terça-feira, 17 de março de 2020

Importa que se diga a verdade (e só) no momento que o país atravessa


O surto do Covid-19 está a dar para tudo. Oscila-se entre a verdade e o boato, a simples opinião e a formulação científica, o cientificamente comprovado e o não sustentado cientificamente, uma certa inação e alarmismo. E nisso alinham políticos, médicos e blogueiros.

Neste contexto, o mais seguro é seguir as recomendações da Direção-Geral da Saúde, que basicamente consistem na autoproteção, nos cuidados higiénicos pessoais e na não exposição a contactos sociais. Face aos sintomas, que muitas vezes são semelhantes aos das patologias gripal ou constipal, contactar o SNS 24 e/ou fazer a medicação à base de paracetamol. Em caso certo de contacto com pessoa infetada, solicitar o teste e fazer a quarentena: e obviamente, em casos graves, recorrer aos serviços hospitalares, de preferência após intervenção da Saúde 24 e/ou do INEM. Mas é preciso dizer que a maior parte dos casos apresenta sintomas ligeiros.
A este respeito, o JN de 16 de março dedicou uma página às afirmações não verdadeiras que as redes sociais disseminaram, muitas delas apoiadas em pareceres pseudocientíficos.
Por seu turno, o Governo decretou medidas excecionais de apoio a trabalhadores e empresas e, não resistindo à pressão, um pouco à revelia do Conselho Nacional de Saúde Pública, decretou o encerramento dos estabelecimentos de educação e ensino públicos e privados, suspendendo o ensino presencial e prometendo a avaliação da situação a 9 de abril em relação ao 3.º período. E a recomendação é que as pessoas fiquem em casa. A própria Conferência Episcopal suspendeu todos os atos de culto coletivo, encerrando-se templos e santuários, bem como as catequeses e outras atividades formativas e culturais religiosas. Não obstante, a princípio, as pessoas saíram das escolas e foram para as praias e centros comerciais, o que julgo uma irresponsável afronta às autoridades nacionais deslocando o foco de infeção da escola para outros locais.
É registar a solícita criatividade dum padre italiano, que, não podendo os cristãos ir ao templo participar na Missa, colocou o Santíssimo Sacramento na custódia e, acompanhado do diácono com umbela, veio pelas ruas abençoar as pessoas que, das janelas, dos automóveis ou apeadas, reverenciavam Cristo. E a do reitor dum santuário português sobranceiro à sua cidade, que veio abençoar a mesma cidade com o Santíssimo Sacramento desde o cimo do respetivo escadório.    
Teve de vir a crise do Covid-19 para se reconhecer a vantagem e até a necessidade e a obrigação do teletrabalho, bem como da retoma do ensino à distância, embora em moldes novos.
Neste último caso, é de notar que, se as instituições de ensino superior encerraram, nem por isso o ensino colapsou. De facto, a plataforma Colibri, disponibilizada pela Unidade de Computação Científica Nacional da FCT-FCCN (Fundação para a Ciência e a Tecnologia) para ensino à distância no superior, registou 63 mil participantes em cerca de 2.700 aulas ou reuniões (2.441.387 minutos) no primeiro dia de suspensão de aulas presenciais devido à epidemia. E, no sentido de continuar a apoiar a comunidade académica e científica na adoção de ambientes de trabalho colaborativo e garantir a manutenção da atividade letiva e da investigação, bem como promover o teletrabalho neste momento excecional, a FCT-FCCN tem vindo a reforçar a capacidade das plataformas em ambiente colaborativo, tendo desde já duplicado o número de processadores, memória, disco e máquinas virtuais de ‘transcoding’ do Colibri.
Por seu turno, a Direcção-Geral de Educação criou um site para disponibilizar aos professores do ensino não superior orientações, metodologias e conteúdos para ensino à distância; e a escola virtual da Porto Editora aumentou em grande o número de inscrições para o mesmo efeito. Por outro lado, o Júri Nacional de Exames prorrogou o prazo até 3 de abril para os estudantes se inscreverem em exames e provas finais, podendo fazê-lo a partir de casa.
