O surto do Covid-19 está a dar para tudo. Oscila-se
entre a verdade e o boato, a simples opinião e a formulação científica, o
cientificamente comprovado e o não sustentado cientificamente, uma certa inação
e alarmismo. E nisso alinham políticos, médicos e blogueiros.
Neste contexto, o mais seguro é seguir as recomendações
da Direção-Geral da Saúde, que basicamente consistem na autoproteção, nos cuidados
higiénicos pessoais e na não exposição a contactos sociais. Face aos sintomas,
que muitas vezes são semelhantes aos das patologias gripal ou constipal, contactar
o SNS 24 e/ou fazer a medicação à base de paracetamol. Em caso certo de
contacto com pessoa infetada, solicitar o teste e fazer a quarentena: e obviamente,
em casos graves, recorrer aos serviços hospitalares, de preferência após intervenção
da Saúde 24 e/ou do INEM. Mas é preciso dizer que a maior parte dos casos apresenta
sintomas ligeiros.
A este respeito, o JN de 16 de março dedicou
uma página às afirmações não verdadeiras que as redes sociais disseminaram,
muitas delas apoiadas em pareceres pseudocientíficos.
Por seu turno, o Governo decretou medidas
excecionais de apoio a trabalhadores e empresas e, não resistindo à pressão, um
pouco à revelia do Conselho Nacional de Saúde Pública, decretou o encerramento
dos estabelecimentos de educação e ensino públicos e privados, suspendendo o
ensino presencial e prometendo a avaliação da situação a 9 de abril em relação
ao 3.º período. E a recomendação é que as pessoas fiquem em casa. A própria Conferência
Episcopal suspendeu todos os atos de culto coletivo, encerrando-se templos e
santuários, bem como as catequeses e outras atividades formativas e culturais
religiosas. Não obstante, a princípio, as pessoas saíram das escolas e foram
para as praias e centros comerciais, o que julgo uma irresponsável afronta às
autoridades nacionais deslocando o foco de infeção da escola para outros locais.
É registar a solícita criatividade dum padre
italiano, que, não podendo os cristãos ir ao templo participar na Missa,
colocou o Santíssimo Sacramento na custódia e, acompanhado do diácono com
umbela, veio pelas ruas abençoar as pessoas que, das janelas, dos automóveis ou
apeadas, reverenciavam Cristo. E a do reitor dum santuário português sobranceiro
à sua cidade, que veio abençoar a mesma cidade com o Santíssimo Sacramento desde
o cimo do respetivo escadório.
Teve de vir a crise do Covid-19 para se reconhecer
a vantagem e até a necessidade e a obrigação do teletrabalho, bem como da
retoma do ensino à distância, embora em moldes novos.
Neste último caso, é de notar que, se as instituições
de ensino superior encerraram, nem por isso o ensino colapsou. De facto, a plataforma Colibri, disponibilizada pela Unidade de Computação Científica Nacional da FCT-FCCN
(Fundação para a Ciência
e a Tecnologia) para ensino à distância no
superior, registou 63 mil participantes em cerca de 2.700 aulas ou reuniões (2.441.387 minutos) no primeiro dia de suspensão de aulas presenciais devido à epidemia.
E, no sentido de continuar a apoiar a comunidade académica e
científica na adoção de ambientes de trabalho colaborativo e garantir a manutenção
da atividade letiva e da investigação, bem como promover o teletrabalho neste
momento excecional, a FCT-FCCN tem vindo a reforçar a capacidade das
plataformas em ambiente colaborativo, tendo desde já duplicado o número de
processadores, memória, disco e máquinas virtuais de ‘transcoding’ do Colibri.
Por seu turno, a Direcção-Geral de Educação
criou um site para disponibilizar aos professores do ensino não superior
orientações, metodologias e conteúdos para ensino à distância; e a escola
virtual da Porto Editora aumentou em grande o número de inscrições para o mesmo
efeito. Por outro lado, o Júri Nacional de Exames prorrogou o prazo até 3 de
abril para os estudantes se inscreverem em exames e provas finais, podendo
fazê-lo a partir de casa.
