em tempestade. Desta colunata que abraça Roma e o mundo, desça
sobre vós, como um abraço consolador, a bênção de Deus. Senhor, não nos deixes
à mercê da tempestade.”.
***
Não vem
a despropósito nesta circunstância e para lá da sua ultrapassagem, continuar a
ler, escutar e meditar esta passagem do Evangelho de Marcos, contemplar o rosto
materno de Maria, ajoelhar aos pés do Crucificado, adorar Jesus Hóstia para ver
nos doentes e outros sofredores as suas chagas e implorar a bênção para nós e
para todos os que partilham a vida com os mais angustiados clamores e as
maiores esperanças e as mais faustosas alegrias.
Seja a cruz
polivalente Cristo a âncora em que nos apoiamos, o leme que nos dirige, a
esperança que nos conforta, o abraço que nos recria e acalenta, a catapulta que
nos atira para o mundo do testemunho e da ação/atividade.
2020.03.28 –
Louro de Carvalho
Sem comentários:
Enviar um comentário