domingo, 11 de setembro de 2022

Se dialogamos, avançamos: os animais é que não sabem dialogar

 

No início de setembro, o Papa concedeu a Maria João Avilez uma entrevista que a TVI e a CNN Portugal transmitiram no dia 5 e em que aflora vários temas eclesiais e diplomáticos. Aqui se respinga o que parece essencial na conversa, em que sugere que se reze por ele, não contra ele.   

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Das Jornadas Mundiais da Juventude (JMJ) diz que são ideia de S. João Paulo II para relacionarem a juventude de várias regiões do mundo e tornar possível a universalização da juventude, que se sentirá apoiada e a exprimir a sua linguagem peculiar, muito criativa. E, sobre a JMJ de 2023, em Lisboa, não garante a sua vinda pessoal, mas que virá o Papa, seja Francisco, seja João XXIV.

Quanto ao modo como olha para os jovens de hoje, Bergoglio reconhece que tem se ir ao encontro da linguagem deles, a da sua cultura “progressista, que vai em frente”, ouvindo-os “no seu modo de interpretar as coisas” e respondendo-lhes de modo que entendam.

De como fazer para que a JMJ 2023 seja um momento de reconciliação para estas dificuldades que a Igreja em Portugal está a viver, aponta que “é a distância” que “acentua as dificuldades”. Se ela se encurta, há diálogo, talvez discussão, mas as pessoas acabam por se reconciliar. E admite que os adultos, pela experiência que têm da vida, se defendem mais, ao passo que os jovens são mais audazes. Portanto, há que fazer aproximação.

Questionado se a sua tranquilidade e alegria genuína dão para receber algo do diálogo com os jovens, mencionou um encontro com jovens de diversas proveniências e culturas, em que lhe colocaram dificuldades enormes. Não se preocupou tanto em responder à dificuldade, porque era como jogar pingue-pongue, mas tentou ver qual era a cultura subjacente para o colocarem perante aquelas dificuldades. Por isso, respeita a espontaneidade. O que lhe é difícil é o diálogo com os adultos, que vem eivado do duplo sentido, a linguagem diplomática, em que uma pessoa diz uma coisa, mas pensa outra. É a hipocrisia (do Grego hipo e crisis: pensar, hipo, por baixo).

Falando do valor e da importância do diálogo intergeracional, Francisco frisou que “os jovens têm de ter uma visão rumo ao futuro e uma visão do passado”. Quem olha só para o futuro fica sem sustentação. Para que a árvore dê fruto, tem de vir algo da raiz. Mas refugiar-se nela, implica renunciar ao fruto. Mas só se olha para as raízes com o diálogo com os mais velhos. Ouvindo os idosos e discutindo com eles, sentem-se com raízes.

Fátima serviu de pretexto para recordar a sua educação familiar na devoção a Maria, sob o título de Nossa Senhora Auxiliadora. Mas Fátima deixou-o “mudo”. Fátima é a Virgem do silêncio. Concorda com as muitas pessoas que dizem que “não há nenhum silêncio como o de Fátima”. É universal. Para Francisco, “Portugal é Fátima”. “Que não se zanguem os portugueses” – pede.

No atinente ao modo de rezar, o Papa confessa que não o alterou, admite que o tenha aprofundado. Reza o terço; reza com a Bíblia e medita; e reza o ofício litúrgico todos os dias. Coloca-se diante de Deus e às vezes distrai-se, mas Ele não Se distrai. “Rezar é estar na presença de Deus e deixar que Ele fale. Não rezar sem liberdade. E cada um tem de rezar como o Espírito Santo o inspira.”

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Sabendo que “uma parte do mundo está hoje zangada com a Igreja”, admite que podia responder de forma elegante “que a Igreja está a sofrer” e outras coisas. Porém, quis ser claro: “o abuso de homens e mulheres da Igreja – abuso de autoridade, abuso de poder e abuso sexual – é uma monstruosidade, porque o homem ou mulher da Igreja – padre, religioso ou religiosa ou leigo ou leiga – foi chamado a servir e a criar unidade, a contribuir para o crescimento, e o abuso destrói”.

