Confesso que me escandalizou a polémica gerada à volta desta comemoração. Alegava-se
que os deputados deviam dar o exemplo confinando-se como os demais cidadãos, que
não celebraram a Páscoa como era habitual nem puderam visitar as famílias.
Ora, não se trata de dar o exemplo nesta matéria, mas de Presidente da
República, deputados, Governo e senadores da República deverem fazer o que os cidadãos
comuns não podem fazer. O exemplo? Deem-no no comedimento, dedicação, verdade,
assiduidade, contenção de gastos e perceção razoável de rendimentos pessoais.
Não gostaria de ver a celebração duma data fundante da democracia adiada
para outra data menos consensual, como 28 de setembro, 11 de março ou 25 de
novembro. O exemplo do adiamento das procissões da Semana Santa para 14 e 15 de
setembro não colhe porque são efemérides que não mudam a natureza intrínseca
das celebrações. Não gostaria de ver o 25 de Abril com meia dúzia de
intervenientes a modo do que se faz em celebrações litúrgicas a que as pessoas
se podem associar pela TV ou pela internet. Os deputados devem ser sapientemente
prudentes para guardarem as distâncias recomendadas e audazes para correrem
riscos se for preciso. Não gostava de ver a celebração feita a partir de Cova
da Moura, Pontinha ou Quartel do Carmo – simbólicos, mas circunstanciais – ou da
residência particular de Ferro Rodrigues, como não gostei de ver a quarentena
presidencial a partir da sua residência em Cascais, que bem podia ter sido
exercida a partir do Palácio de Belém.
As vozes que se levantaram contra este modelo de celebração na Casa da
Democracia, que foi o objetivo político da revolução, ou não querem a celebração
desta data e aproveitaram o ensejo para contestarem o modelo ou não acreditavam
que o Parlamento seguiria as indicações da Direcção-Geral da Saúde. Esquecem que
o Parlamento não foi dissolvido nem suspenso.
***
Afinal, o Parlamento, numa versão reduzida, celebrou a efeméride num contexto
de pandemia e na iminência de crise socioeconómica. Fê-lo com 46 deputados (um por cada
ano decorrido). Os discursos
não esqueceram a polémica suscitada em torno do modus faciendi, comentaram a resposta que está a ser dada à
pandemia e abordaram o futuro e a importância da liberdade. A sessão começou
com um minuto de silêncio pelas vítimas da Covid-19. E, ao invés do habitual, o
Presidente do Parlamento abriu os discursos para defender a decisão de celebrar
o 25 de Abril, porque “independentemente das circunstâncias, a
democracia e o Parlamento dizem presente”.
“O CDS não só discordou desta cerimónia como propôs uma alternativa
viável e responsável para uma evocação que consideramos fundamental“, argumentou
Telmo Correia, que aduziu que “esta celebração dividiu os portugueses quando o
momento é de união”. E André Ventura, do Chega foi mais contundente: “Não devíamos estar aqui hoje porque os
portugueses não puderam estar ao lado daqueles que perderam”.
Porém, a Iniciativa Liberal e o PAN – que se fixou nas
áreas em que “falta cumprir abril” – preferiam uma celebração diferente, mas focaram-se
nas suas bandeiras. Os restantes partidos (PS, PSD, PCP, PEV e BE) defenderam a cerimónia. Ana Catarina Mendes, líder
parlamentar do PS, disse que não podíamos estar noutro sítio que não o
Parlamento para comemorar o 25 de Abril. E foi o Presidente da República
quem dedicou mais tempo à defesa desta celebração, chegando a dizer que “nunca
hesitou por um segundo”: “Deixar de
evocar o 25 de Abril no tempo em que ele mais está a ser posto à prova seria um
absurdo cívico”. Segundo ele, “o que seria verdadeiramente incompreensível”
seria a AR “demitir-se de exercer todos os seus poderes” quando “são mais
necessários” do que nunca” (sobretudo os poderes de fiscalização). Não se trata, pois, de festa de políticos, alheia
ao clima de privação vivido na sociedade portuguesa, mas de reconhecer o
verdadeiro sentido da data fundante do regime democrático, tal como se fará
para reconhecer os significados de 10 de junho, de 5 de outubro e de 1 de
dezembro.
