quinta-feira, 1 de setembro de 2022

Caiu o Muro de Berlim, mas outros muros se erguem

 

 

A Lituânia ergueu uma cerca de arame farpado com 550 quilómetros de extensão e quatro metros de altura, ao longo da fronteira com a Bielorrússia, para travar a entrada de migrantes no país, sobretudo dos provenientes do Médio Oriente e África, o que, apesar de cada país ter o direito de decidir quantos imigrantes se dispõe a receber, contraria o direito internacional, que tem o direito de asilo como matéria fundamental, por ter a ver com o direito à vida e à dignidade humana.

Com a queda do Muro de Berlim, a 9 de novembro de 1989, que levou Francis Fukuyama a publicar, nesse ano, o artigo “O fim da História”, no jornal de política internacional The National Interest, e a editar o livro “O fim da História e o Último Homem” (1992), julgava-se romanticamente que tinham acabado as divisões. Afinal, era só o prenúncio da dissolução da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) ou abreviadamente União Soviética.

E as cicatrizes do passado perduram, tanto assim que, na semana em que morreu Gorbachev, responsável pelas brechas que se abriram na Cortina de Ferro e levaram à implosão do bloco soviético, a Lituânia anunciou ter concluído a construção da predita cerca de arame farpado, garantindo Ingrida Šimonytė, primeira-ministra, que o trabalho está 100% concluído em todas as secções. Há uns anos, isto era impossível, mas coisas mudaram e o motivo da construção da cerca é o que levou à construção do muro de aço pela Polónia também na fronteira com a Bielorrússia.

Ao longo deste ano, cerca de 4.200 migrantes cruzaram a fronteira e entraram na Lituânia, a partir da Bielorrússia, problema que não é de agora, pois o auge da crise migratória, decorrente da guerra na Síria, ocorreu em 2015, quando 991 mil refugiados chegaram à Europa.

Com a anexação da Crimeia pela Rússia, em 2014, coincidiu a chegada maciça de migrantes à Europa, o que gerou o caos na União Europeia (UE), onde nem há um sentimento identitário forte. Esse grande e inesperado fluxo migratório teve resposta muito diferenciada entre os vários países europeus, mais acentuada nos países de leste, com a Hungria a construir barreiras.

Na opinião de Paulo Sande, especialista em Relações Internacionais e Assuntos Europeus, a Lituânia e Polónia não estão a examinar o direito de asilo e remetem os migrantes à procedência, empurrando-os para fora das suas fronteiras. Só que, do lado de lá está Aleksandr Lukashenko, Presidente da Bielorrússia, empenhado em usar os migrantes como arma de arremesso para dividir e enfraquecer a UE, encorajando-os a cruzar a fronteira com a Lituânia. Assim, em novembro de 2021, visitou um campo de migrantes, junto à fronteira com a Lituânia, e disse-lhes: “Se quereis seguir para o Ocidente, estais no vosso direito” – pelo que não os prenderia ao arame farpado.

Por sua vez, o Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) considera incompatível com a legislação da UE a lei lituana que ordena a detenção automática de pessoas que atravessam irregularmente as fronteiras do país, negando-lhes o direito ao pedido de asilo. 

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A 27 de junho deste ano, a Amnistia Internacional (AI), deu a conhecer um relatório que revela abusos contra pessoas que entraram na Lituânia a partir da Bielorrússia, tratamento contrastante com o acolhimento das pessoas que chegam da Ucrânia, e que a Comissão Europeia não está a cumprir os seus deveres relativamente à legislação da UE.

A AI regista que as autoridades lituanas detiveram indiscriminadamente, meses a fio, milhares de refugiados e migrantes em edifícios militares (centros de detenção semelhantes a prisões), em que foram submetidos, com fortes medidas de segurança, a condições desumanas, tortura e outros maus-tratos, após o que, dificultando-lhes o acesso a instalações sanitárias e a cuidados de saúde e negando-lhes o direito de asilo, os induziram a regressar “voluntariamente” aos países dos quais fugiram. São refugiados e migrantes de países como os Camarões, a República Democrática do Congo, o Iraque, a Nigéria, a Síria e o Sri Lanka, que foram espancados, insultados e sujeitos a intimidações e assédio da polícia por motivos de discriminação étnica e racial.

Uma mulher yazidi, que se encontrava presa no centro de detenção de Medininkai, confessava que, no Iraque se fala de direitos humanos e direitos das mulheres na Europa, mas que, ali, não há direitos. E Nils Muižnieks, diretor da AI para a Europa, sustenta que “todas as pessoas que procuram proteção devem ser tratadas de forma igual e respeitosa”, por isso, as pessoas que foram ilegalmente detidas durante meses a fio e em condições terríveis, sujeitas a abusos físicos e psicológicos e a outros tratamentos degradantes, “devem ser libertadas de imediato e deve ser-lhes permitido realizarem os seus pedidos de asilo”.

Embora a Lituânia tenha concedido calorosa receção a dezenas de milhares de pessoas em fuga da Ucrânia, a experiência dos detidos foi bem diferente – situação que suscita sérias preocupações relativamente ao racismo institucional presente no sistema de migração lituano.

Em julho de 2021, ao crescer o número de pessoas a chegar à fronteira da Lituânia com a Bielorrússia, os legisladores aprovaram medidas para a detenção automática de pessoas que atravessavam as fronteiras. De forma a privar os detidos dos seus direitos legais da UE contra a detenção indiscriminada, as autoridades argumentaram que tal detenção era um alojamento temporário ou alternativa à detenção. Em consequência, milhares de pessoas, muitas necessitadas de proteção internacional, foram detidas por períodos prolongados e privadas de fiscalização das autoridades para que a legalidade da sua detenção fosse monitorizada. Além disso, muitas nunca tiveram os seus pedidos de asilo avaliados. Outras foram violentamente expulsas na fronteira entre a Lituânia e a Bielorrússia, onde não têm qualquer hipótese de procurar proteção.

