segunda-feira, 5 de setembro de 2022

João Paulo I ascendeu às honras dos altares pela beatificação

 

Francisco beatificou, a 4 de setembro, o Papa João Paulo I (Albino Luciani, seu nome secular), sendo a beatificação, na Igreja Católica, a penúltima etapa do reconhecimento como santo. E o gesto foi sublinhado pela multidão presente no Vaticano, num domingo de chuva.

Na Missa que decorreu na Praça de São Pedro, Francisco proclamou, em latim, a fórmula de beatificação, afirmando responder ao pedido “da Diocese de Belluno-Feltri, de muitos outros irmãos no episcopado e de muitos fiéis”. E a fórmula permite que “o venerável servo de Deus, João Paulo I, Papa, possa ser de ora em diante chamado beato”, com festa litúrgica a 26 de agosto, dia da sua eleição pontifícia, em 1978.

Foi, neste momento, revelada a imagem de Albino Luciani, na fachada da Basílica do Vaticano, representando uma foto numa peça em tapeçaria da autoria de Yan Zhang, artista chinês nascido na província de Sichuan (República Popular da China), em 1963, que tem renome internacional e dois quadros que integram a coleção do Museu do Vaticano.

Novidade relacionada com o seu espólio é o relicário apresentado ao Papa na celebração. Ao invés do habitual nas beatificações, em que se escolhe algum fragmento de osso ou tecido ligado ao corpo do beato, a relíquia de João Paulo I é um manuscrito do Arquivo Privado Albino Luciani: um pedaço de papel, com notas a caneta e lápis, escritas por Luciani em 1956, com um esquema para reflexões sobre fé, esperança e caridade, esquema que também utilizou como Papa nas três catequeses do pontificado (proferidas nas quartas-feiras de 13, 20 e 27 de setembro). Segundo o diário italiano Avvenire, o relicário é foi concebido e criado pelo escultor Franco Murer. Numa base de pedra oriunda de Canale d’Agordo, terra natal de Albino Luciani, assenta um mostruário feito com a madeira de uma faia derrubada por uma tempestade em 2018, ostentando a folha com os apontamentos do Papa sobre as três virtudes teologais. A obra ficará exposta na Catedral de Belluno, onde Albino Luciani foi prelado de 1943 a 1958 e onde, em 23 de novembro de 2003, foi solenemente aberta a causa de beatificação.

Iniciada a celebração, o cardeal Benianimo Stella, postulador da causa de canonização, apresentou o pedido de beatificação e elencou traços biográficos do novo beato, lembrando uma vida marcada pela “humildade”, pela atenção aos problemas sociais, pela evangelização e pelo seu “exemplar” pontificado de 33 dias – 26 de agosto a 28 de setembro. E, após a proclamação do novo beato, o bispo da Diocese de Belluno-Feltri (Itália), D. Renato Marangoni, agradeceu ao Papa.

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Albino Luciani nasceu a 17 de outubro de 1912, em Canale d’Agordo, Diocese de Belluno, no Véneto, região do Nordeste de Itália, de uma família de condição humilde, cujo pai, migrante sazonal na Alemanha ao longo de muitos anos, seguia ideias socialistas. A I Guerra Mundial trouxe extremas dificuldades ao lar do futuro Papa. Anos mais tarde, a mãe, católica fervorosa, logrou que o pai aceitasse a ida de Albino para o seminário. Já padre, dedicou largos anos à formação dos seminaristas, à catequese e à participação regular na imprensa e na literacia cinematográfica (através de um cinefórum). Ordenado bispo pelo Papa São João XXIII, aos 46 anos, escolhe como lema episcopal só a palavra Humilitas (humildade). Na atividade pastoral, continuou a dar especial atenção à formação de leigos e de catequistas e à ação social junto dos mais desfavorecidos. Foi um dos bispos que participaram no Concílio Vaticano II (1962-1965), em cuja aplicação se comprometeu enquanto patriarca de Veneza, a partir de 1970.

Era patriarca de Veneza quando foi eleito Papa, assumindo o nome de João Paulo I (foi o primeiro a adotar nome duplo, em homenagem a seus dois antecessores, João XXIII e Paulo VI, já canonizados); recusou a coroação formal; e não quis ser carregado na cadeira gestatória, ficando conhecido como o “Papa do Sorriso”. Como Papa, distinguiu-se pela simplicidade, pelo sorriso e por gestos que foram bem recebidos pela opinião pública. E foi o primeiro a recusar ser coroado e transportado na cadeira gestatória (transportada por homens), como ocorria até então. Mas a intenção de mexer em profundidade nas finanças do Vaticano e no Instituto das Obras Religiosas (IOR, o banco da Santa Sé) terá desencadeado preocupações e resistências associadas a teorias conspiracionistas que pretendem explicar a morte súbita do Papa.

