sábado, 25 de abril de 2020

O 46.º aniversário do 25 de Abril foi celebrado no Palácio de São Bento


Confesso que me escandalizou a polémica gerada à volta desta comemoração. Alegava-se que os deputados deviam dar o exemplo confinando-se como os demais cidadãos, que não celebraram a Páscoa como era habitual nem puderam visitar as famílias.
Ora, não se trata de dar o exemplo nesta matéria, mas de Presidente da República, deputados, Governo e senadores da República deverem fazer o que os cidadãos comuns não podem fazer. O exemplo? Deem-no no comedimento, dedicação, verdade, assiduidade, contenção de gastos e perceção razoável de rendimentos pessoais.
Não gostaria de ver a celebração duma data fundante da democracia adiada para outra data menos consensual, como 28 de setembro, 11 de março ou 25 de novembro. O exemplo do adiamento das procissões da Semana Santa para 14 e 15 de setembro não colhe porque são efemérides que não mudam a natureza intrínseca das celebrações. Não gostaria de ver o 25 de Abril com meia dúzia de intervenientes a modo do que se faz em celebrações litúrgicas a que as pessoas se podem associar pela TV ou pela internet. Os deputados devem ser sapientemente prudentes para guardarem as distâncias recomendadas e audazes para correrem riscos se for preciso. Não gostava de ver a celebração feita a partir de Cova da Moura, Pontinha ou Quartel do Carmo – simbólicos, mas circunstanciais – ou da residência particular de Ferro Rodrigues, como não gostei de ver a quarentena presidencial a partir da sua residência em Cascais, que bem podia ter sido exercida a partir do Palácio de Belém.
As vozes que se levantaram contra este modelo de celebração na Casa da Democracia, que foi o objetivo político da revolução, ou não querem a celebração desta data e aproveitaram o ensejo para contestarem o modelo ou não acreditavam que o Parlamento seguiria as indicações da Direcção-Geral da Saúde. Esquecem que o Parlamento não foi dissolvido nem suspenso.
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Afinal, o Parlamento, numa versão reduzida, celebrou a efeméride num contexto de pandemia e na iminência de crise socioeconómica. Fê-lo com 46 deputados (um por cada ano decorrido). Os discursos não esqueceram a polémica suscitada em torno do modus faciendi, comentaram a resposta que está a ser dada à pandemia e abordaram o futuro e a importância da liberdade. A sessão começou com um minuto de silêncio pelas vítimas da Covid-19. E, ao invés do habitual, o Presidente do Parlamento abriu os discursos para defender a decisão de celebrar o 25 de Abril, porque “independentemente das circunstâncias, a democracia e o Parlamento dizem presente”.
O CDS não só discordou desta cerimónia como propôs uma alternativa viável e responsável para uma evocação que consideramos fundamental“, argumentou Telmo Correia, que aduziu que “esta celebração dividiu os portugueses quando o momento é de união”. E André Ventura, do Chega foi mais contundente: “Não devíamos estar aqui hoje porque os portugueses não puderam estar ao lado daqueles que perderam”.
Porém, a Iniciativa Liberal e o PAN – que se fixou nas áreas em que “falta cumprir abril” – preferiam uma celebração diferente, mas focaram-se nas suas bandeiras. Os restantes partidos (PS, PSD, PCP, PEV e BE) defenderam a cerimónia. Ana Catarina Mendes, líder parlamentar do PS, disse que não podíamos estar noutro sítio que não o Parlamento para comemorar o 25 de Abril. E foi o Presidente da República quem dedicou mais tempo à defesa desta celebração, chegando a dizer que “nunca hesitou por um segundo”: “Deixar de evocar o 25 de Abril no tempo em que ele mais está a ser posto à prova seria um absurdo cívico”. Segundo ele, “o que seria verdadeiramente incompreensível” seria a AR “demitir-se de exercer todos os seus poderes” quando “são mais necessários” do que nunca” (sobretudo os poderes de fiscalização). Não se trata, pois, de festa de políticos, alheia ao clima de privação vivido na sociedade portuguesa, mas de reconhecer o verdadeiro sentido da data fundante do regime democrático, tal como se fará para reconhecer os significados de 10 de junho, de 5 de outubro e de 1 de dezembro.
