João Lemos
Esteves, secundado por outros “arquitetos” da opinião pública, escreveu na
edição online do semanário “Sol”, a 22 de março, um artigo em que
sustenta a necessidade da formação dum governo de salvação nacional, invocando
a circunstância da pandemia do Covid-19, que, a continuar a liquidar inocentes,
espalha o medo e torna o pânico o sentimento dominante nas comunidades, bem
como o facto de, a 1 de janeiro próximo futuro, se iniciar o semestre da
presidência portuguesa da UE.
Começa por
contestar as várias críticas à autoquarentena de Marcelo na residência
particular (assacável à Ministra da Saúde), cujo ato
constituiu uma sobreposição da suscetibilidade pessoal do Presidente (a badalada
hipocondria) aos seus deveres
funcionais, em especial a asserção de Adolfo Mesquita Nunes de que, no momento
em que o país mais precisava dum líder, nos saiu apenas um cidadão com os seus
receios e limitações. Sem contestar a legitimidade das críticas, o articulista
refere que elas são exageradas, pois, a seu ver, o Presidente da República tem
adotado uma postura correta na gestão da presente crise. Com efeito, mesmo na
pendência da quarentena no domicílio pessoal em Cascais, “esteve em permanente
articulação com o Primeiro-Ministro” e outros Ministros, incluindo Augusto
Santos Silva, “forçando mesmo, em algumas ocasiões, António Costa a tomar
iniciativa”. Não o desminto, mas poderia fazer o seu retiro a partir de Belém,
onde tem condições de habitabilidade e donde poderia supervisionar o Estado.
Aduz que, se
não fosse a pressão permanente exercida por Marcelo, Costa não teria aparecido
tanto e com tanto domínio da situação nestas últimas duas semanas, sendo que a
reação deste, a princípio, terá sido atabalhoada deixando o ónus da responsabilidade
da ação e explicação ao país à Ministra da Saúde e à Diretora-geral da Saúde.
Depois, a sua reação passou a ser a correta, mas o articulista porfia que o
mérito do Governo – nesta fase de reação ao medonho vírus – é também mérito de
Marcelo. Disso não duvido.
Quanto à
declaração de emergência, regista que, na asserção de Francisco Pinto Balsemão,
conselheiro de Estado, já havia um estado de emergência de facto, pelo que a
não emissão do decreto presidencial teria consequências socialmente mais
desastrosas do que a declaração. Na verdade, as opções políticas são,
essencialmente, gestão de expectativas; e a expectativa dos portugueses era que
o Presidente declarasse rapidamente e em força o estado de emergência.
Como
observação crítica, de entre as aduzíveis, destaca “a bizarria constitucional
de decretar uma situação democrática patológica para promover a certeza e a
segurança jurídicas” (para o Estado se escapulir de obrigações jurídicas
eventuais futuras). E refere
que o estado de emergência “foi pensado para situações políticas de rutura e
não para acautelar efeitos jurídicos”. E sustentando que, ao invés do que se
diz em programas televisivos, o argumento do risco do precedente não é
infantil, interroga-se sobre “se a justificação do estado de emergência foi
essencialmente jurídica, para exonerar o Estado de responsabilidade civil, como
garantir que o poder político não recorrerá ao mesmo instrumento em situações
futuras, estando em causa a preservação da irresponsabilidade patrimonial do
Estado”. Por isso, preconiza a urgência de garantir que a limitação do poder
político ao Direito não se torna em mero artifício retórico, sempre na
disponibilidade do próprio poder político diretamente interessado.
A seguir,
aborda o que diz ser o ponto mais premente, neste momento, e que tem passado ao
lado das discussões políticas nacionais. E, aduzindo que “as razões
justificativas do estado de emergência” avançadas pelo Presidente têm
necessariamente de produzir um resultado político lógico, preconiza a formação,
de imediato, de um governo de emergência nacional. Com efeito, as situações de
emergência, enquanto manifestações de “estados de exceção”, correspondem a
compromissos políticos alargados entre as forças políticas mais representativas
do povo. Assim, não se compreende, em seu entender, que um estado de emergência
seja executado por um governo dum só partido, “sem maioria absoluta e cuja
representatividade corresponde apenas a 36% dos eleitores portugueses votantes”.
Ora, em emergência nacional, diz, “teremos de ter um governo que reflita tal
circunstância excecional: no mínimo, um governo que represente mais de metade
dos portugueses”, ou seja, um governo com maioria absoluta para garantir a absoluta
legitimidade das medidas que terão de ser decretadas. Assim, em seu entender,
terá – e diz saber que o Presidente assim o fará nos próximos tempos – que
exigir a formação de um Governo de Salvação Nacional, constituído pelo PS e
pelo PSD de Rui Rio, até porque o próprio Presidente da República admitiu que esta
situação “é uma situação de guerra” e, em situação de guerra, não se vai
combater com base num governo de 36% do povo nacional, mas num governo de ampla
representatividade nacional.
E o
articulista estriba-se em duas razões que acrescem para que o Presidente provoque,
o mais breve possível, a constituição dum governo de estado de emergência,
constituído, pelo menos, por PS e PSD. Este Governo tem sido marcado pela
permanente instabilidade e necessidade de estabelecer equilíbrios sucessivos e
conjunturais no Parlamento para a viabilização das suas políticas. E o estado
de emergência necessita dum governo forte, estável, com apoio maioritário no
Parlamento, sem necessidade de negociações permanentes. Depois, no início de
2021, Portugal assumirá a presidência da UE, um encargo que representa enorme responsabilidade
para o governo em exercício, que terá de dispersar o seu foco entre as prementes
questões nacionais e os compromissos assumidos a nível europeu.