Os trâmites processuais para o reconhecimento do milagre obedeceram às normas de 1983. O tribunal eclesiástico para o inquérito diocesano começou as atividades a 22 de novembro de 2003 e concluiu os trabalhos três anos depois. Nas 203 sessões do processo, foram ouvidas 167 testemunhas. A cura reconhecida como milagre, que abriu caminho à beatificação, aconteceu na Argentina, em Buenos Aires, há cerca de 10 anos. Em causa está inexplicável cura científica de uma criança argentina, Candela Soza, gravemente afetada por uma epilepsia refratária maligna.

O processo de beatificação chegou ao Vaticano a 3 de janeiro de 2007, quando, na Congregação para a Causa dos Santos, foi aberto o envelope oficial com os documentos relativos à investigação diocesana sobre a heroicidade da vida e das virtudes, bem como sobre a fama de santidade. E o decreto que reconheceu as “virtudes heroicas” do novo beato foi aprovado em novembro de 2017.

Conhecido pela simplicidade e capacidade de acolhimento, muitos testemunham o estilo de João Paulo I como humilde e próximo de toda a gente. Vários testemunhos relatam o seu estilo simples e discreto, sempre preocupado em não dar excessivo trabalho aos colaboradores, incluindo as religiosas que cuidavam do serviço doméstico no apartamento pontifício.

A irmã Margherita Martin contou, no dia 2, aos jornalistas que, um dia, ao vê-la passar a ferro uma sua camisa, João Paulo I lhe disse para não perder tanto tempo com ele: bastava passar os punhos, porque ninguém vê a camisa que o Papa traz por baixo da batina.

Em conferência de imprensa no Vaticano, Stefania Falasca, vice-postuladora do processo de beatificação, frisou que Albino Luciani morreu com fama de santo e que os 33 dias do pontificado “são a ponta de um grande icebergue escondido de magistério e importantes ensinamentos”.

Lina Petri, sua sobrinha, disse, naquele encontro com a imprensa, que sempre soubera que o tio era pobre; no patriarcado de Veneza, além dos móveis históricos, nada havia de sumptuoso ou de particular valor; e, no mês do pontificado, permanecera sereno e sábio o comportamento do tio.

A inexplicável cura científica de Candela Soza, gravemente afetada por uma epilepsia refratária maligna, há cerca de dez anos, foi o milagre reconhecido para desencadear esta beatificação.

Após visita à filha internada na unidade de terapia intensiva pediátrica de Buenos Aires, Roxana, preocupada com a condição de saúde de Candela, pediu ao padre Juan José Dabusti, que acompanhasse ao hospital e conferisse a unção dos doentes à criança. Dias depois, a situação agravou-se porque a menina apanhara uma infeção hospitalar seguida de pneumonia e choque séptico. E, porque o hospital avisou a mãe de que a criança não sobreviveria àquela noite, Roxana pediu ao padre que fosse lá e rezasse mais uma vez.

E o padre, como referiu na predita conferência de imprensa, propôs à mãe que rezasse a João Paulo I para interceder pela vida e cura de Candela. O sacerdote esclareceu que Roxana não sabia quase nada sobre o Papa Luciani, mas que, para ele, sempre foi grande referência de santidade e, como estavam na Unidade de Cuidados Intensivos (UCI), a explicação do sacerdote foi “apenas pedir a sua intercessão para salvar a vida de Candela”. Então, acompanhados de duas enfermeiras presentes, colocaram as mãos no corpo de Candela e o sacerdote fez oração espontânea. Não se lembra das palavras que disse, mas recorda que pediu ao Senhor, por intercessão de João Paulo I, a cura de Candela. E revelou este facto decisivo: “No dia seguinte, Roxana veio à paróquia e disse-me que a filha, não só tinha superado aquela noite, mas que havia sinais claros de melhoras.”

Hoje, com 20 anos e totalmente curada, Candela Soza participou na conferência de imprensa, via Zoom, a partir de Buenos Aires, ao lado da mãe, manifestando profunda gratidão por esta cura.