Apesar de a polémica ter estado presente nos discursos, o tema central foi a pandemia que acarreta restrições por causa do novo coronavírus e trará dificuldades económicas e sociais. E o líder do PSD aproveitou para avisar que “a economia portuguesa não resistirá a uma nova paragem como aquela que estamos a viver” e pedir um plano para o próximo inverno que evite uma nova (quase) paralisação do país enquanto não há uma vacina. Advertiu que “as falhas verificadas agora não poderão ser repetidas”. Aliás, o foco no investimento no SNS, visto como uma vitória do 25 de Abril, foi vincado pelos partidos, agora que a pandemia a expôs as fragilidades dos serviços de saúde. E Rio não exclui a 100% a necessidade de austeridade, referindo que o “otimismo” dos partidos à esquerda, incluindo o PS, de que esta não será necessária, não pode impedir de nos prepararmos para o pior cenário. E, à esquerda, foram vários os apelos para uma resposta mais forte, pois os direitos e a liberdade não estão em quarentena. Foi mesmo Ferro Rodrigues quem introduziu a questão da austeridade, ao dizer.
De uma coisa estou certo: Portugal e os portugueses estão vacinados contra a austeridade. Resta saber se a vacina tem 100% de eficácia.”.
E aproveitou o ensejo para elogiar os partidos que ajudaram o PS na devolução de rendimentos efetuada nos últimos anos.
Pelo BE, Moisés Ferreira afirmou que “da crise só saímos avançando, nunca recuando”, e Jerónimo de Sousa, pelo PCP, assinalou que “a situação que vivemos mostra a importância dos serviços públicos”, que “os que há pouco diziam que vivíamos acima das nossas possibilidades estão de volta” e que a crise não pode significar um retrocesso nos rendimentos. No PS, a mensagem foi para a Europa para que esta faça parte da solução e não do problema.
Também a celebração da Revolução dos Cravos não esqueceu a liberdade. E foi a Iniciativa Liberal que mais tempo do seu discurso dedicou ao tema, focando-se nos mais jovens. Numa carta ao filho que faz 18 anos neste dia, Cotrim Figueiredo pediu para que este nunca dê a liberdade “por garantida”. O Presidente da República sustentou que é preciso perceber a diferença entre “a liberdade que assume e a repressão que apaga e a democracia que revela e a ditadura que silencia”. O PS, pela voz de Catarina Mendes, frisou que a liberdade é “uma flor delicada” que é preciso preservar. E Moisés Ferreira afirmou que “hoje não descemos a avenida, mas nem por isso esquecemos que a liberdade é o nosso chão”.
Apesar da divisão nalguns aspetos, houve união na luta contra a pandemia, a ponto de Marcelo preconizar que “esta hora impõe unidade, que não é nem unicidade nem unanimismo” e encerrando com um apelo: “Vamos ao essencial, vamos vencer as crises que temos de vencer”.