Ora, as presidências
da UE têm acentuado o desgaste político interno dos Governos. Para o
Primeiro-Ministro, será “uma tarefa de enorme responsabilidade e especialmente
hercúlea – e, desta feita, sê-lo-á em termos especialmente agravados”.
Efetivamente, Portugal irá presidir a uma UE exangue, em risco de iminente colapso,
ainda em luta contra as consequências do Covid-19. Como, a seguir ou ainda concomitante
à crise sanitária, virá o inferno económico por que inexoravelmente passaremos,
não podemos ter um Primeiro-Ministro em part-time, especialmente com um governo
debilitado, cansado e sem energia, mercê da decisão de Costa de encarar esta
XIV Legislatura apenas como a continuação da anterior.
Pensa o
articulista que o atual executivo do PS não tem músculo político para aguentar
as provações que se avizinham nos próximos meses “de ultrachumbo”, pelo que
precisamos dum governo com vitalidade, maioria e uma estabilidade à prova de
bala, com dedicação a tempo inteiro às questões nacionais. E, se Marcelo pensa
que há razões para decretar o estado de emergência, se Costa terá desafios de enorme
complexidade – a nível nacional e europeu – que exigem uma energia visível na
atual composição governamental e se estamos numa guerra a um inimigo invisível,
os portugueses não perceberão que Marcelo não exija um Governo de Salvação
Nacional, pelo menos, até ao final de 2021/início de 2022.
E Lemos
Esteves vê nessa hipotética omissão uma contradição política lógica: “decreta-se
o estado de exceção, sem se exigir um governo de exceção constitucional”.
Assim, segundo o ilustre opinante, Marcelo tem de ser consequente e, segundo
diz, assim o fará nos próximos tempos: ou seja, o Presidente da República quer,
até ao verão, um governo de coligação PS/PSD, com Rui Rio como
Vice-Primeiro-Ministro. E o articulista opina que nem Costa se poderá opor, nem
Rio poderá declinar tal solução de Salvação Nacional. Costa não se poderá opor,
pois já afirmou que não há o partido do vírus e o partido do antivírus, não
quer assumir as responsabilidades de liderar a resposta à crise,
simultaneamente, a nível nacional e a nível europeu e avalizou declaração do
estado de emergência, dada a gravidade da situação nacional.
E Rui Rio
não se poderá opor, pois, tendo concordado com todas as medidas, afirmou que o
PSD não será oposição nestes tempos de adversidade e que estará com o Governo a
cem por cento – discurso dum verdadeiro Vice-Primeiro-Ministro de Governo de
Salvação Nacional.
***
A opção de
Lemos Esteves parece óbvia. No entanto, à luz da Constituição, não se vê como o
Chefe de Estado possa querer ou forçar um governo de salvação ou unidade
nacional. Segundo a alínea f) do art.º 133.º (competência quanto a outros órgãos), compete ao Presidente da República “nomear o
Primeiro-Ministro, nos termos do n.º 1 do artigo 187.º”. E este estabelece:
“1. O
Primeiro-Ministro é nomeado pelo Presidente da República, ouvidos os partidos
representados na Assembleia da República e tendo em conta os resultados
eleitorais.
“2. Os
restantes membros do Governo são nomeados pelo Presidente da República, sob
proposta do Primeiro-Ministro.”.
À luz destas
disposições constitucionais, cabe aos partidos propor a solução governativa. O
Presidente pode querer e sugerir, mas não a pode exigir (É o Primeiro-Ministro quem propõe os outros membros
do Governo). Recorde-se que, após a vigência da Junta de
Salvação Nacional e durante os seus primeiros tempos, os seis governos
provisórios, embora legítimos, eram tudo, menos de salvação ou de unidade
nacional; os ditos governos de iniciativa presidencial, que Ramalho Eanes
nomeou e empossou, aconselhado por constitucionalistas da praça, tiveram sorte
efémera: o de Nobre da Costa viu o programa rejeitado no Parlamento; o de Mota
Pinto caiu por rejeição, pela segunda vez, das Grandes Opções do Plano; e o de
Lourdes Pintasilgo cumpriu a sua missão, porque foi constituído com o aval dos
partidos com vista à preparação eleições intercalares. Com a revisão
constitucional de 1982, os constitucionalistas deixaram de admitir governos de
iniciativa presidencial.
O
articulista em referência parece confundir governo de salvação nacional ou de
unidade nacional com governo de coligação – um governo inicialmente apontado
por Lemos Esteves é constituído, não com base em partidos, mas em cidadãos
idóneos – e optar por uma coligação PS/PSD, bloco central, cuja experiência (1983-1985) foi voluntariamente interrompida pelo PSD.
Por
falarmos de representação da maioria dos eleitores votantes na governança, essa
pode ser viabilizada tanto por PS/PSD (E porque não PS/PSD?)
como por PS/BE/CDU/PAN, tendo que se exigir, em qualquer solução, um
compromisso de estabilidade, podendo ou não a solução passar tanto pela
integração do Governo como pelo compromisso de incidência governamental.
Percebo que se entenda que BE e CDU
não sejam solução por só tolerarem a UE, mas o eleitorado não deu a nenhum
partido maioria, que não pode ser forçada agora; e não é exigível uma maioria
de 2/3 para a governação, embora seja de exigir o compromisso de consenso no
combate às crises. E a mostra no atinente ao estado de emergência mostra que
tal consenso é possível, mas sem se eclipsar a função crítica. Se toda a carga
pende para o mesmo lado, tomba.
2020.03.24 – Louro de Carvalho
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