sexta-feira, 23 de setembro de 2022

A Constituição de 1822 marca o início do Portugal Moderno

 

No dia em que se assinalaram os 200 anos da aprovação da primeira Constituição portuguesa, a Assembleia da República reuniu em Sessão Solene, em que intervieram o Presidente da República, o Presidente da Assembleia da República, os Representantes dos Grupos Parlamentares e os Deputados Únicos Representantes de Partido. Após a Sessão, foi inaugurada a exposição “A Primeira Constituição de Portugal – 1822”, na Sala dos Passos Perdidos.

Por sua vez, a Universidade de Coimbra organizou, nos dias 22 e 23 de setembro, o Congresso Internacional “A Revolução de 1820 e a Constituição de 1822: 200 Anos do Liberalismo e do Constitucionalismo em Portugal”.

Para se fazer ideia da premência histórica e da diversidade temática, vejam-se os títulos das comunicações nas sessões plenárias, constantes do respetivo programa: “Le Constitutionnalisme à la Française: Permanence et Continuité de la Révolution à la 5ème République” (O Constitucionalismo à Francesa: Permanência e Continuidade da Revolução na V República); “La Constitución Española de 1812: Entre Liberalismo y Tradición” (A Constituição Espanhola de 1812: Entre Liberalismo e Tradição); “O Estertor de um “vulcão que já não lança chamas”. Um Ex-Estudante de Coimbra nas Cortes Gerais de 1821 e o Fim da Inquisição em Portugal”; “Representação Política e Opinião Pública: A Norma Constitucional e a Campanha para a Reeleição dos Deputados às Cortes de 1822”; “O Poder Judicial e o Liberalismo Oitocentista”; “À procura das Revoluções Perdidas”; Modelos de Constitucionalismo e Modelos de Estado no Século XIX; “O Brasil como Questão Política e Organizativa nas Cortes Constitucionais de 1821-1822”; “O Constitucionalismo de D. Pedro no Brasil e em Portugal”; “O Liberalismo e a Independência do Brasil”; “A Ordem Constitucional entre a Garantia de Direitos e a Afirmação de Deveres”; e “The Destiny of Liberal Constitutionalism in German History” (O Destino do Constitucionalismo Liberal na História Alemã).

Na verdade, a revolução antiabsolutista ou liberal estabeleceu, no primeiro manifesto de 24 de agosto de 1820, no Porto, os seguintes objetivos: “As Cortes e por elas a Constituição!”

As Cortes constituintes foram eleitas em dezembro de 1820 e começaram os seus trabalhos em 26 de janeiro do ano seguinte (1821). Depois, a 23 de setembro de 1823, foi aprovada a Constituição Portuguesa de 1822, o mais antigo texto constitucional português, que assinala a tentativa de pôr fim ao absolutismo régio e inaugurar, em Portugal, a monarquia constitucional, democrática pelo facto de dividir os poderes segundo o sistema de contrapesos, de provocar o escrutínio do exercício dos poderes e de legitimar a formação do órgão ou órgãos do poder executivo pelo sufrágio eleitoral. Apesar de vigente só durante dois efémeros períodos – entre 1822 e 1823; e entre 1836 e 1838 –, a Constituição de 1822 (influenciada pelas constituições de Inglaterra – não escrita, sobretudo a experiência da Revolução de 1688 –, dos Estados Unidos da América e de França) foi um marco fundamental para a história da democracia portuguesa.  

Os trabalhos das Cortes Gerais Extraordinárias e Constituintes da Nação Portuguesa (1821-1822), eleitas pela Nação, foram a primeira experiência parlamentar em Portugal, na sequência da revolução de 1820. As Cortes Constituintes, cuja missão principal era elaborar a Constituição, iniciaram as sessões a 26 de janeiro de  1821, como foi apontado acima, e, aprovado que foi o texto constitucional, a 23 de setembro de 1822, deram os trabalhos por encerrados após o juramento solene da Constituição pelo rei D. João VI de Portugal em outubro de 1822, juramento que foi recusado pela rainha Carlota Joaquina e por figuras contrarrevolucionárias de grande nomeada, como o Cardeal Patriarca de Lisboa, Carlos da Cunha e Menezes.

Era efetivamente revolucionário, ao tempo, estabelecer-se que “a liberdade consiste em não serem obrigados a fazer o que a lei não manda, nem a deixar de fazer o que ela não proíbe” (artigo 2.º); que “as Cortes nomearão um Tribunal Especial, para proteger a liberdade da Imprensa, e coibir os delitos resultantes do seu abuso” (artigo 8.º); que “a lei é igual para todos” (artigo 9.º); que “nenhuma lei, e muito menos a penal, será estabelecida sem absoluta necessidade” (artigo 10.º); que “todos os Portugueses podem ser admitidos aos cargos públicos, sem outra distinção que não seja a dos seus talentos e das suas virtudes” (artigo 12.º); e, sobretudo, que “a autoridade do Rei provém da Nação, e é indivisível e inalienável” (artigo 121.º) (Na conceção antiga, o poder vinha diretamente de Deus para o Rei e, com exceção dos regimes absolutistas, era repartível por senhores que o Rei compensava pelos seus serviços na conquista ou no incremento do território).

Definida como bastante progressista para, a nossa Constituição liberal inspirou-se, numa ampla parte, no modelo da Constituição Espanhola de Cádis, de 1812, e no das constituições francesas de 1791 e de 1795 (além da americana e da inglesa, não escrita), sendo deveras marcante pelo espírito liberal e pela ab-rogação de inúmeros velhos privilégios feudais, típicos do absolutismo.