***
Merecem, neste contexto, atenção duas ideias
que se divulgaram. Uma tem a ver com o não aconselhamento do contacto das
crianças com avós e doentes crónicos, que se aplaude, não porque estes sejam em
si um perigo de contágio para as crianças, mas pelo que estas representam de ocasião
de contágio para estes adultos, pois as crianças são muito resistentes, mas
muito contagiantes. Não há menosprezo aqui pelo papel importante dos avós. A outra
tem a ver com a eventual falta de meios hospitalares para doentes graves. Diz-se
que em Itália, perante a falta de ventiladores e grande afluxo de doentes,
recusavam no hospital a máquina a doentes com idade superior a 50 anos. Isto
não pode acontecer. Ao invés, Portugal solicita a cooperação de privados em
pessoal e equipamentos e o Governo coloca a sério a hipótese da requisição civil,
se for necessário. E a propósito, apraz-me mencionar a nota da Comissão
Nacional Justiça e Paz, organismo laical da Igreja Católica, em que se apela à construção duma
cultura solidária como resposta à pandemia do Covid-19, que proteja em
particular os mais frágeis:
“Há que dar todo o apoio aos grupos
mais vulneráveis, como os idosos, evitando de todos os modos que eles tenham de
se expor a riscos (fazendo compras por eles, por exemplo). Que um dos efeitos
desta pandemia seja o reforço da consciência coletiva de que somos todos
diferentes, que muitos são mais pobres e necessitados do amor do próximo, ou
seja, carentes de cada um de nós”.
A nota que tem como título “Uma pandemia, um desafio à solidariedade”, adverte:
“Impõe-se, por isso, superar uma mentalidade
individualista. Não há que pensar apenas nos perigos que corro, que serão
maiores ou menores, mas nos riscos que correm outros, as pessoas mais
vulneráveis. Não há que pensar tanto na contaminação de que eu possa ser
vítima, mas na contaminação que eu, sem o saber, possa provocar noutros.”.
É de justiça relevar juntas de freguesia,
outras instituições e até grupos informais que se encarregam das compras para
quem necessariamente tem de ficar em casa, como há dioceses, autarquias e
outras instituições que dispõem de condigno alojamento para médicos e demais
profissionais de saúde – ao invés da onda açambarcadora em supermercados e
farmácias, bem como da exploração de alguns laboratórios em relação ao custo
dos testes, para já não falar da insólita autoquarentena do Presidente da República
na sua casa de Cascais.
Também a Cruz Vermelha disponibilizou ao SNS o
hospital e encetou a formação do pessoal. Foi pena não ter o Governo aceite a
colaboração das farmácias no despiste o Covid-19.
Obviamente que não está tudo bem feito. Apesar
das ditas 30 medidas decretadas pelo Governo, é de reconhecer que, por exemplo,
o controlo (que não encerramento puro e simples) de fronteiras peca por tardio, tal como o despiste junto das pessoas
que regressaram de zonas de risco estrangeiras. Em termos globais, o Governo
reagiu à crise, sendo deficiente a prevenção. Pergunto-me é se outro governo
não faria semelhante ou faria melhor que a China, vindo Vargas Losa a afirmar que
o surto teria sido diferente se a China fosse uma democracia, como me interrogo
de a declaração do estado de emergência em todo o território se justifica ou se
resolve o problema.
***
Enfim, é bom que se informe a população, mas
sem carregar as cores que induzam o pânico.
O medo não é bom conselheiro, mas o homem
contemporâneo tem medo. A este respeito, é de reler o n.º 15 da Encíclica Redemptor
hominis, de 4 de março de 1979, de São João Paulo II, que explica “De que é
que o homem contemporâneo tem medo” e que se condensa no seguinte:
O homem de hoje parece estar ameaçado pelo que produz; ou seja, pelo
resultado do trabalho das suas mãos, inteligência e tendências da vontade. Os
frutos desta multiforme atividade do homem, muito rápida e de muitas vezes
imprevisível, passam a ser, não tanto objeto de alienação, no sentido de serem
tirados a quem os produz, como, ao menos parcialmente e num círculo consequente
e indireto dos seus efeitos, se voltam contra o próprio homem, passando, de
facto, a ser dirigidos ou a poder ser dirigidos contra o homem. E nisto assim
parece consistir o capítulo principal do drama da existência humana
contemporânea na sua ampla e universal dimensão. O homem cada vez mais vive com
medo. Teme que os seus produtos (naturalmente não todos e não na maior
parte, mas alguns e precisamente os que encerram uma especial porção da sua genialidade
e da sua iniciativa) se voltem radicalmente contra si
mesmo; teme que possam tornar-se instrumentos duma inimaginável autodestruição
face à qual os cataclismos e catástrofes da história conhecidos parecem ficar a
perder de vista. Devemos, pois, interrogar-nos por que razão tal poder, dado desde
o princípio ao homem e mediante o qual ele devia dominar a terra, se volta contra
ele, provocando compreensível estado de inquietude, de consciente ou
inconsciente medo e de ameaça que de muitos modos se comunica a toda a família
humana contemporânea e se manifesta sob vários aspetos.
