segunda-feira, 19 de setembro de 2022

Mundo regrediu 5 anos com covid-19 e guerra pode adensar o cenário

 

O Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) lançou, a 8 de setembro, o Relatório de Desenvolvimento Humano “Tempos incertos, vidas instáveis: Construir o futuro num mundo em transformação”. O documento aponta que, pela primeira vez em 32 anos de cálculo do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), que mede a saúde, a educação e o padrão de vida de uma nação, cai globalmente em dois anos consecutivos, regressando ao nível de 2016 e revertendo boa parte do progresso para os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS). 

É uma reversão generalizada, visto que mais de 90% dos países decaíram na pontuação do IDH em 2020 ou em 2021 e mais de 40% caíram nos últimos dois anos, sinalizando que a crise se está a aprofundar em muitos deles, não se sabendo os efeitos da guerra na Ucrânia, que já provocou, além dos danos diretos, vários danos colaterais a nível global.   

Como alerta o PNUD, o mundo está a enfrentar crises, umas atrás das outras, preso num ciclo de apagamento de “incêndios” e incapaz de enfrentar “as raízes dos problemas”, pelo que, sem uma radical mudança de rumo, pode estar a caminhar para uma espiral de privações e de injustiças.  

O relatório revela que várias camadas de incerteza estão a acumular-se e a interagir para, de forma inédita, desequilibrarem a vida. Com efeito, os últimos dois anos tiveram devastador impacto para biliões de pessoas em todo o planeta, quando crises como a da covid-19 e a da guerra na Ucrânia se sucederam e interagiram com amplas transformações sociais e económicas, com mudanças planetárias perigosas e com o aumento acentuado da polarização.

Embora alguns países comecem a levantar-se, a recuperação é desigual e parcial, engrossando ainda mais as desigualdades no desenvolvimento humano. Os mais duramente atingidos são, em particular, a América Latina, a África Subsariana e o Sul da Ásia. No entanto, consideram-se na base o Sudão do Sul, a República Centro-Africana, o Chade, o Níger e o Burundi. Ao mesmo tempo, Suíça, Noruega, Islândia, Hong Kong, Austrália, Dinamarca, Suécia, Irlanda, Alemanha e Holanda ocupam os 10 primeiros lugares o IDH, enquanto a Espanha se fica pelo 27.º lugar.

Por isso, Achim Steiner, administrador mundial do PNUD, apelou à solidariedade internacional para se continuarem os progressos num mundo que “tenta desesperadamente responder a crises sucessivas” e advertiu contra o risco de se pensar apenas a curto prazo. E, reconhecendo que, em tempos de inflação ou de crise energética, pode ser “tentador” delinear soluções rápidas como subsidiar os combustíveis fósseis e assumir outras táticas de alívio imediato, sustentou que isso desdiz as “mudanças sistémicas” de que o mundo precisa a longo prazo.

Como estamos “coletivamente paralisados” rumo a essas mudanças sistémicas, Achim Steiner sustenta que, num mundo marcado pela incerteza, “precisamos de um sentido renovado de solidariedade global para enfrentarmos os nossos desafios comuns e [precisamos de estar] interconectados”. Por outro lado, declarou que “temos uma estreita janela de oportunidade para reiniciar os nossos sistemas e construir um futuro com ação decisiva sobre as alterações climáticas e a criação de novas oportunidades para todas as pessoas”.

Entre os óbices à mudança necessária, sobressaem a insegurança e a polarização (uma alimenta a outra), a impedir a solidariedade e a ação coletiva necessárias para enfrentar as crises a todos os níveis, tornando-se os países mais inseguros os mais propensos a visões políticas extremistas. 

Já antes da covid-19, se viam os paradoxos do progresso com a insegurança e com a polarização. Porém, agora, com um terço das pessoas stressadas em todo o mundo e com quase dois terços de pessoas desconfiadas umas das outras, enfrentam-se grandes obstáculos à adoção de políticas que funcionem para as pessoas e para o planeta. Para administrador mundial do PNUD, esta análise visa “ajudar a romper esse impasse e a traçar um rumo alternativo à incerteza global”, ou seja, dar-nos uma janela, ainda que estreita, para reiniciarmos os nossos sistemas e garantirmos um futuro baseado em ações climáticas decisivas e novas oportunidades para todas e [para] todos”.

Para tanto, recomenda-se a implementação de políticas com foco em investimento (das energias renováveis à preparação para pandemias) e em segurança, incluindo a proteção social, de modo a preparar a sociedade para os altos e baixos deste mundo incerto. Além disso, a inovação, nas suas formas tecnológica, económica e cultural, pode desenvolver capacidades para respondermos a quaisquer desafios que tenhamos por diante.

E Pedro Conceição, um dos autores do relatório, sustenta que, “para navegar na incerteza”, é mister “dobrar o desenvolvimento humano e olhar para lá da melhoria da riqueza ou da saúde das pessoas”, bem como “proteger o planeta e fornecer às pessoas as ferramentas necessárias para se sentirem mais seguras, recuperarem o controlo sobre as suas vidas e terem esperança no futuro”.

***

Neste panorama, os dados do Eurostat, conhecidos em 15 de setembro, revelam que 27% da população da União Europeia da (UE) estão em risco de pobreza ou de exclusão social.