Concorda que “a diferença é que agora se sabe”. Mas aponta: “o que não se sabe, porque ainda se esconde, é o abuso no seio da família”, pois 42% ou 46% dos abusos ocorrem na família ou no bairro. Depois, há as percentagens nas escolas, no desporto, nos campos de desportos, nos clubes. Com homens e mulheres da Igreja ocorrem 3% dos abusos. Não se diga que é pouco, pois, ainda que fosse um só era uma monstruosidade. Infelizmente, a cultura do abuso está muito disseminada. E o Papa acusa os filmes pornográficos, em que se filmam abusos de menores, e os serviços de alguns telefones que permitem que se entre em serviços sexuais, alguns de abuso de menores, outros de outras coisas, ou seja, a nossa cultura é abusadora. Por isso, ao falar de abuso, é preciso ter visão de conjunto, procurar que não se escondam as coisas e não ter em conta só as percentagens. Depois, o Pontífice nega a relação do celibato com o abuso sexual, pois, nas famílias, não há celibato e também ocorre. Não obstante, conclui que um sacerdote não pode continuar sacerdote, se é abusador, porque é doente (provavelmente) ou criminoso. O sacerdote existe para encaminhar os homens para Deus e não para destruir os homens em nome de Deus.

Sobre a necessidade da carta apostólica dedicada à liturgia e à formação litúrgica, revela que se confrontou com uma situação de crise, de formação litúrgica deficiente e da falta de piedade na celebração da missa, que alguns celebram sem gosto. Ora, “a liturgia é a grande obra da Igreja”, obra de adoração e louvor. Assim, “Igreja que não celebre bem a liturgia é uma igreja que não sabe louvar a Deus, que não sabe viver. 

Da inclusão de três mulheres no dicastério dos bispos, o Papa diz que “os homens e as mulheres são batizados” e que a igreja é feminina (é a esposa de Cristo). Dizer que é “a igreja” e não “o igreja” não colhe. Concílio (concilium) era neutro e Povo (populus ou démos) é masculino (E Igreja é o Povo de Deus). Seja como for, no povo e nas suas assembleias, há mulheres e homens. Por isso, faltando mulheres na administração da Igreja (agora há várias), cometia-se injustiça, fuga a um direito, provocada pela cultura. Não é, pois, moda feminista, é um ato de justiça que culturalmente tinha sido posto de lado. Por outro lado, no seu instinto materno, a mulher tem uma peculiar forma de sentir e de administrar e é mais vinculada ao sangue dos filhos, que “é sangue do seu sangue”. Por isso, é capaz de levar por diante “a qualidade de Deus que é a ternura”. 

Entre as mulheres bíblicas que o inspiram, o Papa destaca Judite, mulher corajosa, que defende o seu povo; e Maria, a Virgem, que é a mulher, a feminina por antonomásia, em que se “encontra força, serviço… feminilidade”.

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E, sobre o humor que o peculiariza, assinala que, há mais de 40 anos, reza a oração de S. Tomás Moro a pedir o sentido de humor: “Dá-me, Senhor, uma boa digestão e também algo para digerir”. Copiou-a para a exortação apostólica Exsultate, Jubilate (erro de memória ou de transcrição, pois o título é: Gaudete et exsultate). E diz que Mozart tem um “Exsultate, Jubilate” maravilhoso.

Falando do caminho sinodal em curso, refere que, ao terminar o Concílio, Paulo VI se apercebeu de que a Igreja latina perdera a dimensão sinodal, quando as Igrejas orientais têm sínodos. Portanto, criou a Secretaria-Geral do Sínodo dos Bispos para que se fossem habituando. E, quando se cumpriram 50 anos desde a criação, Francisco explicou, num discurso. “o que se tinha dado e os fundamentos teológicos da sinodalidade”. Depois, fez-se consulta a todos os bispos sobre o tema do próximo Sínodo. Surgiram dois temas-chave: os sacerdotes ou a sinodalidade. Escolheu a sinodalidade para encerrar a catequese da sinodalidade. E contrapõe à ideia parlamentar de sínodo a dinâmica de assembleia que ouve o Espírito Santo. Cada um diz o que sente ou pensa e, depois, juntos procuram a harmonia do Espírito Santo. No caminho sinodal está a diversidade, o que cada um vai dizendo, mas é o Espírito que gera a harmonia. Temos, pois, de ter a atitude sinodal de discernimento. E é o que a Igreja, graças a S. Paulo VI, tem vindo a aprender.