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Merecem, neste contexto, atenção duas ideias que se divulgaram. Uma tem a ver com o não aconselhamento do contacto das crianças com avós e doentes crónicos, que se aplaude, não porque estes sejam em si um perigo de contágio para as crianças, mas pelo que estas representam de ocasião de contágio para estes adultos, pois as crianças são muito resistentes, mas muito contagiantes. Não há menosprezo aqui pelo papel importante dos avós. A outra tem a ver com a eventual falta de meios hospitalares para doentes graves. Diz-se que em Itália, perante a falta de ventiladores e grande afluxo de doentes, recusavam no hospital a máquina a doentes com idade superior a 50 anos. Isto não pode acontecer. Ao invés, Portugal solicita a cooperação de privados em pessoal e equipamentos e o Governo coloca a sério a hipótese da requisição civil, se for necessário. E a propósito, apraz-me mencionar a nota da Comissão Nacional Justiça e Paz, organismo laical da Igreja Católica, em que se apela à construção duma cultura solidária como resposta à pandemia do Covid-19, que proteja em particular os mais frágeis:  
Há que dar todo o apoio aos grupos mais vulneráveis, como os idosos, evitando de todos os modos que eles tenham de se expor a riscos (fazendo compras por eles, por exemplo). Que um dos efeitos desta pandemia seja o reforço da consciência coletiva de que somos todos diferentes, que muitos são mais pobres e necessitados do amor do próximo, ou seja, carentes de cada um de nós”.   
A nota que tem como título “Uma pandemia, um desafio à solidariedade”, adverte:
Impõe-se, por isso, superar uma mentalidade individualista. Não há que pensar apenas nos perigos que corro, que serão maiores ou menores, mas nos riscos que correm outros, as pessoas mais vulneráveis. Não há que pensar tanto na contaminação de que eu possa ser vítima, mas na contaminação que eu, sem o saber, possa provocar noutros.”.
É de justiça relevar juntas de freguesia, outras instituições e até grupos informais que se encarregam das compras para quem necessariamente tem de ficar em casa, como há dioceses, autarquias e outras instituições que dispõem de condigno alojamento para médicos e demais profissionais de saúde – ao invés da onda açambarcadora em supermercados e farmácias, bem como da exploração de alguns laboratórios em relação ao custo dos testes, para já não falar da insólita autoquarentena do Presidente da República na sua casa de Cascais.
Também a Cruz Vermelha disponibilizou ao SNS o hospital e encetou a formação do pessoal. Foi pena não ter o Governo aceite a colaboração das farmácias no despiste o Covid-19.
Obviamente que não está tudo bem feito. Apesar das ditas 30 medidas decretadas pelo Governo, é de reconhecer que, por exemplo, o controlo (que não encerramento puro e simples) de fronteiras peca por tardio, tal como o despiste junto das pessoas que regressaram de zonas de risco estrangeiras. Em termos globais, o Governo reagiu à crise, sendo deficiente a prevenção. Pergunto-me é se outro governo não faria semelhante ou faria melhor que a China, vindo Vargas Losa a afirmar que o surto teria sido diferente se a China fosse uma democracia, como me interrogo de a declaração do estado de emergência em todo o território se justifica ou se resolve o problema.
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Enfim, é bom que se informe a população, mas sem carregar as cores que induzam o pânico.
O medo não é bom conselheiro, mas o homem contemporâneo tem medo. A este respeito, é de reler o n.º 15 da Encíclica Redemptor hominis, de 4 de março de 1979, de São João Paulo II, que explica “De que é que o homem contemporâneo tem medo” e que se condensa no seguinte:
O homem de hoje parece estar ameaçado pelo que produz; ou seja, pelo resultado do trabalho das suas mãos, inteligência e tendências da vontade. Os frutos desta multiforme atividade do homem, muito rápida e de muitas vezes imprevisível, passam a ser, não tanto objeto de alienação, no sentido de serem tirados a quem os produz, como, ao menos parcialmente e num círculo consequente e indireto dos seus efeitos, se voltam contra o próprio homem, passando, de facto, a ser dirigidos ou a poder ser dirigidos contra o homem. E nisto assim parece consistir o capítulo principal do drama da existência humana contemporânea na sua ampla e universal dimensão. O homem cada vez mais vive com medo. Teme que os seus produtos (naturalmente não todos e não na maior parte, mas alguns e precisamente os que encerram uma especial porção da sua genialidade e da sua iniciativa) se voltem radicalmente contra si mesmo; teme que possam tornar-se instrumentos duma inimaginável autodestruição face à qual os cataclismos e catástrofes da história conhecidos parecem ficar a perder de vista. Devemos, pois, interrogar-nos por que razão tal poder, dado desde o princípio ao homem e mediante o qual ele devia dominar a terra, se volta contra ele, provocando compreensível estado de inquietude, de consciente ou inconsciente medo e de ameaça que de muitos modos se comunica a toda a família humana contemporânea e se manifesta sob vários aspetos.
