domingo, 1 de março de 2020

Laboratório de Fonética Experimental da UC e mais invenções de Lacerda


Montado, na década de 1930 (melhor, em 1936), por Armando de Lacerda, que criou instrumentos de referência, funcionou o Laboratório de Fonética Experimental no Piso 2 da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra (UC), que era uma referência mundial, atraindo a um país tradicionalmente periférico investigadores e académicos de vários pontos do globo – nomeadamente de Harvard, Cambridge ou Bona – para estudo científico da fala humana.
Mais tarde, entrou numa trajetória de declínio até ser desmantelado nos anos 1970 e ter caído no esquecimento. Entretanto, Quintino Lopes, investigador do Instituto de História Contemporânea da Universidade Nova de Lisboa e da Universidade de Évora, encontrou o trabalho de Armando de Lacerda durante a tese de doutoramento que defendeu em 2017. A investigação debruçou-se sobre papel da Junta de Educação Nacional (JEN), criada em 1929 e que procurou “europeizar a ciência e pedagogia em Portugal” nos primeiros anos da ditadura. E percebeu que, “entre os vários laboratórios e cientistas de projeção internacional, tínhamos um que se destacava dos outros todos”, com a “particularidade de atrair investigadores do estrangeiro para Portugal”.
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O percurso académico de Armando de Lacerda (natural do Porto onde nasceu em 1902) começou na Universidade do Porto, com a licenciatura em filologia germânica concluída a 29 de Julho de 1930, com a classificação final de 17 valores. Daí partiu para Hamburgo para se especializar em fonética experimental, com o apoio da JEN, passando em 1931 para Bona. Ali, não satisfeito com os métodos seguidos, desenvolveu os primeiros instrumentos, como o policromógrafo de Lacerda ou labiógrafo inscritor oral (para suprir as deficiências do método quimográfico então em voga), que utilizava um novo método científico de registo sonoro para análise dos sons da linguagem. Este instrumento em metal, de que o Museu da Ciência da UC guarda um exemplar, foi apresentado no I Congresso Internacional de Ciências Fonéticas, em Amesterdão, em 1932, e para o fabricar, Lacerda contou com o apoio extraordinário de 11 mil escudos da JEN. E foi com o apoio da JEN que montou em Coimbra o Laboratório de Fonética Experimental da UC.
Logo em 1939, Francis Millet Rogers, que lecionava na Universidade de Harvard, veio passar uma temporada a Coimbra para aprender a trabalhar com o académico. Com a construção das novas instalações da Faculdade de Letras, em 1951, o laboratório passou a ocupar uma ala do edifício, no Piso 2, a qual, segundo Quintino Lopes, parece ter sido construída de raiz para acomodar o laboratório, pois o conjunto é constituído por uma sequência de salas, com corredor e um letreiro com indicação do laboratório, hoje espaços bibliotecários.
Diz Quintino Lopes que, entre outros aspetos, o académico estudava a contiguidade dos sons, ou seja, a forma como “o som que estamos a dizer está já a preparar o próximo, e que esse está a influenciar o que acabámos de dizer”. Assim, no âmbito do seu trabalho, Lacerda captou sons de falares regionais e de leituras de textos, tendo sido muitas enviadas para outras universidades, mas estando algumas no acervo do Museu da Ciência, não musealizadas. Sendo um cientista meticuloso, registava tudo ao pormenor: fotografava os entrevistados e documentava os seus dados, informação que ainda pode ser encontrada na Biblioteca da Faculdade de Letras da UC. Em vários arquivos, é possível observar a correspondência com alguns dos maiores especialistas mundiais da fonética, da Alemanha nazi à Hungria comunista.
Armando Lacerda passou pelas universidades norte-americanas de Maddison-Wisconsin, pelo Queens College, em Nova Iorque, e orientou a criação dos primeiros laboratórios de fonética experimental da Baía e do Rio de Janeiro, na década de 1950. Apesar desse périplo, Coimbra continuou a ser “o epicentro da sua ação científica”, como refere Quintino Lopes.
Os métodos de investigação que Armando Lacerda desenvolveu no campo da fonética, com o respaldo da JEN, permitiram atrair numerosos investigadores estrangeiros. Porém, à medida que o apoio decrescia, o laboratório começava a definhar. E isso começou a acontecer a partir de 1961, devendo o principal fator da falta de financiamento ser a guerra colonial, que arrastada até ao estertor do regime, absorveu uma significativa fatia do Orçamento do Estado, o que impedia a sua aplicação noutras áreas. E, com o falecimento de Armando de Lacerda a 30 de agosto de 1984, com 82 anos, 12 anos depois da jubilação como diretor do Laboratório de Fonética Experimental da UC (1972), o laboratório foi perdendo espaço na Faculdade de Letras, sendo diminuído o número de salas e alguns dos instrumentos foram transferidos para o Laboratório de Fonética e Fonologia da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.
Segundo o site da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, em 1931, Armando Lacerda prosseguiu a investigação no Instituto de Fonética da Universidade de Bona, sob orientação do Dr. Paul Meuzerath, concebendo, nos anos seguintes, uma série de aparelhos científicos para o estudo da Fonética: o eletrocromógrafo, o tonómetro multiplicador, tradutor de figurações tonais em configurações luminosas, e o tonómetro – invenções que, segundo Paulo Lacerda, estiveram na origem de mecanismos como as impressoras de jato de tinta. Durante esta missão de estudo criou ainda um novo método fonético – a cromografia –, método de registo sonoro para análise dos sons da linguagem, que lhe valeu o convite para reger um curso universitário dedicado ao tema naquela Universidade. Pelo reconhecimento da sua atividade científica foi igualmente convidado para conferências internacionais sobre Fonética, como o Congresso Internacional de Ciências Fonéticas, em Amesterdão, onde apresentou um novo aparelho: o policromógrafo. E, já distinguido como o percursor da Fonética Experimental em Portugal, regressou ao país em 1935, contando com o apoio do Instituto para a Alta Cultura para a instalação do primeiro Laboratório de Fonética Experimental na Faculdade de Letras de Coimbra, tendo assumido a sua direção e trabalhado na especialização de fonetistas nacionais e internacionais segundo os seus métodos de investigação. Em 1938, apresentou nova comunicação no Congresso Internacional de Fonologia de Ghent e, entre 1950 e 1951, realizou uma missão de estudo na Universidade de Wisconsin para o estudo da Espectografia, com o Dr. M. Joos. Fundador da “Revista do Laboratório de Fonética Experimental” da Universidade de Coimbra (1952), Lacerda recebeu convites para lecionar cursos em universidades estrangeiras, orientando a criação dos primeiros laboratórios de Fonética Experimental na Baía (1956) e no Rio de Janeiro (1957) e regressando à Universidade de Wisconsin como professor convidado.
O apagamento do cientista ambicioso, rigoroso e lesto, que, no dizer da esposa, escrevia à velocidade do pensamento e que, sabendo crescer, graças à sua independência política, durante o Estado Novo – o que pagou com o apagamento no período democrático – está a ser ultrapassado pela intrepidez do historiador de ciência Quintino Lopes e pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto, que levou a cabo, a 21 de fevereiro, as jornadas “Armando de Lacerda e a Fonética Experimental em Portugal: centralidade científica na periferia”.
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Os poucos grandes cientistas portugueses não merecem ficar no olvido, mas assomar à pantalha.
2020.03.01 – Louro de Carvalho

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