terça-feira, 27 de setembro de 2022

Região chinesa de Xinjiang sob fogo cruzado da crítica internacional

 

O relatório da Organização das Nações Unidas (ONU) sobre a região chinesa de Xinjiang, publicado a 31 de agosto, indicia possíveis “crimes contra a humanidade” e menciona “provas críveis” de tortura e de violência sexual contra a minoria uigur e contra outros grupos predominantemente muçulmanos, pedindo a intervenção da comunidade internacional.

Michelle Bachelet, Alta Comissária da ONU para os Direitos Humanos, manteve a promessa de publicar o relatório antes de deixar o cargo a 1 de setembro, após quatro anos à frente daquele organismo da ONU.

O documento, que não contém revelações importantes em relação ao que se sabia da situação em Xinjiang, traz o selo da ONU às acusações feitas há muito tempo contra as autoridades chinesas. A sua publicação foi alvo de intensa pressão particularmente dos Estados Unidos da América (EUA) e das principais organizações não-governamentais (ONG) de direitos humanos, e Pequim, inversamente,  não queria a divulgação, por considerar o relatório uma “farsa” orquestrada pelo Ocidente e liderada por Washington.

O texto da ONU não traz a palavra “genocídio”, mas essa foi a acusação do governo norte-americano contra Pequim. E também a Assembleia Nacional Francesa, seguindo os passos da representação do Reino Unido, Holanda e do Canadá, qualificou, em janeiro, como “genocídio” o tratamento dos uigures pela China. Com efeito, Xinjiang e outras províncias da China foram atingidas por várias décadas, em particular de 2009 a 2014, por ataques atribuídos pelo governo chinês a islâmicos ou separatistas uigures.

O mandato de Michelle Bachelet foi marcado pelas críticas à sua resposta ao tratamento da China aos uigures e a outras minorias muçulmanas. No início de junho, 230 organizações de direitos humanos, inclusive portuguesas, exigiram a sua demissão, acusando-a de branqueamento de atrocidades numa visita ao território chinês. Porém, Bachelet defendeu-se de ser branda com Pequim quanto aos direitos humanos, acreditando que diálogo “não significa fechar os olhos”.

Efetivamente, durante uma rara visita à China em maio passado, a primeira de um Alto-comissário da ONU em 17 anos, Michelle Bachelet, denunciando “atos violentos de extremismo” na região, pediu a Pequim que evitasse medidas “arbitrárias” em Xinjiang.  

Xinjiang, vasto território semidesértico no noroeste da China, tem sido palco de violentos ataques, que Pequim atribui a separatistas e islamitas. Os uigures, maioritariamente muçulmanos, representam um pouco menos de metade dos 25 milhões de pessoas que vivem na região, falam, na sua grande maioria, uma língua relacionada com o Turco e são um dos 56 grupos étnicos que existem no território chinês. A China é acusada de concentrar minorias étnicas chinesas de origem muçulmana em campos de doutrinação e de reeducação política no extremo noroeste do território chinês. As denúncias apontam para pelo menos um milhão de muçulmanos retidos nestes campos. Todavia, Pequim rejeita sempre esse plano de “genocídio cultural” de minorias muçulmanas na China, aduzindo que aquelas instalações são centros de formação profissional para ajudar a encontrar trabalho e afastar do extremismo e do terrorismo a população.

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Já a 10 de junho, a Amnistia Internacional (AI), num documento de 160 páginas com mais de 50 novos testemunhos angustiantes sobre o que entende ser crime contra a Humanidade, denunciava a perseguição, a detenção e a tortura de centenas de milhares de uigures, cazaques e outros grupos étnicos predominantemente muçulmanos em Xinjiang, no noroeste da China. Ao mesmo tempo, condena “as medidas extremas” tomadas “sob o disfarce do combate ao terrorismo”, para forçar estas pessoas “a abandonar as suas tradições religiosas, práticas culturais e línguas locais”.

Em comunicado, a organização acusava o regime de Xi Jinping de ter construído, na região autónoma uigur de Xinjiang, “um dos sistemas de vigilância mais avançados do mundo” e uma vasta rede de centros de “transformação-através-da-educação”, que mais não são do que campos de detenção, tortura e outros maus-tratos sistemáticos, para inculcar à força uma nação chinesa homogénea e secular e os ideais do partido comunista chinês (PCC). E refere que os enviados para tais campos não são julgados, não têm acesso a advogados, não podem contestar a decisão, são alvo de práticas de tortura e tratamento degradante, podem lá ficar por tempo indefinido, já que são as autoridades que decidem quando estão prontos para sair, e são obrigados a renegar as suas convicções religiosas e cultura e a tornarem-se em seguidores do governo e do PCC.

Face à situação, Agnès Callamard, secretária-geral da AI, exorta o governo chinês a acabar com os campos de detenção e a cessar a perseguição da população muçulmana e desafia a comunidade internacional a erguer a voz “para pôr fim a esta abominação”, devendo a ONU abrir uma investigação independente para responsabilizar os suspeitos de terem cometido tais crimes.