A AI visitou dois centros de detenção na Lituânia, os Centros de Registo de Estrangeiros (CRE) de Kybartai e Medininkai, e realizou entrevistas a 31 pessoas. Centenas de homens estão detidos no centro de Kybartai, que funcionou como prisão até setembro de 2021 e começou a ser usado para deter refugiados e migrantes. Os detidos viram os seus movimentos restringidos no interior das instalações, só lhes sendo permitidos duches duas vezes por semana. Durante meses, o centro teve uma ocupação acima da sua lotação, com lavatórios, sanitas e chuveiros degradados. Outras centenas de pessoas foram detidas no centro de detenção de Medininkai, onde dormem em contentores instalados num campo de futebol. Os detidos admitiram à AI o receio relativamente ao comportamento da polícia, chegando, por vezes, a envolverem-se em protestos causados pela frustração de terem sido detidos indiscriminadamente e sujeitos a condições de detenção deploráveis. Muitos relataram uma imagem perturbadora de como as autoridades reagiram a tais manifestações, batendo-lhes com bastões, usando gás-pimenta e tasers.

Na manhã de 2 de março de 2022, a polícia antimotim invadiu aquele centro, em resposta a um protesto na noite do dia anterior. Mais tarde, mulheres e homens contaram como a polícia lhes bateu com bastões e tasers, os algemou e os arrastou dos seus quartos em contentores de condições precárias e como os polícias humilharam sexualmente um grupo de mulheres negras, forçando-as a permanecer ao frio, no exterior, seminuas e com as mãos atadas, e as trancaram num contentor, mostrando perturbadoras imagens de vídeo às quais a AI teve acesso. Mais tarde, pelo menos 12 pessoas foram transferidas para outros centros. Não é caso isolado, já que houve inúmeros relatos de maus-tratos, alguns semelhantes a tortura e uso desproporcionado da força, com uso de gás-pimenta e de outros equipamentos especiais. Outros detidos foram colocados em isolamento e mordidos por cães. Um psicólogo que trabalhou no centro de detenção está sob investigação por alegada violência sexual contra pessoas detidas e ao seu cuidado. E alguns detidos, em particular homens e mulheres negros, foram sujeitos a insultos racistas profundamente ofensivos.

Em agosto de 2021, a Lituânia impediu as pessoas que chegavam ao país de forma irregular de submeterem os seus pedidos de asilo. As autoridades pareceram menosprezar os pedidos de asilo de pessoas que já os tinham apresentado anteriormente ou às quais foi excecionalmente permitido apresenta-los. Ignoraram o processo, impediram o acesso de requerentes aos procedimentos necessários e não providenciaram a interpretação adequada aos processos. E a AI denunciou que o sistema de apoio jurídico é uma fraude. Os advogados, que se espera representarem os requerentes de asilo, são contratados pelo Departamento de Migração lituano, cujas decisões os advogados deverão contestar, expondo-os ao risco de um conflito de interesses.

As autoridades lituanas declararam recentemente que deixarão de procurar prolongar a detenção para lá do limite atual de 12 meses, mas não especificaram como vão reparar as violações que cometeram no último ano. Tal reparação é necessária, pois as suas ações violaram tanto o direito internacional como o da UE. Todavia, nos últimos meses, esta permitiu o desenvolvimento de um sistema parcial. Enquanto os cidadãos ucranianos recebem proteção da UE e são tratados com a compaixão que merecem, as pessoas em fuga de outros países são presas e enfrentam inúmeras barreiras num sistema manchado pelo racismo e por outras formas de discriminação. Porém, enquanto a Lituânia tentava ‘legalizar’ as expulsões do país, a detenção e a negação de asilo através da sua legislação, Comissão Europeia variou entre o elogio e o apoio tácito.

A Comissão disse que as expulsões são claramente ilegais, mas sugeriu que não há provas concretas de acontecerem. Porém, o relatório da AI, apresenta mais do que provas concretas, tal como fizeram outras organizações internacionais e grupos locais em 2021. E a Comissão Europeia não atuou perante as infrações da Lituânia, cuja legislação, políticas e práticas violaram, de forma flagrante, o direito internacional e o direito europeu. Entretanto, a Agência Europeia da Guarda de Fronteiras e Costeira (Frontex) a ajudar os polícias sobretudo, no controlo da fronteira e noutras ações que podem contribuir para violações de direitos humanos.

O acolhimento de refugiados ucranianos é exceção absoluta e nunca vista desde a Segunda Guerra Mundial. Nenhuma fuga maciça da população de um país teve tal acolhimento pela generalidade dos países europeus. A Europa respondeu a esta crise a uma só voz, o que não sucedeu em 2015, embora se compreenda que, na Lituânia, com menos de três milhões de habitantes, milhares de pessoas a entrar de repente, provenientes de culturas que dificultam a integração, crie enorme impacto. Porém, é de questionar porque são uns acolhidos e outros cuspidos e escorraçados, quando a fome e a miséria não olham à condição étnica. E é de questionar a fraqueza da UE contra as ilegalidades denunciadas, quando é birrenta, prolixa e meticulosa em emitir diretivas para os Estados-membros e a analisar orçamentos nacionais. As pessoas acima de tudo!
Não é o muro que separa México e Estados Unidos. É na pacífica (?) e progressiva Europa.  

2022.09.01 – Louro de Carvalho

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