Este estado de ameaça contra o homem tem várias direções e graus de intensidade. Estamos cada vez mais cônscios do facto de a exploração do planeta exigir um planeamento racional e honesto. Tal exploração para fins industriais e militares, o desenvolvimento da técnica não controlado nem enquadrado num plano humanístico e com perspetivas universais acarretam muitas vezes a ameaça para o ambiente natural do homem, alienam-no nas suas relações com a natureza e apartam-no dela. E o homem parece não dar-se conta de outros significados do seu ambiente natural, para lá dos que apenas servem para os fins de uso ou consumo imediatos, quando, ao invés, era vontade do Criador que o homem comunicasse com a natureza como senhor e guarda inteligente e nobre, e não como um desfrutador e destrutor sem respeito algum.
O progresso técnico e o desenvolvimento da civilizacional exigem um proporcional desenvolvimento da vida moral e da ética. Mas este último parece ficar sempre atrasado. Por isso, o progresso, tão maravilhoso, em que é difícil não vislumbrar os autênticos sinais da grandeza do homem, os quais, em seus germes criativos, já nos são revelados no relato da criação do Livro do Génesis, este progresso gera multíplices inquietações. A primeira atinge a questão essencial e fundamental: Este progresso, de que é autor e fautor o homem, torna de facto a vida humana sobre a terra, em todos os seus aspetos, mais humana e mais digna do homem? Não há dúvida de que, em vários aspetos, a torna de facto tal. Mas resta saber se o homem, enquanto homem, no contexto deste progresso, se torna melhor, mais amadurecido espiritualmente, mais consciente da dignidade da sua humanidade, mais responsável, mais aberto aos outros, em particular aos mais necessitados e mais fracos, e mais disponível para proporcionar e prestar ajuda a todos.
Esta questão é típica dos cristãos, pois Cristo os sensibilizou assim quanto ao problema do homem. Mas ela põe-se todos os homens, especialmente aos que integram os ambientes sociais que se dedicam ao desenvolvimento e ao progresso. Ao observar estes processos e tomando parte neles, não podemos deixar que se apodere de nós a euforia ou um unilateral entusiasmo pelas nossas conquistas, mas devemos, com absoluta lealdade, objetividade e sentido de responsabilidade moral, interrogar-nos pelo que se refere à situação do homem, hoje e no futuro: Todas as conquistas alcançadas até agora, bem como as que estão projetadas pela técnica para o futuro, estão de acordo com o progresso moral e espiritual do homem? E o homem, enquanto homem, desenvolve-se e progride, ou regride e degrada-se na sua humanidade? Prevalece nos homens, no mundo do homem – que é em si mesmo um mundo de bem e de mal moral – o bem ou o mal? Crescem nos homens, entre os homens, o amor social, o respeito pelos direitos de outrem – de todos e de cada um dos homens, de cada nação, de cada povo – ou crescem os egoísmos de vário alcance, os nacionalismos exagerados em vez do autêntico amor da pátria e a tendência para dominar os outros, além dos próprios e legítimos direitos e méritos, e a tendência para desfrutar de todo o progresso material e técnico-produtivo exclusivamente para o fim de predominar sobre os outros, ou em favor dalgum imperialismo? – interrogações que a Igreja faz a si mesma, porque as fazem a si próprios os biliões de pessoas que vivem no mundo e andam em todas as bocas e publicações, não contendo só afirmações e certezas, mas também perguntas e angustiosas inquietudes, que correspondem à natureza dialética fundamental da solicitude do homem pelo homem, pela sua própria humanidade e pelo futuro dos homens sobre a face da terra, e que entram no âmbito da missão da mesma Igreja e da solicitude de Cristo.
Enfim, é esta Quaresma dos cristãos a que, no recolhimento, tiveram de aderir outros. Que sirva de rampa de reflexão e incentivo à solidariedade e à consciência da nossa insuficiência!
2020.03.17 – Louro de Carvalho


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