terça-feira, 24 de março de 2020

A Páscoa – fruto da bendita e venerável árvore-cruz


Ao – ora vivo, ora melancólico – tempo outonal de amarelada e acastanhada degradação, com as folhas caídas ou a esvoaçar nos ares pela força do vento, sucede o rigor do frio invernal manifesto na gelidez necrótica da terra e das águas ou na aridez natural da paisagem onde sobressaem polimorfas árvores nuas, algumas das quais decrépitas. Podem destemperadamente as ruas ficar alagadas e os caminhos serem esventrados pela chuva copiosa ou o manto branco das neves isolar tugúrios ou cidades. Este cenário de constrição desoladora e, por vezes, de inerte abandono, cede o passo, no alvor da primavera, à policromia da paisagem, à multiplicação disseminadora das flores nos montes, nos prados e nos jardins, por vezes, fustigada pelas nevascadas de abril e pelas trovoadas de maio. Emaranham-se de folículos os arbustos, enroupam-se de folhagens as árvores mais humildes ou mais opulentas, sobretudo as que sofreram a poda de fevereiro-março, vestem-se de alegria homens e mulheres, crianças e jovens, adultos e idosos, alternando a roupa de trabalho com as fatiotas domingueiras. Tudo respira de vida, tudo impa de pujança, tudo ostenta jovialidade, tudo ferve e referve de alegria. É o rebentar da exuberância a clamar a natural maturação do fruto, pela queda das inutilidades. Analogamente, a sociedade consumista, perdida na futilidade do ter, desviada de Deus, acena ao homem moderno com a superafirmação de si, mesmo em detrimento dos semelhantes.
Porém, a cultura do espiritual e do cultural e cultual não desiste de se inculcar nas mentes, corações e atitudes das pessoas e das comunidades, abrindo-as à transcendência e ao cultivo ebulitivo dos valores universais e acalentador dos valores específicos de cada comunidade. 
Criam-se assimetrias sociais, cava-se o fosso entre poderosos e serviçais, orgulhosos ou soberbos e humildes, ricos e pobres. Escondem-se os valores que dignificam o homem e valorizam as sociedades. E o panorama exibe a indiferença, a mediocridade e a falta de sentido na vida. O rei vai nu nas más ou dúbias políticas de condução dos povos, é grosseira a gestão de tantas empresas e serviços, campeia a criminalidade na urbe ou no ermo, pululam as guerras sob pretextos diversos, promovem-se ou provocam-se os surtos migratórios descontrolados, com a concomitante exploração oportunista, criam-se e mantêm-se estruturas e mecanismos de descarte, espezinhamento e tráfico humano, desenvolvem-se esquemas de egoísmo feroz e as pessoas perdem-se no stresse ou na depressão. Se não vale a pena atirar com a culpa para a atitude ambiciosa do primeiro par humano, protótipo da insensatez do homem que se adora a si próprio, na inconsciência das suas limitações, é salutar atender à voz de Espírito, que, pairando sobre as águas como no princípio do mundo, sopra onde quer para renovar a face da Terra. E, assim – a par dum capitalismo desenfreado e sem rosto, alimentado pelos sistemas financeiros e por alguns trânsfugas da reta economia – multiplicam-se as propostas de postura e atividade generosas e solidárias; alicerça-se a edificação das estruturas de justiça social, por vezes, iluminada pela caridade evangélica; tenta-se a mitigação das desigualdades, relevando o valor social da propriedade e apregoando o destino universal dos bens, sem se desvalorizar a iniciativa e propriedade privadas; combatem-se as estruturas económicas e sociais de pecado; exalta-se a visualização do rosto de Deus presente naqueles que sofrem como naqueles que abnegadamente trabalham na prevenção, contenção e cura das doenças, mormente aquando dos diversos surtos epidémicos e mesmo pandémicos, como aquele por que passamos; e dá-se o devido valor àqueles e àquelas que zelam o bem comum com espírito dedicado e fraterno.   
E aqueles e aquelas que se dão ao cuidado de acalentar em si a Palavra de Deus, feita semente da VIDA que frutifica, perscrutando à sua volta, na atenção aos sinais dos tempos, encontrarão os germes da renovação, as motivações da fé, as razões da esperança, o fermento da caridade. Vale a pena mergulhar no largo mar dos valores, esvoaçar pelo esperançoso céu azul dos ideais, planar pelo vasto mundo das necessidades do próximo, firmar-se na terra firme da solidariedade humana e cristã e agarrar o vertiginoso júbilo da Páscoa! Coroa temporal da marcha imparável de Deus pelos caminhos dos homens, inaugurada com aquele passo natalício e alimentada pelos ensinamentos da vida de Cristo Mestre, é sustentada preventivamente pela Quaresma da austeridade e da nudez do homem perante o seu Deus, à voz da Igreja – Mãe e Mestra da Verdade – no propósito de construção do mundo novo, de fraternidade, justiça e paz.
E aquela frondosa árvore da ciência do bem e o mal, em que o homem se deixou enrolar pelo canto e encanto da sereia tentadora, cede perante a grandeza e visibilidade da Árvore da Vida, centrada, já não no ameno e fértil paraíso terreal, mas no âmago vital do magnânimo coração humano e no complexo cruzamento dos dinamismos comunitários – o verdadeiro éden da modernidade. E essa árvore da vida, abundantemente regada pelo sangue gorgolejante do Messias Senhor, é a cruz através da qual Ele uniu terra e céu e abraçou o mundo inteiro, de cidadãos dispersos pelas terrificamente sedutoras forças do mal, construindo o traço de união entre Céu e Terra, entre geografias diversas, etnias diferentes, histórias e pulsões ao mesmo tempo iguais e diversificadas. Essa árvore da vida de cujo cultor nasceu a Igreja, serva de Deus, testemunha do mundo de contradições e sacramento de salvação universal, apresenta-se na Páscoa da Ressurreição vazia do corpo desnudo de Deus, mas pejada de flores amadurecidas em frutos, não tangíveis pelas mãos carnais, não degustados pela fisicidade das bocas, não sujeito às maquias dos intermediários ou ao fisco dos Estados, mas saciantes e retemperadores das almas, alentadores das comunidades e geradores de intenso e imparável trabalho apostólico, construtor da autêntica liberdade e da excelsa dignidade da pessoa humana. É a árvore-cruz a lançar a sementeira discreta, mas irreversível, da renovação equitativa da humanidade. Deus o quer e os pobres, que não podem esperar, o anseiam!
É de esperar que a Páscoa de 2020, preparada e vivenciada a partir das nossas casas e com uma presença reduzida, simbólica e vicária de ministros ordenados e de ministros laicais no templo, sem compasso e sem osculações, não deixe de ser frutífera, generosa, solidária, comunicante e comungante. Pode mesmo acontecer que a Páscoa resultante da provação redunde em alegria merecida, em abolição do medo, em novo ardor para o envio apostólico, em movo espaço para o perdão de Deus, em redobrado reforço do sentido comunitário.
Faremos bem em pensar que a agonia orante no horto das oliveiras, a repentina detenção do Senhor, o julgamento no sinédrio e no pretório, a dolorosa caminhada para o calvário, a redentora crucifixão e morte, a afetuosa sepultura e a prometida ressurreição foram tudo menos expressão de comunidade. Não obstante, contêm em si e para nós a semente da comunidade, a força da Páscoa, o brado da ressurreição, base certa da nossa fé, e garantia segura da nossa própria ressurreição. É assim rico e contraditório, mas saboroso, eficaz e salutar o indizível fruto da bendita e veneranda árvore-cruz.
2020.03.24 – Louro de Carvalho

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