segunda-feira, 30 de março de 2020

Celebrar Cristo, nossa Páscoa e nossa Paz


Em carta aberta aos sacerdotes, neste tempo de Covid-19 e à beira da Páscoa, em linguagem coloquial e afetuosa, o Arcebispo Primaz abre o seu coração de pastor, tece considerações espirituais e dá indicações práticas sobre a celebração desta Semana Santa.
Segue uma síntese dos principais conteúdos, já sem o tom coloquial do nosso metropolita.
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Observa Dom Jorge Ortiga que os gestos têm sempre um significado muito especial, pois são a fala dos amigos, ninguém os podendo diminuir. Com efeito, são o suporte das palavras e neles comungamos o viver do mundo, a vida com as suas emoções. Ora, no caminho que subimos com Jesus para Jerusalém, há pessoas caídas (cf Lc 10,25-37), pelo que nos devemos fazer seus próximos, sem desviarmos o olhar, as mãos ou o coração, mas com o cuidado aprendido de Jesus, que, “ainda hoje, como bom samaritano, vem ao encontro de todos os homens atribulados no corpo ou no espírito e derrama sobre as suas feridas o óleo da consolação e o vinho da esperança” (Prefácio comum VIII). Assim, ao celebrarmos o memorial da Páscoa de Cristo, rezamos fervorosamente ao Pai:
Tornai-nos atentos e generosos para com as necessidades dos irmãos, de modo que, participando nas suas dores e angústias, alegrias e esperanças, lhes levemos fielmente a boa nova da salvação e sigamos, juntamente com eles, o caminho do vosso reino” (Oração Eucarística V/c; cf Gaudium et spes, n.1).
Efetivamente, este é o tempo do redobro da atenção, o tempo da medida larga em generosidade, da compartilha na hora da paixão, pois, no dom de Jesus aprendemos a doar-nos, a repartir a luz à noite da dor. Daí a nossa gratidão a Deus, como quando rezamos:
Por este dom da vossa graça, também a noite da dor se abre à luz pascal do vosso Filho crucificado e ressuscitado” (Prefácio comum VIII).  
Nunca os pastores se podem afastar dum povo que vive momentos dramáticos, mas devem, por causa dele, revestir-se de todos os cuidados cumprindo todas as orientações civis. 
A vida das comunidades tem expressões que não podem ser suspensas. Os gestos e as palavras (cf Constituição Dei Verbum, 1), com que Jesus realizou o plano de salvação, põem-nos dentro da “vontade” de Deus (cf Ef 1,9). É a pastoral da cura das feridas, pois a pandemia “não pode afogar a torrente do dom”, apesar do cansaço ou da dúvida – o que postula a perseverança no amor à Palavra “que entra pelas casas dentro e salva os irmãos na fé”. Assim, com Jesus e por Ele “daremos outra consistência à nossa fé”. 
E o Arcebispo, apelando à proximidade dos pastores, exorta os sacerdotes:
Diz, ó pastor, uma palavra e a ovelha te reconhecerá próximo. Alegrar-se-á na tua voz. A tua pronúncia não será esquecida, nem na única palavra que escrevas. Ela é o testemunho da tua bênção, o peso e a graça da tua piedade, do teu pensamento. A tua oração seja constante e muito concreta. Encontra-te com cada pessoa invocando o seu nome e expressando solidariedade cristã. Com o realismo que a situação exige, o povo deve saber e experimentar o quanto o amamos com gestos muito concretos.”.
Celebrando sozinhos, sem a presença física das pessoas, os sacerdotes encontram “outros gestos gratuitos que aproximam, identificam e unificam as nossas vidas”: mensagens, contactos telefónicos, saudações pela internet, seguindo “o que a fantasia da caridade sugere”.
Por isso, o prelado bracarense pede aos pastores “palavras e gestos alimentados no exercício do sacerdócio de Jesus, o Sumo Sacerdote que nos convém (cf Heb, 7,26-28), nossa Páscoa”. E, assim, “celebraremos a Páscoa de Jesus, através de outras pequenas páscoas, pois ajudaremos a fazer a passagem do medo para a confiança, da divisão para a unidade”. Não é retirada a dor, mas a Páscoa acontecerá. Poderá ser numa mensagem a cada família, substituindo o “compasso” tradicional, mas explicando a Páscoa como passagem do temor à serenidade, do medo à esperança, “a mostrar a força da fé para todos os momentos, mas particularmente para os conturbados”. E “a Páscoa acontecerá através de pequenas páscoas presentes em gestos que mostram vida”, pois, “neles, o Ressuscitado está presente. 