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Com a crise sanitária a parecer quase controlada e a discussão sobre a recuperação económica no horizonte mais próximo, a cerimónia do 25 de Abril trouxe a política de volta ao Parlamento, com os partidos a pressionarem o Governo e a definirem pontos de partida para o debate que se avizinha. Rui Rio, que até agora esteve apostado numa estratégia de cooperação com o Governo e muito contido na crítica, foi quem levou mais longe esse exercício, deixando o aviso de que o período de compreensão acabou. Expôs um extenso caderno de encargos para evitar nova paragem que o país não suportaria: maior capacidade de resposta do SNS, mais equipamentos disponíveis e mais profissionais habilitados a usá-los, testes em quantidade suficiente e proteção individual adequada para todos. Se a pandemia apanhou todos de surpresa, agora a palavra-chave é “planeamento”, a começar pelos lares, onde as falhas se têm acumulado. Com efeito, há um número na cabeça de todos: 40% das vítimas mortais causadas pela pandemia eram residentes em lares. E o líder do PSD questionou o mediatismo de vários governantes, que estão nos jornais e nas televisões a publicitar, a toda a hora, o que fizeram e o que não fizeram”, exigindo ao Governo arrepio de caminho para corrigir as falhas e injustiças, para que empresas e trabalhadores possam receber os apoios em tempo útil e oportuno. E observou:
O Partido Socialista e os partidos da maioria parlamentar que apoiam o Governo têm garantido que, com eles, não haverá qualquer tipo de austeridade. É uma notícia que, seguramente, a todos agrada, mas tal otimismo não pode ser impeditivo de nos prepararmos para o pior cenário, pois, tal como o povo nos ensina, ‘mais vale prevenir do que remediar’.”.
Também Moisés Ferreira denunciou os que espreitam a “oportunidade de desenterrar a velha cartilha da austeridade”. E defendeu que a crise económica que aí vem só será respondida com investimento no SNS, aumentos salariais e atualização de carreiras, proteção do emprego e apoios sociais. Ou seja, será respondida com Abril. Do PAN, também vieram exigências de mais e melhor Estado no combate à pobreza, na resposta ao SNS, no direito à habitação, na proteção de todos, no acesso à educação, no respeito pelos animais e pelo ambiente. O deputado Iniciativa Liberal frisou que a sua geração falhou ao não ser capaz de deixar à geração seguinte um país mais próspero, com mais oportunidades, com mais escolhas e com mais liberdade, pois “não há verdadeira liberdade enquanto não houver igualdade de oportunidades e possibilidade de escolha”. Telmo Correia reforçou as críticas ao modelo escolhido pela Assembleia da República porfiando que “não aceitamos lições de democracia de ninguém”. André Ventura centrou a sua intervenção nas críticas ao regime e à III República para pedir um novo 25 de Abril (“Queremos outra democracia, queremos a IV República portuguesa”). E Jerónimo de Sousa vincou: 
Os que há pouco diziam que vivíamos acima das nossas possibilidades estão de volta empolando dificuldades reais. Regressaram a debitar as suas velhas receitas agigantando catastróficos cenários, para justificar o aprofundamento da exploração. Ei-los ensaiando o discurso da inevitabilidade do corte dos salários, das pensões e dos direitos e a pensar manter intocáveis os seus instrumentos de exploração.”.
Essa receita nunca contará com o apoio do PCP. A austeridade está aí e é preciso combatê-la desde já, insistiu Jerónimo de Sousa, que observou:
Dizem-nos que estamos todos no mesmo barco. Os mesmos que estão na origem das gritantes desigualdades existentes passaram a arvorar-se em campeões do consenso nacional. Não, os portugueses não estão todos nas mesmas condições.”.
Num discurso de homenagem aos símbolos e significados do 25 de Abril, Catarina Mendes evitou entrar na discussão que vai toldando o debate sobre o plano de recuperação económica, mas não escondeu alguma desilusão com a resposta que tem sido dada pela UE, reconhecendo que “nunca os cidadãos foram tão exigentes face ao projeto europeu” e que “as notícias que recebemos da Europa alternam entre o bom, o mau e o incerto”. E deixou juras de compromisso:
No que depender de nós, a Europa será reforçada nesta crise, fará parte da sua solução, não dos problemas gigantescos que temos pela frente. Esperemos que todos queiram partilhar este nosso sentido de reforço da Europa. Mas, reafirmamos, não seremos nós a ficar de fora da Europa nesta crise.”.
A registar há o aceno de Marcelo a Jerónimo de Sousa, como ele deputado na Assembleia Constituinte e o agradecimento a Ramalho Eanes, o único ex-Presidente da República presente.
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Enfim, uma comemoração do 25 de Abril como pôde ser, mas digna!
2020.04.25 – Louro de Carvalho

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