Ao – ora
vivo, ora melancólico – tempo outonal de amarelada e acastanhada degradação,
com as folhas caídas ou a esvoaçar nos ares pela força do vento, sucede o rigor
do frio invernal manifesto na gelidez necrótica da terra e das águas ou na aridez natural
da paisagem onde sobressaem polimorfas árvores nuas, algumas das quais
decrépitas. Podem destemperadamente as ruas ficar alagadas e os caminhos serem
esventrados pela chuva copiosa ou o manto branco das neves isolar tugúrios ou
cidades. Este cenário de constrição desoladora e, por vezes, de inerte abandono,
cede o passo, no alvor da primavera, à policromia da paisagem, à multiplicação
disseminadora das flores nos montes, nos prados e nos jardins, por vezes, fustigada
pelas nevascadas de abril e pelas trovoadas de maio. Emaranham-se de folículos
os arbustos, enroupam-se de folhagens as árvores mais humildes ou mais
opulentas, sobretudo as que sofreram a poda de fevereiro-março, vestem-se de
alegria homens e mulheres, crianças e jovens, adultos e idosos, alternando a
roupa de trabalho com as fatiotas domingueiras. Tudo respira de vida, tudo impa
de pujança, tudo ostenta jovialidade, tudo ferve e referve de alegria. É o
rebentar da exuberância a clamar a natural maturação do fruto, pela queda das
inutilidades. Analogamente, a sociedade consumista, perdida na futilidade do
ter, desviada de Deus, acena ao homem moderno com a superafirmação de si, mesmo
em detrimento dos semelhantes.
Porém,
a cultura do espiritual e do cultural e cultual não desiste de se inculcar nas
mentes, corações e atitudes das pessoas e das comunidades, abrindo-as à
transcendência e ao cultivo ebulitivo dos valores universais e acalentador dos
valores específicos de cada comunidade.
Criam-se
assimetrias sociais, cava-se o fosso entre poderosos e serviçais, orgulhosos ou
soberbos e humildes, ricos e pobres. Escondem-se os valores que dignificam o
homem e valorizam as sociedades. E o panorama exibe a indiferença, a
mediocridade e a falta de sentido na vida. O rei vai nu nas más ou dúbias
políticas de condução dos povos, é grosseira a gestão de tantas empresas e
serviços, campeia a criminalidade na urbe ou no ermo, pululam as guerras sob
pretextos diversos, promovem-se ou provocam-se os surtos migratórios
descontrolados, com a concomitante exploração oportunista, criam-se e mantêm-se
estruturas e mecanismos de descarte, espezinhamento e tráfico humano, desenvolvem-se
esquemas de egoísmo feroz e as pessoas perdem-se no stresse ou na depressão. Se
não vale a pena atirar com a culpa para a atitude ambiciosa do primeiro par
humano, protótipo da insensatez do homem que se adora a si próprio, na
inconsciência das suas limitações, é salutar atender à voz de Espírito, que,
pairando sobre as águas como no princípio do mundo, sopra onde quer para
renovar a face da Terra. E, assim – a par dum capitalismo desenfreado e sem
rosto, alimentado pelos sistemas financeiros e por alguns trânsfugas da reta
economia – multiplicam-se as propostas de postura e atividade generosas e
solidárias; alicerça-se a edificação das estruturas de justiça social, por
vezes, iluminada pela caridade evangélica; tenta-se a mitigação das
desigualdades, relevando o valor social da propriedade e apregoando o destino
universal dos bens, sem se desvalorizar a iniciativa e propriedade privadas; combatem-se
as estruturas económicas e sociais de pecado; exalta-se a visualização do rosto
de Deus presente naqueles que sofrem como naqueles que abnegadamente trabalham
na prevenção, contenção e cura das doenças, mormente aquando dos diversos
surtos epidémicos e mesmo pandémicos, como aquele por que passamos; e dá-se o
devido valor àqueles e àquelas que zelam o bem comum com espírito dedicado e fraterno.
