Montado, na
década de 1930 (melhor, em 1936), por
Armando de Lacerda, que criou instrumentos de referência, funcionou o
Laboratório de Fonética Experimental no Piso 2 da Faculdade de Letras da
Universidade de Coimbra (UC), que era
uma referência mundial, atraindo a um país tradicionalmente periférico investigadores
e académicos de vários pontos do globo – nomeadamente de Harvard, Cambridge ou
Bona – para estudo científico da fala humana.
Mais tarde,
entrou numa trajetória de declínio até ser desmantelado nos anos 1970 e ter
caído no esquecimento. Entretanto, Quintino Lopes, investigador do Instituto de
História Contemporânea da Universidade Nova de Lisboa e da Universidade de
Évora, encontrou o trabalho de Armando de Lacerda durante a tese de
doutoramento que defendeu em 2017. A investigação debruçou-se sobre papel da
Junta de Educação Nacional (JEN), criada em
1929 e que procurou “europeizar a ciência e pedagogia em Portugal” nos
primeiros anos da ditadura. E percebeu que, “entre os vários laboratórios e
cientistas de projeção internacional, tínhamos um que se destacava dos outros
todos”, com a “particularidade de atrair investigadores do estrangeiro para
Portugal”.
***
O percurso
académico de Armando de Lacerda (natural do Porto onde nasceu em 1902) começou na Universidade do Porto, com a licenciatura
em filologia germânica concluída a 29 de Julho de 1930, com a classificação
final de 17 valores. Daí partiu para Hamburgo para se especializar em fonética
experimental, com o apoio da JEN, passando em 1931 para Bona. Ali, não
satisfeito com os métodos seguidos, desenvolveu os primeiros instrumentos, como
o policromógrafo de Lacerda ou labiógrafo inscritor oral (para suprir
as deficiências do método quimográfico então em voga), que utilizava um novo método científico de registo
sonoro para análise dos sons da linguagem. Este instrumento em metal, de que o
Museu da Ciência da UC guarda um exemplar, foi apresentado no I Congresso Internacional de Ciências
Fonéticas, em Amesterdão, em 1932, e para o fabricar, Lacerda contou com o
apoio extraordinário de 11 mil escudos da JEN. E foi com o apoio da JEN que
montou em Coimbra o Laboratório de Fonética Experimental da UC.
Logo em
1939, Francis Millet Rogers, que lecionava na Universidade de Harvard, veio
passar uma temporada a Coimbra para aprender a trabalhar com o académico. Com a
construção das novas instalações da Faculdade de Letras, em 1951, o laboratório
passou a ocupar uma ala do edifício, no Piso 2, a qual, segundo Quintino Lopes,
parece ter sido construída de raiz para acomodar o laboratório, pois o conjunto
é constituído por uma sequência de salas, com corredor e um letreiro com
indicação do laboratório, hoje espaços bibliotecários.
Diz Quintino
Lopes que, entre outros aspetos, o académico estudava a contiguidade dos sons,
ou seja, a forma como “o som que estamos a dizer está já a preparar o próximo,
e que esse está a influenciar o que acabámos de dizer”. Assim, no âmbito do seu
trabalho, Lacerda captou sons de falares regionais e de leituras de textos,
tendo sido muitas enviadas para outras universidades, mas estando algumas no
acervo do Museu da Ciência, não musealizadas. Sendo um cientista meticuloso, registava
tudo ao pormenor: fotografava os entrevistados e documentava os seus dados,
informação que ainda pode ser encontrada na Biblioteca da Faculdade de Letras
da UC. Em vários arquivos, é possível observar a correspondência com alguns dos
maiores especialistas mundiais da fonética, da Alemanha nazi à Hungria
comunista.
Armando
Lacerda passou pelas universidades norte-americanas de Maddison-Wisconsin, pelo
Queens College, em Nova Iorque, e orientou a criação dos primeiros laboratórios
de fonética experimental da Baía e do Rio de Janeiro, na década de 1950. Apesar
desse périplo, Coimbra continuou a ser “o epicentro da sua ação científica”,
como refere Quintino Lopes.