Em 2021, 21,7% da população da UE estavam em risco de pobreza ou de exclusão social, uma ligeira subida face aos 21,6% de 2020. Por outro lado, das 95,4 milhões de pessoas na UE (94,8 milhões em 2020) em risco de pobreza, cerca de 5,9 milhões (1,3% do total da população da UE) viviam em agregados expostos simultaneamente aos três riscos de pobreza e de exclusão social: risco de pobreza ou a viver em agregados com intensidade laboral ‘per capita’ muito reduzida ou em situação de privação material e social severa.

Em 2021, corriam risco de pobreza na UE 73,7 milhões de pessoas; 27 milhões estavam em privação material ou social severa; e 29,3 milhões viviam em agregados de baixa intensidade laboral. A Roménia (34%), a Bulgária (32%) e a Grécia e Espanha (28% cada) foram os países com maiores taxas de pessoas em risco de pobreza ou de exclusão social em 2021. Em contraste, as menores taxas de pessoas em risco foram registadas na República Checa (11%), Eslovénia (13%) e Finlândia (14%). E, em Portugal, em 2021, havia 22,4% de pessoas em risco de pobreza ou de exclusão social (20,0% em 2020), a oitava maior taxa entre os Estados-membros e acima da média da UE (21,7%).

***

A pandemia induziu Portugal a subir de 13.º para 8.º na lista de países da UE com maior risco de pobreza ou de exclusão social, com uma subida da taxa de pobreza e de exclusão social para 21,7%, em termos médios. Só o primeiro ano da pandemia fez quase 230 mil novos pobres.

A pandemia fez subir para 2,3 milhões os portugueses em risco de pobreza ou de exclusão social, o equivalente a 22,4% da população. E os dados do Eurostat confirmam o agravamento e vão mais longe, mostrando que Portugal passou a ser o oitavo pior da UE na lista de países com maior risco de pobreza ou de exclusão social em 2021. Antes da pandemia, a nossa taxa de pobreza ou de exclusão era a 13.ª mais elevada. Agora, estamos pior, porquanto este aumento de 2,4 pontos percentuais representa o pior agravamento nas condições de vida das famílias a nível europeu.

Os dados relativos ao bloco europeu fazem perceber que, apesar da pandemia, 12 países diminuíram a taxa de pobreza. Em termos médios, a taxa de pobreza e de exclusão social subiu para 21,7% – ligeira subida face aos 21,6% do ano anterior –, afetando agora 95,4 milhões de pessoas. Nos extremos da lista estão a Roménia, que soma 34,4% da sua população em situação de pobreza ou de exclusão, e, no outro lado, a República Checa, com 10,7% da sua população ameaçada por estes problemas.

Este agravamento não devia surpreender, pois o Inquérito ao Rendimento e Condições de Vida, do Instituto Nacional de Estatística (INE), de dezembro de 2021, referente aos rendimentos do ano anterior, já mostrava que o primeiro ano da pandemia fez 228 mil novos pobres, o equivalente ao número de cidadãos do Porto. Analisadas as contas do que foi o primeiro retrato das condições de vida pós-pandemia, 18,4% dos portugueses estavam já abaixo da linha de pobreza (mais 2,2 pontos percentuais do que no ano anterior). Tratou-se do maior agravamento desde 2003, numa inversão da tendência decrescente que se vinha a registar desde 2015.

Se ao risco de pobreza se somar o da exclusão social, aumentam para 2,3 milhões os portugueses que estão mal. É de recordar que a categorização estatística rotula em risco de pobreza todos os que são obrigados a viver com menos de 554 euros líquidos por mês. Já o risco de pobreza ou de exclusão social abarca ainda os que vivem em agregados familiares com intensidade laboral per capita reduzida (que trabalham, em média, menos de 20% do tempo de trabalho disponível) ou em situação de privação material e social severa, isto é, com dificuldade em aceder a pelo menos cinco de um conjunto de 13 itens, que abarca da dificuldade em ter uma refeição de carne ou de peixe de dois em dois dias a manter a casa aquecida ou custear o acesso a roupa e a calçado.

As mulheres foram as mais prejudicadas, a par dos desempregados e das famílias monoparentais. Entre estas, duas em cada três famílias com crianças são pobres, o que traduz um agravamento em 5% da pobreza, dos anteriores 25% para 30%. Do mesmo modo, o aumento da pobreza entre as mulheres foi de 2,5 pontos percentuais (dos 16,7% de 2019 para os 19,2 por cento de 2020), acima do agravamento de 1,9 pontos percentuais entre os homens.

E não menos preocupante é o agravamento da pobreza entre os trabalhadores: entre 2019 e 2020, o número de trabalhadores pobres subiu de 9,6% para 11,2%.

O Governo não ignora a realidade, pois o seu programa, que entrou, em abril, no Parlamento, fixa o propósito de retirar 660 mil pessoas da pobreza até 2030, entre as quais 170 mil crianças e 230 mil trabalhadores, além de ter, na legislatura anterior, estabelecido o programa de erradicação da pobreza. Porém, são mecanismos que arrancam com muita dificuldade, exceto no papel.  

Ora, se não queremos cair na fossa da recessão, que Paolo Gentiloni, comissário europeu para a economia admite como possível, temos de aproveitar a janela de oportunidade referida pelo administrador mundial do PNUD e todos os agentes de mudança devem deitar mãos à obra.

2022.09.19 – Louro de Carvalho

Sem comentários:

Enviar um comentário