domingo, 29 de março de 2020

Abraçar o Senhor para abraçar a esperança


Foi, no momento extraordinário de oração do passado dia 27 de março, pelas 18 horas de Roma, a mensagem nevrálgica do Papa aos fiéis de todo o mundo que, neste momento, se encontram a braços com a tempestade causada pela pandemia do novo coronavírus.
A partir do átrio da Basílica de São Pedro e diante daquela Praça completamente vazia, mas em sintonia com milhões de pessoas que se uniram ao Santo Padre, através dos poderosos meios de comunicação, para invocarem o Senhor neste momento de extrema necessidade da humanidade, desenrolou-se um ritual, simples, mas repleto de significado humana e espiritual, inundando de graças a todos aqueles que tiveram a oportunidade de participar virtualmente.
Eram cinco os elementos que suscitavam a atenção de quem teve a oportunidade de contemplar aquele átrio da basílica petrina: a sede donde um Papa verdadeiramente compungido estava a presidir; a estante/ambão donde foi proclamada a perícopa do Evangelho de Marcos que narra o episódio da tempestade acalmada por Jesus (Mc 4,35-41) e que o Pontífice comentou na homilia dele fazendo extrair várias lições de vida; o Crucifixo da Igreja de São Marcelo, que foi levado em procissão pelo povo durante uma peste que atingiu a cidade de Roma no século XVI e aos pés do qual Francisco, depois das orantes palavras de confiança que dirigiu aos crentes, pediu perdão, implorou o divino auxílio e lançou o afetuoso ósculo de fé, esperança e caridade; o ícone de Nossa Senhora, “Salus Populi Romani”, de que a tradição refere ter sido pintado por São Lucas nas tábuas de uma mesa feita pelo próprio Jesus Cristo quando jovem; e, no centro de tudo, o Santíssimo Sacramento alçado pelo Sumo Pontífice para abençoar a todos os homens e mulheres de boa vontade, unidos ou não a ele, naquele momento – Bênção Urbi et Orbi (à cidade e Roma e ao mundo), a que se associou a concessão da Indulgência Plenária.
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Na sua homilia, em que alternam a exortação aos crentes e a oração ao Senhor, o Papa Francisco afirmou que é “diante do sofrimento que se mede o verdadeiro desenvolvimento dos povos” e apontou a ilusão de se pensar “que continuaríamos sempre saudáveis num mundo doente”.
A meditação homilética papal começa por glosar o entardecer e, depois, desenvolve-se anaforicamente em torno da interpelação: “Porque sois tão medrosos? Ainda não tendes fé?”.
Os discípulos já tinham alguma fé, pois até invocam o Senhor, mas não era uma fé inabalável, confiante, comprometida, uma fé de arriscar tudo por tudo.
Assim, considerando que, há várias semanas que parece a tarde ter caído e ter coberto de trevas densas, de indizível e ensurdecedor silêncio e “de um vazio desolador”, sente que nos vemos existencialmente “amedrontados e perdidos”. E observou que esta situação nos fez entender que estamos todos no mesmo barco e que somos “chamados a remar juntos”, carecidos de mútuo encorajamento. Depois, temos de saber que, neste mesmo barco, está Jesus agora connosco tal como estava com os discípulos daquele tempo. Mas Jesus, no meio da tempestade, dorme. E Francisco anotou que este é o único relato do Evangelho em que se nos diz que Jesus dorme.
Ao ser despertado pelos discípulos em pânico, confronta-os como o medo e a falta de fé deles.
A tempestade, agora como naquele tempo, desmascara a nossa vulnerabilidade e deixa a nu as autossuficientes, falsas e supérfluas seguranças com que gizamos os nossos programas, projetos, hábitos e prioridades. Mostra como deixamos adormecido e abandonado o que nutre, sustenta e fortalece a nossa vida e a nossa comunidade. Com a tempestade cai o nosso “ego” sempre preocupado com a própria imagem e vem à tona a abençoada pertença comum que não podemos ignorar: a pertença como irmãos e desfaz-se a ilusão de que iríamos continuar saudáveis num mundo doente. E o Papa ora em autocrítica e enálage de pessoa:
 Na nossa avidez de lucro, deixamo-nos absorver pelas coisas e transtornar pela pressa. Não nos detivemos perante os teus apelos, não despertamos face a guerras e injustiças planetárias, não ouvimos o grito dos pobres e do nosso planeta gravemente enfermo. Avançamos, destemidos, pensando que continuaríamos sempre saudáveis num mundo doente. Agora, sentindo-nos em mar agitado, imploramos-Te: ‘Acorda, Senhor!’.”.
Tendo em conta que o Senhor nos dirige um insistente apelo à fé e nos chama a viver este tempo de provação como um tempo de decisão, o Santo Padre adverte para o tempo de escolher entre o que conta e o que passa, de separar o que é necessário do que não o é, “o tempo de reajustar a rota da vida rumo ao Senhor e aos outros”.  
E Francisco citou o exemplo de tantas pessoas que doaram a sua vida e estão a escrever hoje os momentos decisivos da nossa história. Não são pessoas famosas, mas são “médicos, enfermeiros, funcionários de supermercados, pessoal da limpeza, transportadores, forças policiais, voluntários, sacerdotes, religiosas e muitos – mas muitos – outros que compreenderam que ninguém se salva sozinho”.
“É diante do sofrimento que se mede o verdadeiro desenvolvimento dos nossos povos”, afirmou o Papa, que recordou que a oração e o serviço silencioso são as nossas “armas vencedoras”.
A tempestade mostra que não somos autossuficientes, que sozinhos nos afundamos. Por isso, devemos convidar Jesus a embarcar em nossas vidas, pois, com Ele a bordo, não naufragamos, porque esta é a força de Deus: transformar em bem tudo o que nos acontece, inclusive as coisas negativas. Com Deus, a vida jamais morre.
No meio da tempestade, o Senhor interpela-nos e pede que nos despertemos. “Temos uma âncora: na sua cruz fomos salvos. Temos um leme: na sua cruz, fomos resgatados. Temos uma esperança: na sua cruz, fomos curados e abraçados, para que nada nem ninguém nos separe do seu amor redentor.” Abraçar a sua cruz, explanou o Papa, significa encontrar a coragem de abraçar todas as contrariedades desta hora em que sofremos, abandonando por um momento a nossa ânsia de omnipotência e posse, para dar espaço à criatividade que só o Espírito é capaz de suscitar. Abraçar o Senhor, para abraçar a esperança – eis a força da fé, que liberta do medo.
E Francisco concluiu:
Deste lugar que atesta a fé rochosa de Pedro, gostaria nesta tarde de confiar todos ao Senhor, pela intercessão de Nossa Senhora, saúde do seu povo, estrela do mar em tempestade. Desta colunata que abraça Roma e o mundo, desça sobre vós, como um abraço consolador, a bênção de Deus. Senhor, não nos deixes à mercê da tempestade.”.
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Não vem a despropósito nesta circunstância e para lá da sua ultrapassagem, continuar a ler, escutar e meditar esta passagem do Evangelho de Marcos, contemplar o rosto materno de Maria, ajoelhar aos pés do Crucificado, adorar Jesus Hóstia para ver nos doentes e outros sofredores as suas chagas e implorar a bênção para nós e para todos os que partilham a vida com os mais angustiados clamores e as maiores esperanças e as mais faustosas alegrias.
Seja a cruz polivalente Cristo a âncora em que nos apoiamos, o leme que nos dirige, a esperança que nos conforta, o abraço que nos recria e acalenta, a catapulta que nos atira para o mundo do testemunho e da ação/atividade.
2020.03.28 – Louro de Carvalho

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