Das divergências na Igreja, verifica, sem drama, que, “em todos os processos, há os que estão bem no processo, os que vão mais à frente, os que vão mais atrás”, sendo de deixar que os processos acabem. E, no amadurecimento, há quem não ache bem, esperam, estão mais atrasados. É a teologia do caminho: uns vão à frente a correr e outros para atrás. E o que tem a função de pastor, o bispo, tem de se saber mover entre o povo de Deus, tem de estar com os que estão mais à frente, tem de estar no meio e tem de estar atrás. Pastor só num sítio não serve.

Sobre a inspiração do ortodoxo Bartolomeu na “Laudato si” e do grande imã Ahmad Al-Tayyeb na “Fratelli tutti”, diz que a fé se fortalece e expande no diálogo inter-religioso, porque este não consiste em criar equilíbrios, mas ver como nos vamos pôr de acordo. É ouvir, ver e argumentar, mas caminhar em conjunto como pessoas. É preciso dialogar. Ao dialogar, nunca se perde.

Questionado sobre o que é possível dizer aos presidentes Putin e Zelensky, pois anunciou que gostaria de ir a Kiev e a Moscovo, diz que não sabe: já dialogou com os dois, que o vieram visitar. E sempre acredita que, “se dialogarmos, conseguimos avançar”. Só os animais é que não sabem dialogar, que são puro instinto. E o diálogo é deixar de lado o instinto e ouvir. O diálogo é difícil. Mas começa na família. Se nela não se dialoga e há só gritos e discussões, as crianças não aprendem a dialogar. A ida a Kiev ou a Moscovo “está no ar”. O Papa está a dialogar com eles. Mas a Kiev foram três careais em representação do Pontífice. Um deles foi três vezes e esteve lá toda a Semana Santa. E foi o subsecretário de Estado, o encarregado das Relações Internacionais. Agora, o Papa não pode ir, porque, após a viagem ao Canadá, a recuperação do joelho ressentiu-se e o médico proibiu-o de viajar até ao Cazaquistão. Mas tem mantido contacto por telefone. 

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Transformou a residência de Castel Gandolfo em museu, pois havia muitas coisas no Museu do Vaticano, que não tinham espaço para serem expostas. Porém, há sítios para onde ir, se quiser, porque há mais dois locais. Passa as férias a ler, ouvir música, rezar mais um pouco. Gosta muito de ópera, sobretudo de Wagner. Quando não está em férias, gosta de se organizar. Levanta-se cedo, às quatro da manhã, mas, às 22, já dorme. E acorda sem querer. Às quatro, faz as orações. Às vezes, celebra a missa a essa hora ou quando não tem mais tarde. Depois, começa o trabalho. Deita-se às nove da noite e, às dez, apaga a luz.

A força com que crê na vitória do Bem sobre o Mal ou a raiz da sua fé está em Jesus Cristo, Senhor da História. As coisas más que ocorrem agora aconteceram noutras épocas de outro modo. O trigo e o joio estão juntos. Cada época teve o seu Bem e o seu Mal e há coisas muito boas, hoje.

Desafiado a deixar uma palavra que ponha luz e reconciliação no caminho da Igreja em Portugal, que vive um momento difícil, até às JMJ, manda olhar para a janela e ver se cada vida tem uma janela aberta. Se não tiverem, abram-na quanto antes, sem vistas curtas. Face a um problema, é de considerar que “estamos a caminhar  para o futuro, que há um caminho”, para o qual é preciso olhar. Enfim, o conselho que dá é: “Abram a janela. Vejam além do nariz, além. Olhem, abram, olhem para o horizonte. E alarguem o coração.”

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Palavras de um reformista de 85 anos, sem papas na língua, com linguagem que todos entendem. Dá conta das suas dúvidas existenciais e da sua sabedoria do essencial, anelando por um sucessor que gere na Igreja novo aggiornamento (é premonitória a referência a um João XXIV).

2022.09.11 – Louro de Carvalho

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