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Depois, deixa orientações para a Semana Santa. Tendo em conta que ela comemora “a Paixão de Cristo desde a sua entrada messiânica em Jerusalém” (IGMR, n. 31), o Pastor estimula os padres e os diáconos (no respetivo ministério) a celebrarem a Liturgia das Horas e a Eucaristia pelo povo das comunidades onde servem, em todos os dias previstos, embora sempre sem povo e nas condições que a máxima segurança da saúde pública o exija. Será o mais belo e compassivo gesto para com o Povo de Deus. Quanto à Semana Santa, há que seguir as indicações da Conferência Episcopal Portuguesa no documento “Semana Santa e Tríduo Pascal em tempo de Covid-19”. Para lá das celebrações do Arcebispo, a transmitir pela internet, podem ser realizadas outras nas igrejas paroquiais e capelas das comunidades onde for possível. E, porque sem povo, impõe-se colocar espírito, para o que o Arcebispo deixa algumas indicações.
Em Domingo de Ramos na Paixão do Senhor (na Sé Primaz, às 11,30 horas), na impossibilidade de o fazer exteriormente, agitaremos os ramos da nossa alegria para comemorar a provocadora entrada messiânica de Jesus em Jerusalém. “É Ele que alteia os pórticos antigos do nosso coração e rasga o véu que nos separava do encontro com Deus”.
Os acontecimentos comemorados, de forma expressiva, no Domingo de Ramos, são celebrados no Tríduo Pascal, com a atenção a cada momento da paixão, morte e ressurreição de Jesus.
Braga não terá agora a Missa Crismal e Bênção dos Santos Óleos, esperando celebrá-la a 19 de junho, Solenidade do Sagrado Coração de Jesus e Jornada de Santificação do Clero. Mas o Arcebispo deseja que os padres, na Eucaristia da tarde, renovem as promessas feitas no dia da ordenação e que o povo reze por eles, para que “sejamos abundantemente embebidos nas bênçãos de Deus, na fidelidade a Cristo Sacerdote, Bom Pastor, Mestre e Servo de todos”. Pede que utilizem a estola branca por si oferecida, com a imagem de Santa Maria de Braga e o logótipo da Arquidiocese, como sinal de unidade e de consolo recíproco. E, como Pai na fé, diz:
Só dever haver concelebrações nas comunidades sacerdotais, ou seja, para aqueles que vivem na mesma casa e estejam em recolhimento ou quarentena. Virem de comunidades distintas para celebrarem ou fazerem reuniões “é acrescentar um perigo desnecessário”, sobretudo num período que pode ser o pico da pandemia.
Na tarde de Quinta-feira Santa, celebra-se a Missa Vespertina da Ceia do Senhor (na Sé Primacial, é às 16 horas e é presidida pelo Arcebispo). E, embora o Missal Romano registe que, “segundo uma antiquíssima tradição, são proibidas neste dia todas as missas sem participação do povo” (MR 245), os sacerdotes celebram a Eucaristia sem a presença de pessoas; os fiéis, porque impedidos pelas circunstâncias, devem associar-se, participando espiritualmente e através das transmissões pela internet, rádio e televisão, à celebração da missa comemorativa da instituição da Eucaristia. Por não poderem comungar fisicamente, devem fazê-lo no modo espiritual. E, quanto ao lava-pés (que não é feito), é sugerida a preparação para esta missa (como é hábito no rito bracarense) ou, no final, um gesto que manifeste a alegria do serviço recíproco. E lembra-se o desafio do Mestre:
Compreendeis o que vos fiz? Vós chamais-me ‘o Mestre’ e ‘o Senhor’, e dizeis bem, porque o sou. Ora, se Eu, o Senhor e o Mestre, vos lavei os pés, também vós deveis lavar os pés uns aos outros. Na verdade, dei-vos exemplo para que, assim como Eu fiz, vós façais também.” (Jo 13,13-15).