Este estado de ameaça contra o homem tem
várias direções e graus de intensidade. Estamos cada vez mais cônscios do facto
de a exploração do planeta exigir um planeamento racional e honesto. Tal exploração
para fins industriais e militares, o desenvolvimento da técnica não controlado
nem enquadrado num plano humanístico e com perspetivas universais acarretam
muitas vezes a ameaça para o ambiente natural do homem, alienam-no nas suas
relações com a natureza e apartam-no dela. E o homem parece não dar-se conta de
outros significados do seu ambiente natural, para lá dos que apenas servem para
os fins de uso ou consumo imediatos, quando, ao invés, era vontade do Criador
que o homem comunicasse com a natureza como senhor e guarda inteligente e
nobre, e não como um desfrutador e destrutor sem respeito algum.
O progresso técnico e o desenvolvimento
da civilizacional exigem um proporcional desenvolvimento da vida moral e da
ética. Mas este último parece ficar sempre atrasado. Por isso, o progresso, tão
maravilhoso, em que é difícil não vislumbrar os autênticos sinais da grandeza
do homem, os quais, em seus germes criativos, já nos são revelados no relato da
criação do Livro do Génesis, este progresso gera multíplices inquietações. A primeira
atinge a questão essencial e fundamental: Este
progresso, de que é autor e fautor o homem, torna de facto a vida humana sobre
a terra, em todos os seus aspetos, mais humana e mais digna do homem? Não
há dúvida de que, em vários aspetos, a torna de facto tal. Mas resta saber se o
homem, enquanto homem, no contexto deste progresso, se torna melhor, mais
amadurecido espiritualmente, mais consciente da dignidade da sua humanidade,
mais responsável, mais aberto aos outros, em particular aos mais necessitados e
mais fracos, e mais disponível para proporcionar e prestar ajuda a todos.
Esta questão é típica dos cristãos, pois
Cristo os sensibilizou assim quanto ao problema do homem. Mas ela põe-se todos os
homens, especialmente aos que integram os ambientes sociais que se dedicam ao
desenvolvimento e ao progresso. Ao observar estes processos e tomando parte
neles, não podemos deixar que se apodere de nós a euforia ou um unilateral entusiasmo
pelas nossas conquistas, mas devemos, com absoluta lealdade, objetividade e
sentido de responsabilidade moral, interrogar-nos pelo que se refere à situação
do homem, hoje e no futuro: Todas as
conquistas alcançadas até agora, bem como as que estão projetadas pela técnica
para o futuro, estão de acordo com o progresso moral e espiritual do homem?
E o homem, enquanto homem, desenvolve-se
e progride, ou regride e degrada-se na sua humanidade? Prevalece nos homens, no mundo do homem – que é em si mesmo um mundo de
bem e de mal moral – o bem ou o mal? Crescem
nos homens, entre os homens, o amor social, o respeito pelos direitos de outrem
– de todos e de cada um dos homens, de cada nação, de cada povo – ou crescem os
egoísmos de vário alcance, os nacionalismos exagerados em vez do autêntico amor
da pátria e a tendência para dominar os outros, além dos próprios e legítimos
direitos e méritos, e a tendência para desfrutar de todo o progresso material e
técnico-produtivo exclusivamente para o fim de predominar sobre os outros, ou
em favor dalgum imperialismo? – interrogações que a Igreja faz a si mesma,
porque as fazem a si próprios os biliões de pessoas que vivem no mundo e andam
em todas as bocas e publicações, não contendo só afirmações e certezas, mas
também perguntas e angustiosas inquietudes, que correspondem à natureza dialética
fundamental da solicitude do homem pelo homem, pela sua própria humanidade e
pelo futuro dos homens sobre a face da terra, e que entram no âmbito da missão
da mesma Igreja e da solicitude de Cristo.
Enfim, é esta
Quaresma dos cristãos a que, no recolhimento, tiveram de aderir outros. Que sirva
de rampa de reflexão e incentivo à solidariedade e à consciência da nossa
insuficiência!
2020.03.17 – Louro de Carvalho
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