Organizada em seis títulos e 240 artigos, tinha como princípios fundamentais: a consagração dos direitos e deveres individuais de todos os cidadãos (com primazia aos direitos humanos, nomeadamente, a liberdade, a igualdade perante a lei, a segurança, e a propriedade); a consagração da Nação, enquanto união de todos os Portugueses, como base da soberania, a ser exercida pelos seus representantes legalmente eleitos, isto é, pelas Cortes, nas quais residia a soberania de iure et de facto, visto que os seus membros tinham a legitimidade do voto dos cidadãos; a definição do território da Nação, que formava o Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves, abrangendo o Reino de Portugal (Continente e Ilhas Adjacentes), o Reino do Brasil e os territórios ultramarinos na África e na Ásia; o não reconhecimento de qualquer prerrogativa ao clero e à nobreza; a independência dos três poderes políticos separados (como preconizava Montesquieu) – o legislativo, o executivo e o judicial –, contrariando os princípios básicos do absolutismo, em que o poder estava todo concentrado no rei; a existência de Cortes eleitas pela Nação, responsáveis pela atividade legislativa do país; a supremacia do poder legislativo das Cortes sobre os demais poderes; a emanação da autoridade régia a partir da Nação; a existência, como forma de governo, da monarquia Constitucional com os poderes do Rei reduzidos; a União Real com o Reino do Brasil; a ausência de liberdade religiosa: a Religião Católica era a única religião da Nação Portuguesa (ver artigo 126.º), a ponto de o texto constitucional usar, no frontispício, a expressão católica “Em Nome da Santíssima e Indivisível Trindade”.

Por outro lado, a motivação dos Constituintes é clara: estavam convictos de que “as desgraças públicas, que tanto a têm oprimido e ainda oprimem, tiveram a sua origem no desprezo dos direitos do cidadão, e no esquecimento das leis fundamentais da Monarquia”; e consideraram que, só “pelo restabelecimento destas leis, ampliadas e reformadas, pode conseguir-se a prosperidade da mesma Nação, e precaver-se que ela não torne a cair no abismo, de que a salvou a heroica virtude de seus filhos”. Por isso, decretaram a Constituição Política, “a fim de assegurar os direitos de cada um, e o bem geral de todos os Portugueses” (verbo texto preambular).

Nos termos da Constituição, o poder legislativo passou para as Cortes, assembleia unicameral que elaborava as leis e cujos deputados eram eleitos de dois em dois anos pela Nação. E este poder tem preponderância sobre o executivo – caraterística dos regimes demoliberais progressistas, por oposição às Cartas Constitucionais, de cariz aristocrático, outorgadas pelo rei. Tivemos a Carta Constitucional outorgada por D. Pedro IV, que juntava o poder moderador, a cargo do soberano.

O Rei era o detentor do poder executivo, competindo-lhe a chefia do Governo, a execução das leis e a nomeação e demissão dos funcionários do Estado. Contudo, o Rei tinha veto suspensivo sobre as Cortes, podendo suspender a promulgação das leis de que discordava, mas sendo obrigado a promulgá-las, desde que as Cortes as confirmassem. Não lhe era reconhecido o poder de suspender ou de dissolver as Cortes. Em ocasiões especiais, era aconselhado pelo Conselho de Estado, cujos membros eram eleitos pelas Cortes, e coadjuvado pelos secretários de Estado, diretamente responsáveis pelos atos do Governo. Apesar de tudo, a pessoa do rei era inviolável.

O poder judicial  pertencia, exclusivamente, aos juízes, que o exerciam nos Tribunais.

Quanto ao colégio eleitoral, segundo o artigo 34.º da Constituição, podiam votar, para eleger os representantes da Nação (deputados), os varões maiores de 25 anos que soubessem ler e escrever. Eram excluídos de votar as mulheres, os analfabetos, os frades e os criados de servir, entre outros.

Com a aprovação desta Constituição tem início monarquia constitucional, mas o processo da sua consolidação viria a ser difícil e demorado. A temeridade das suas disposições impulsionou uma reação exacerbada das fações conservadoras, que logo viriam a pôr fim à sua vigência. Com efeito, a Constituição de 1822 esteve vigente em apenas dois efémeros períodos: entre 23 de setembro de 1822, altura em que foi aprovada, e 3 de junho de 1823, quando D. João VI a suspendeu devido à Vilafrancada (insurreição liderada pelo Infante D. Miguel, em Vila Franca de Xira, a 27 de maio de 1823), com a promessa, não cumprida, de a substituir por outra; e entre 10 de setembro de 1836, quando ocorreu a Revolução de Setembro, e 20 de março de 1838, momento em que foi aprovada a Constituição de 1838. De facto, segundo alguns analistas, foram dois dos períodos mais fecundos em produção legislativa destinada a acabar com o Portugal Velho a que se referiram, entre outros, os historiadores Alexandre Herculano e Oliveira Martins.

E, como diz Guilherme d’ Oliveira Martins (presidente da Comissão das Comemorações), apesar dos seus defeitos (voto censitário e exclusão de muitos cidadãos), a Constituição de 1822 é um farol de cariz republicano, sem anular ou desprestigiar a figura do rei. Muitas das suas disposições são irreversíveis e os portugueses passaram, em definitivo, de súbditos e a cidadãos.

2022.09.23 – Louro de Carvalho

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