Apesar de a polémica ter estado presente nos discursos, o tema central foi
a pandemia que acarreta restrições por causa do novo coronavírus e trará
dificuldades económicas e sociais. E o líder do PSD aproveitou para avisar que
“a economia portuguesa não resistirá a uma nova paragem como aquela que estamos
a viver” e pedir um plano para o próximo inverno que evite uma nova (quase) paralisação do país enquanto não há uma vacina. Advertiu
que “as falhas verificadas agora não poderão ser repetidas”. Aliás, o foco no
investimento no SNS, visto como uma vitória do 25 de Abril, foi vincado pelos
partidos, agora que a pandemia a expôs as fragilidades dos serviços de saúde. E
Rio não exclui a 100% a necessidade de austeridade, referindo que o “otimismo”
dos partidos à esquerda, incluindo o PS, de que esta não será necessária, não
pode impedir de nos prepararmos para o pior cenário. E, à esquerda, foram
vários os apelos para uma resposta mais forte, pois os direitos e a liberdade não
estão em quarentena. Foi mesmo Ferro Rodrigues quem introduziu a questão
da austeridade, ao dizer.
“De uma coisa estou certo:
Portugal e os portugueses estão vacinados contra a austeridade. Resta saber se
a vacina tem 100% de eficácia.”.
E aproveitou o ensejo para elogiar os partidos que ajudaram o PS na
devolução de rendimentos efetuada nos últimos anos.
Pelo BE, Moisés Ferreira afirmou que “da crise só saímos avançando,
nunca recuando”, e Jerónimo de Sousa, pelo PCP, assinalou que “a
situação que vivemos mostra a importância dos serviços públicos”, que “os que
há pouco diziam que vivíamos acima das nossas possibilidades estão de volta” e
que a crise não pode significar um retrocesso nos rendimentos. No PS, a
mensagem foi para a Europa para que esta faça parte da solução e não do
problema.
Também a celebração da Revolução dos Cravos não esqueceu a liberdade. E foi
a Iniciativa Liberal que mais tempo do seu discurso dedicou ao tema, focando-se
nos mais jovens. Numa carta ao filho que faz 18 anos neste dia, Cotrim Figueiredo
pediu para que este nunca dê a liberdade “por garantida”. O Presidente da República
sustentou que é preciso perceber a diferença entre “a liberdade que assume e a
repressão que apaga e a democracia que revela e a ditadura que silencia”.
O PS, pela voz de Catarina Mendes, frisou que a liberdade é “uma flor delicada”
que é preciso preservar. E Moisés Ferreira afirmou que “hoje não
descemos a avenida, mas nem por isso esquecemos que a liberdade é o nosso chão”.
Apesar da divisão nalguns aspetos, houve união na luta contra a pandemia, a
ponto de Marcelo preconizar que “esta hora impõe unidade, que
não é nem unicidade nem unanimismo” e encerrando com um apelo: “Vamos ao essencial, vamos vencer as crises
que temos de vencer”.
***
Com a crise sanitária a parecer quase controlada e a discussão sobre a
recuperação económica no horizonte mais próximo, a
cerimónia do 25 de Abril trouxe a política de volta ao Parlamento, com
os partidos a pressionarem o Governo e a definirem pontos de partida para o
debate que se avizinha. Rui Rio, que
até agora esteve apostado numa estratégia de cooperação com o Governo e muito
contido na crítica, foi quem levou mais longe esse exercício, deixando o aviso
de que o período de compreensão acabou.