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Sob chuva intensa e poucos fiéis na praça de São Pedro, o Papa frisou que o novo Beato, o “Papa do sorriso”, transmitiu a bondade de Deus, vivendo “na alegria do Evangelho, sem cedências e amando até ao extremo”. E encarnou a pobreza do discípulo, que não é só desapego dos bens materiais, mas sobretudo capacidade de vencer a tentação de se pôr a mim mesmo no centro e buscar a glória própria. “É bela uma Igreja com um rosto alegre, sereno e sorridente, que nunca fecha as portas, que não exacerba os corações, que não se lamenta nem guarda ressentimentos, que não é bravia nem impaciente, não se apresenta com modos rudes, nem padece de saudades do passado”, afirmou o Papa, acrescentando: “Rezemos a este nosso pai e irmão e peçamos-lhe que nos obtenha ‘o sorriso da alma’.” Um pastor manso e humilde “se considerava a si mesmo como o pó sobre o qual Deus Se dignara escrever”. E, advertindo para certas “razões mundanas”, opostas ao modelo de vida do novo beato João Paulo I, Francisco explicitou: “Por trás de uma fachada religiosa perfeita pode-se esconder a mera satisfação das próprias necessidades, a busca do prestígio pessoal, o desejo de aceder a um cargo, de ter as coisas sob controlo, o desejo de ocupar espaço e obter privilégios, a aspiração de receber reconhecimentos, e muito mais. Para tudo isto, pode-se chegar a instrumentalizar Deus.”

E, lembrando a humildade de João Paulo I, o Papa esclareceu que seguir Jesus “não significa entrar na corte, nem participar num cortejo triunfal, nem mesmo garantir-se um seguro de vida”, mas “tomar a própria cruz e olhar mais para Ele do que para nós próprios”.

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Há 44 anos, morreu um Papa que durou no cargo só 33 dias, mas tão intensos e promissores, pelo testemunho de simplicidade e de alegria, que muitos católicos o consideraram um santo e começaram a pedir a sua beatificação. A sua beatificação pela Igreja a 4 de setembro, em Roma, não obsta a que os motivos da morte deste Papa continuem a fazer correr tinta.

João Paulo I, que foi fotografado a 19 de setembro de 1978, a nove dias da sua morte, ficou conhecido pelo Papa do sorriso e é essa faceta que Yan Zhang retratou num trabalho exposto na frontaria da Basílica de São Pedro, durante a cerimónia de beatificação. Conta a jornalista Stefania Falasca, vice-presidente da Fundação João Paulo I e vice-presidente da causa da beatificação, que desafiado a pintar a imagem do Papa, o pintor olhou atentamente a foto que lhe foi apresentada e de imediato respondeu: “Sim!”.

Foram várias as diligências e iniciativas de bispos da diocese de Belluno, originária de Albino Luciani, no sentido de se desencadear a causa da beatificação. Mas artigo recente de La Civiltà Cattolica, sustenta que não foi grande o interesse, na Congregação (hoje Dicastério) para a Causas dos Santos. A Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) formalizou a mesma proposta em 1990, mas o processo não arrancou, até que, em 2003, a Congregação anuiu a que o processo arrancasse em Belluno. Nas quase duas centenas de testemunhos recolhidos, incluiu-se o de Bento XVI, Papa emérito, que, não podendo fazê-lo enquanto papa no ativo, por ser juiz do processo, passou a poder fazê-lo depois da resignação. Entretanto, foram numerosos os pedidos das mais diversas proveniências para a abertura da causa da beatificação. E, em 2017, o Papa reconheceu as “virtudes heroicas” de Luciani, depois da cura considerada “cientificamente inexplicável” de uma menina de Buenos Aires que sofria de encefalopatia aguda, como já foi explicitado.

Quando após a beatificação se verifica um outro milagre devidamente reconhecido, então o beato (que tem culto diocesano ou na comunidade religiosa de que é originário) é proclamado “santo” (com culto na Igreja universal). É a canonização, pela qual a Igreja confirma que um fiel católico é digno de culto público universal e de ser dado aos outros fiéis como intercessor e modelo de santidade. É o que se aguarda a partir de agora, no encalço dos 83 pontífices declarados santos (Francisco canonizou três: João XXIII, João Paulo II e Paulo VI) e dos 10 beatificados – até hoje,

2022.09.04 – Louro de Carvalho

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