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Entretanto, a branquear a situação, o presidente chinês visitou, na segunda semana de julho, a região de Xinjiang, pois designou-a como “área-chave” no projeto internacional de infraestruturas ‘Uma Faixa, Uma Rota’, prevendo a construção de portos, linhas ferroviárias, autoestradas e centrais elétricas, e abrindo novas rotas comerciais entre Ásia, Europa e África. Nessa visita, Xi Jinping reuniu-se com líderes do Corpo de Produção e Construção de Xinjiang (XPCC, na sigla inglesa), órgão supragovernamental que tem tribunais, escolas e sistema de saúde próprios, sob o sistema militar imposto na região, após a ascensão do PCC ao poder, em 1949.

O líder chinês diz ter aprendido a história do XPCC no cultivo e na guarda das áreas fronteiriças. Com efeito, Xinjiang confina com a Rússia, Afeganistão e outros países da Ásia Central, que a China quis atrair para a sua órbita, com incentivos económicos e com pactos de segurança.

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Recentemente, também a branquear a situação, o regime chinês levou jornalistas de Macau a Xinjiang (só faltou o Tribuna de Macau, alegadamente por falta de pessoal), visita que foi acompanhada pelo governo de Macau, representado pelo Gabinete de Comunicação Social. A maioria dos convidados não fala sobre a viagem e quase nenhum escreveu sobre ela nos seus órgãos de comunicação, mas todos participaram em vídeos de propaganda do regime comunista, onde só têm elogios ao que se passa em Xinjiang, nomeadamente em termos de desenvolvimento. E, sobre os uigures, nem uma palavra dizem. Todavia, o presidente da Associação de Imprensa em Português e Inglês de Macau (AIPIM) desvaloriza o caso.

Os jornalistas não fizeram perguntas sobre as acusações à China. Sobre a liberdade para decidir onde ir e com quem falar, um deles referiu que “é do tamanho da Europa Ocidental”: para ir de uma cidade a outra, tarda-se quatro a cinco horas e um distrito é do tamanho de Portugal. Além disso, eram convidados. E não se diz a quem nos convida aonde se quer ir.

Ainda sobre a liberdade, neste caso, de expressão, alguns garantem que, em 40 anos na Ásia, nunca foram pressionados sobre o que podiam publicar acerca de visitas. E acusam os “brancos” (os ocidentais) de pensarem que dominam o mundo, quando, como vincam: “Há valores asiáticos. Há valores africanos. Há diversos valores no mundo.” Porém, outros jornalistas, que também não se sentem sem liberdade de expressão, asseguram que tudo o que lhes mostraram é com o objetivo de provar que está tudo bem. Referem como exemplo a exposição sobre terrorismo e extremismo que viu em Urumqi, capital de Xinjiang: “Havia fotos sensacionalistas e sangrentas, todas de meios chineses. O intuito de Pequim é justificar os métodos. Não é apenas a China que tem tomado medidas para agir contra o terrorismo e extremismo. Os Estados Unidos fazem o mesmo.”

Um jornalista diz ter feito perguntas, mas que procurou perceber os critérios: são as autoridades que decidem quem é enviado para os campos de educação.

A ONU estima que mais de um milhão de pessoas tenha sido levada para “centros de reeducação”. Os campos e o fabrico de algodão serão um dos palcos do trabalho forçado. Porém o referido grupo de jornalistas levado a Xinjiang intervém num dos vídeos publicados nas páginas oficiais do governo chinês, em imagens captadas entre Urumqi e Karamay, ressalvando que ali não há propriamente pessoas, pois lhes explicaram que é tudo feito pelas máquinas. Além disso, porfiam que aquilo que ali se vê é um reforço da identidade, consubstanciada em diversas culturas, sendo nisso que se consubstancia o futuro do mundo, cada vez com mais partilha, sem prejuízo de se perder cada cultura. Enfim, é o multiculturalismo. Por outro lado, veem que há apoio do governo a todas as identidades locais e estimam que todas as nacionalidades recebem “apoio maior do que se não houvesse um governo central”.

Por seu turno, o presidente da AIPIM, frisando que as visitas a convite das autoridades ao país remontam aos tempos em que Macau era administrada por Portugal, realça que a prática não é exclusiva da China e considera esta mais uma visita, apesar do destino e das paragens. Como diz, é normal que os Estados convidem jornalistas para visitarem províncias ou para acompanharem governantes ao estrangeiro. E os jornalistas têm de “ser profissionais e saber filtrar os factos”.

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É pena que jornalistas, detentores do quarto poder, não denunciem as atrocidades cometidas por um Estado e cooperem no seu branqueamento. A China é um gigante político e territorial, mas não é infalível, nem impoluta. Se não acolhe a crítica, torna-se perigosa na sua autossuficiência.

2022.09.27 – Louro de Carvalho

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