Expôs um extenso caderno de encargos para evitar nova paragem que o país não
suportaria: maior capacidade de resposta do SNS, mais equipamentos disponíveis
e mais profissionais habilitados a usá-los, testes em quantidade suficiente e proteção
individual adequada para todos. Se a pandemia apanhou todos de surpresa, agora a
palavra-chave é “planeamento”, a começar pelos lares, onde as falhas se têm
acumulado. Com efeito, há um número na cabeça de todos: 40% das vítimas mortais
causadas pela pandemia eram residentes em lares. E o líder do PSD questionou
o mediatismo de vários governantes, que estão
nos jornais e nas televisões a publicitar, a toda a hora, o que fizeram e o que
não fizeram”, exigindo ao Governo arrepio de caminho para corrigir as
falhas e injustiças, para que empresas e trabalhadores possam receber os apoios
em tempo útil e oportuno. E observou:
“O Partido Socialista e os partidos da maioria
parlamentar que apoiam o Governo têm garantido que, com eles, não haverá
qualquer tipo de austeridade. É uma
notícia que, seguramente, a todos agrada, mas tal otimismo não pode ser
impeditivo de nos prepararmos para o pior cenário, pois, tal como o povo nos
ensina, ‘mais vale prevenir do que remediar’.”.
Também Moisés Ferreira denunciou os que
espreitam a “oportunidade de desenterrar a velha cartilha da austeridade”. E defendeu
que a crise económica que aí vem só será respondida com investimento no SNS,
aumentos salariais e atualização de carreiras, proteção do emprego e apoios
sociais. Ou seja, será respondida com Abril. Do PAN, também vieram exigências de
mais e melhor Estado no combate à pobreza, na resposta ao SNS, no direito à
habitação, na proteção de todos, no acesso à educação, no respeito pelos
animais e pelo ambiente. O deputado Iniciativa Liberal frisou que a sua geração
falhou ao não ser capaz de deixar à geração seguinte um país mais próspero, com
mais oportunidades, com mais escolhas e com mais liberdade, pois “não há verdadeira liberdade enquanto não
houver igualdade de oportunidades e possibilidade de escolha”. Telmo Correia reforçou as
críticas ao modelo escolhido pela Assembleia da República porfiando que “não aceitamos lições de democracia de
ninguém”. André Ventura centrou a sua
intervenção nas críticas ao regime e à III República para pedir um novo 25 de
Abril (“Queremos
outra democracia, queremos a IV República portuguesa”). E Jerónimo
de Sousa vincou:
“Os que há pouco diziam que vivíamos acima das
nossas possibilidades estão de volta empolando dificuldades reais. Regressaram a debitar as suas velhas receitas
agigantando catastróficos cenários, para justificar o aprofundamento da
exploração. Ei-los ensaiando o discurso da inevitabilidade do corte dos
salários, das pensões e dos direitos e a pensar manter intocáveis os seus
instrumentos de exploração.”.
Essa receita nunca contará com o apoio do PCP. A austeridade está aí e é
preciso combatê-la desde já, insistiu Jerónimo de Sousa, que observou:
“Dizem-nos que estamos todos no mesmo barco.
Os mesmos que estão na origem das gritantes desigualdades existentes passaram a
arvorar-se em campeões do consenso nacional. Não,
os portugueses não estão todos nas mesmas condições.”.
Num discurso de homenagem aos símbolos e significados do 25 de Abril, Catarina Mendes evitou entrar na
discussão que vai toldando o debate sobre o plano de recuperação económica, mas
não escondeu alguma desilusão com a resposta que tem sido dada pela UE, reconhecendo
que “nunca os cidadãos foram tão exigentes face ao projeto europeu” e que “as notícias que recebemos da Europa
alternam entre o bom, o mau e o incerto”. E deixou juras de compromisso:
“No que depender de nós, a Europa será
reforçada nesta crise, fará parte da sua solução, não dos problemas gigantescos
que temos pela frente. Esperemos que todos queiram partilhar este nosso sentido
de reforço da Europa. Mas, reafirmamos, não
seremos nós a ficar de fora da Europa nesta crise.”.
A
registar há o aceno de Marcelo a Jerónimo de Sousa, como ele deputado na
Assembleia Constituinte e o agradecimento a Ramalho Eanes, o único
ex-Presidente da República presente.
***
Enfim,
uma comemoração do 25 de Abril como pôde ser, mas digna!
2020.04.25 – Louro de Carvalho
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