Na Sexta-feira Santa, faz-se a celebração da Paixão do Senhor (na Sé Primacial é às 15 horas), mergulhando espiritualmente em todas as partes do rito: o silêncio inicial durante a prostração; a Liturgia da Palavra, com atenção às leituras, nomeadamente ao Evangelho, até porque nos fazem bem as narrativas longas, e com o exercício do nosso sacerdócio batismal ao rezarmos a oração universal por todo o mundo, acrescentando uma outra intenção pela que é hoje uma grave necessidade pública; a adoração da cruz, adorando, em silêncio e sem ósculo, uma única cruz, exposta em lugar digno. E observa-se o jejum litúrgico até à Vigília Pascal.
Na noite do Sábado Santo (na Sé Primacial, às 21 horas), celebra-se a que é, nas palavras de Santo Agostinho, “a mãe de todas as vigílias” (Sto. Agostinho, Sermo 219). Deve ser vivida de forma mais intensa, não obstante o esplendor que tem habitualmente em formas exteriores: liturgia do fogo até ao canto do Precónio Pascal; Liturgia da Palavra, neste dia mais abundante em leituras; Liturgia Batismal, com a bênção da água e os sacramentos da iniciação cristã, e a cerimónia do “Accendite”, como se faz na Sé Primacial; Liturgia Eucarística, com a procissão da ressurreição, como se faz habitualmente na catedral. Como se menciona no Missal Romano: “esta é uma noite de vigília em nome do Senhor (Ex 12,42), a noite que os fiéis celebram, segundo a recomendação do Evangelho (Lc 12,35ss), de lâmpadas acesas na mão, à semelhança dos servos que esperam o Senhor, para que, quando Ele vier, os encontre vigilantes e os faça sentar à sua mesa” (MR 281). Com esta vigília, celebramos o “Domingo de Páscoa da ressurreição do Senhor”. Não obstante a sua duração, somos convidados a viver intensamente estes momentos, tendo no coração o Povo de Deus, e a celebrar com o esplendor espiritual possível a celebração da missa do dia, no domingo (na Sé Primacial, às 21 horas). E que este clima de “plenitude da alegria” (Prefácios do Tempo Pascal), seja vivido até à Solenidade do Pentecostes. 
Para exteriorizar estes momentos de fé, o Arcebispo pede às famílias que, na noite de sábado para domingo, coloquem na janela uma ou mais velas como recordação do Batismo e convite a sermos luz no mundo e que, durante o Domingo de Páscoa, os sinos toquem festivamente. Pode e deve ser usada a criatividade pastoral para inventar outros sinais que manifestem a alegria pascal, nomeadamente um almoço festivo (com muitas ou poucas coisas), antecedido de oração, que poderá ser feita como sugere o Cardeal Farrell:  
Fazer isto é simples: podemos reunir-nos todos numa sala, recitar um salmo de louvor, pedir perdão uns aos outros com uma palavra ou gesto entre esposos e entre pais e filhos, lendo o Evangelho do domingo, expressar um pensamento sobre o que a Palavra provoca em cada um, formular uma oração pelas necessidades da família, dos que amamos, da Igreja e do mundo. E, por fim, confiar ao cuidado de Maria a nossa família e cada família que conhecemos.”.
Por fim, o prelado bracarense porfia impor a si próprio tudo o que pede aos sacerdotes, convicto de que eles encontrarão “formas de concretizar em gestos, também sacramentais, a caridade pastoral” (cf Pastores dabo vobis, nn.21-23). Com efeito, o Espírito nunca nos faltou “à imaginação da caridade e a discernir os dons”, nunca o Senhor Jesus nos abandonou. Por isso, exorta a confiar, “naquela confiança que dá que fazer” e propõe “o abraço entre o dom e a tarefa, a alegria de experimentar quanto Deus nos ama e a responsabilidade de O anunciar alegremente como Vivo e Ressuscitado”.
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Parece-me um belo guião de espiritualidade litúrgica e de edificação/reforço da comunhão entre o Bispo e o seu presbitério. Braga continua a ensinar como no tempo de São Bartolomeu!
2020.03.29 – Louro de Carvalho

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