E
aqueles e aquelas que se dão ao cuidado de acalentar em si a Palavra de Deus,
feita semente da VIDA que frutifica, perscrutando à sua volta, na atenção aos
sinais dos tempos, encontrarão os germes da renovação, as motivações da fé, as
razões da esperança, o fermento da caridade. Vale a pena mergulhar no largo mar
dos valores, esvoaçar pelo esperançoso céu azul dos ideais, planar pelo vasto mundo
das necessidades do próximo, firmar-se na terra firme da solidariedade humana e
cristã e agarrar o vertiginoso júbilo da Páscoa! Coroa temporal da marcha imparável
de Deus pelos caminhos dos homens, inaugurada com aquele passo natalício e
alimentada pelos ensinamentos da vida de Cristo Mestre, é sustentada
preventivamente pela Quaresma da austeridade e da nudez do homem perante o seu Deus,
à voz da Igreja – Mãe e Mestra da Verdade – no propósito de construção do mundo
novo, de fraternidade, justiça e paz.
E
aquela frondosa árvore da ciência do bem e o mal, em que o homem se deixou
enrolar pelo canto e encanto da sereia tentadora, cede perante a grandeza e
visibilidade da Árvore da Vida, centrada, já não no ameno e fértil paraíso
terreal, mas no âmago vital do magnânimo coração humano e no complexo cruzamento
dos dinamismos comunitários – o verdadeiro éden da modernidade. E essa árvore
da vida, abundantemente regada pelo sangue gorgolejante do Messias Senhor, é a
cruz através da qual Ele uniu terra e céu e abraçou o mundo inteiro, de
cidadãos dispersos pelas terrificamente sedutoras forças do mal, construindo o
traço de união entre Céu e Terra, entre geografias diversas, etnias diferentes,
histórias e pulsões ao mesmo tempo iguais e diversificadas. Essa árvore da vida
de cujo cultor nasceu a Igreja, serva de Deus, testemunha do mundo de
contradições e sacramento de salvação universal, apresenta-se na Páscoa da
Ressurreição vazia do corpo desnudo de Deus, mas pejada de flores amadurecidas
em frutos, não tangíveis pelas mãos carnais, não degustados pela fisicidade das
bocas, não sujeito às maquias dos intermediários ou ao fisco dos Estados, mas saciantes
e retemperadores das almas, alentadores das comunidades e geradores de intenso
e imparável trabalho apostólico, construtor da autêntica liberdade e da excelsa
dignidade da pessoa humana. É a árvore-cruz a lançar a sementeira
discreta, mas irreversível, da renovação equitativa da humanidade. Deus o quer
e os pobres, que não podem esperar, o anseiam!
É de
esperar que a Páscoa de 2020, preparada e vivenciada a partir das nossas casas
e com uma presença reduzida, simbólica e vicária de ministros ordenados e de
ministros laicais no templo, sem compasso e sem osculações, não deixe de ser frutífera,
generosa, solidária, comunicante e comungante. Pode mesmo acontecer que a
Páscoa resultante da provação redunde em alegria merecida, em abolição do medo,
em novo ardor para o envio apostólico, em movo espaço para o perdão de Deus, em
redobrado reforço do sentido comunitário.
Faremos
bem em pensar que a agonia orante no horto das oliveiras, a repentina detenção
do Senhor, o julgamento no sinédrio e no pretório, a dolorosa caminhada para o
calvário, a redentora crucifixão e morte, a afetuosa sepultura e a prometida ressurreição
foram tudo menos expressão de comunidade. Não obstante, contêm em si e para nós
a semente da comunidade, a força da Páscoa, o brado da ressurreição, base certa
da nossa fé, e garantia segura da nossa própria ressurreição. É assim rico e
contraditório, mas saboroso, eficaz e salutar o indizível fruto da bendita e
veneranda árvore-cruz.
2020.03.24 – Louro de
Carvalho
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