Os métodos
de investigação que Armando Lacerda desenvolveu no campo da fonética, com o
respaldo da JEN, permitiram atrair numerosos investigadores estrangeiros. Porém,
à medida que o apoio decrescia, o laboratório começava a definhar. E isso
começou a acontecer a partir de 1961, devendo o principal fator da falta de
financiamento ser a guerra colonial, que arrastada até ao estertor do regime,
absorveu uma significativa fatia do Orçamento do Estado, o que impedia a sua
aplicação noutras áreas. E, com o falecimento de Armando de Lacerda a 30 de
agosto de 1984, com 82 anos, 12 anos depois da jubilação como diretor do
Laboratório de Fonética Experimental da UC (1972), o laboratório foi perdendo espaço na Faculdade de Letras, sendo diminuído
o número de salas e alguns dos instrumentos foram transferidos para o
Laboratório de Fonética e Fonologia da Faculdade de Letras da Universidade de
Lisboa.
Segundo o site da Faculdade de Letras da
Universidade do Porto, em 1931, Armando Lacerda prosseguiu a investigação no
Instituto de Fonética da Universidade de Bona, sob orientação do Dr. Paul
Meuzerath, concebendo, nos anos seguintes, uma série de aparelhos científicos
para o estudo da Fonética: o eletrocromógrafo, o tonómetro multiplicador,
tradutor de figurações tonais em configurações luminosas, e o tonómetro – invenções que, segundo Paulo
Lacerda, estiveram na origem de mecanismos como as impressoras de jato de tinta. Durante esta missão de estudo criou ainda um novo
método fonético – a cromografia –, método de registo sonoro para análise dos
sons da linguagem, que lhe valeu o convite para reger um curso universitário
dedicado ao tema naquela Universidade. Pelo reconhecimento da sua atividade
científica foi igualmente convidado para conferências internacionais sobre
Fonética, como o Congresso Internacional
de Ciências Fonéticas, em Amesterdão, onde apresentou um novo aparelho: o
policromógrafo. E, já distinguido como o percursor da Fonética
Experimental em Portugal, regressou ao país em 1935, contando com o apoio do
Instituto para a Alta Cultura para a instalação do primeiro Laboratório de
Fonética Experimental na Faculdade de Letras de Coimbra, tendo assumido a sua
direção e trabalhado na especialização de fonetistas nacionais e internacionais
segundo os seus métodos de investigação. Em 1938, apresentou nova comunicação
no Congresso Internacional de Fonologia
de Ghent e, entre 1950 e 1951, realizou uma missão de estudo na
Universidade de Wisconsin para o estudo da Espectografia, com o Dr. M. Joos.
Fundador da “Revista do Laboratório de Fonética Experimental” da
Universidade de Coimbra (1952), Lacerda
recebeu convites para lecionar cursos em universidades estrangeiras, orientando
a criação dos primeiros laboratórios de Fonética Experimental na Baía (1956) e no Rio de Janeiro (1957) e regressando à Universidade de Wisconsin como professor convidado.
O apagamento
do cientista ambicioso,
rigoroso e lesto, que, no dizer da esposa, escrevia à velocidade do pensamento
e que, sabendo crescer, graças à sua independência política, durante o Estado
Novo – o que pagou com o apagamento no período democrático – está a ser
ultrapassado pela intrepidez do historiador de ciência Quintino Lopes e pela
Faculdade de Letras da Universidade do Porto, que levou a cabo, a 21 de
fevereiro, as jornadas “Armando de Lacerda e a Fonética Experimental em Portugal: centralidade
científica na periferia”.
***
Os poucos grandes cientistas portugueses não merecem
ficar no olvido, mas assomar à pantalha.
2020.03.01 – Louro de Carvalho
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