quinta-feira, 22 de setembro de 2022

Toda a ambição político-estratégica sobre o alheio quer ter razão

 
Num momento em que as forças armadas russas sentem dificuldades na guerra na Ucrânia, com os ucranianos a recuperar alguns dos territórios perdidos, Vladimir Putin eleva a fasquia e, num discurso a 21 de setembro – dia em que o presidente Joe Biden, discursou na 77.ª Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU), em Nova Iorque, e em que estava prevista a intervenção, por videoconferência, do presidente ucraniano, como indica a programação da ONU –, anunciou a “mobilização parcial” cerca de três centenas de militares na reserva e o aumento de fabrico de armamento e ameaçou utilizar todos os meios que a Rússia tem à disposição e que são “mais poderosos” do que os da Organização do Tratado do Atlântico Norte (NATO).
O poder dos meios disponíveis (serão todos utilizados, se necessário) foi invocado na alegação putiniana de que o Ocidente tem ameaçado atacar a Rússia com armas nucleares e de destruição maciça, pois, segundo o presidente russo, “o objetivo do Ocidente é enfraquecer, dividir e destruir a Rússia” através da supressão dos “centros de desenvolvimento soberanos e independentes” no mundo. Com efeito, os ocidentais dizem que, em 1991, desmembraram “a União Soviética e que agora chegou a vez da Rússia”.
Por isso, Putin seguiu a sugestão do Ministério da Defesa para mobilização parcial de militares na reserva”, que “terão treino para reforçar a operação militar” na Ucrânia, estando já assinado o respetivo decreto assinado, pelo que a mobilização começará de imediato.
O presidente russo acusou o Ocidente de querer para campo de batalha o território russo e que há regiões na “fronteira que estão a ser bombardeadas”, tal como frisou que há ucranianos feitos reféns pelo governo de Kiev e que a “política de terror das forças ucranianas é “cada vez maior”, pois “atacam hospitais e escolas”, pelo que o Kremlin não deixará de apoiar as pessoas.
Confirmou que há referendos nas repúblicas cuja independência reconhecera, antes da invasão de 24 de fevereiro, ou seja, nas regiões separatistas, e garantiu que o Kremlin fará de tudo para “garantir a segurança” nesses referendos e que as forças armadas russas estão numa linha da frente de 5000 km para garantir a segurança do seu povo.
Sobre as negociações de paz, disse que a “Ucrânia gostou” das propostas russas em Ancara, mas que o Ocidente “obrigou a Ucrânia a recusá-las”. E recordou que a guerra começou em 2014, ao cometeram um genocídio dando à Ucrânia um regime ditatorial.
O discurso do líder russo à nação surge também quando os líderes separatistas avançaram com referendos na região do Donbass, de 22 a 27 de setembro, nos territórios ocupados pelas forças pró-russas para decidirem sobre a anexação. Na verdade, as câmaras públicas das Repúblicas Populares de Lugansk e de Donetsk apelaram aos líderes das duas províncias separatistas a que realizassem imediatamente referendos sobre a adesão à Rússia, após o qual a região de Kherson e, depois, Zaporijia se lhe juntaram no dia 20. E, respondendo aos apelos das autoridades pró-russas no Donbass, os representantes de um órgão consultivo pró-russo na região de Zaporijia, parcialmente controlada pela Rússia, se juntaram aos colegas de Lugansk, Donetsk e Kherson, para a realização imediata de referendo sobre a adesão. Porém, a comunidade internacional condenou tais decisões, julgando ilegítimos os referendos, pelo que não reconhecerá as anexações.
 
Logo que Putin terminou a sua muito aguardada comunicação choveram as reações. 
“Um passo previsível que se revelará extremamente impopular” e um sinal de que a guerra está a correr mal à Rússia – foi assim que a Ucrânia viu o anúncio de mobilização parcial. Mykhailo Podolyak, conselheiro do presidente ucraniano Volodymyr Zelensky, disse que o presidente russo quer transferir para o Ocidente a culpa pelo início da “guerra não provocada” e pelo agravamento da situação económica da Rússia.
Por sua vez, Robert Habeck, vice-chanceler alemão, tem a mobilização parcial por nova escalada do conflito na Ucrânia. Por isso, o governo de Berlim está a considerar a sua resposta, aduzindo que este foi “mais um passo mau e errado da Rússia”.
“Escalada” também foi o termo escolhido por Gillian Keegan, deputada do Partido Conservador (no governo) que foi apontada como representante para os Negócios Estrangeiros do parlamento do Reino Unido: “A declaração de Putin é obviamente uma escalada, uma preocupante escalada” na guerra – declarou em reação ao discurso em que Putin anunciou a mobilização parcial e ameaçou utilizar o seu arsenal nuclear. E vincou: “Devemos levar as ameaças de Putin a sério, porque nós não estamos a controlar [as armas nucleares]. Também não tenho a certeza se ele está no controlo.” E Ben Wallace, ministro da Defesa britânico, frisou que Putin quebrou a promessa de “não mobilizar”, o que, para o Reino Unido, é assumir “que a invasão está a falhar”, estando a Ucrânia a vencer esta guerra e a Rússia a tornar-se um pária internacional. Segundo o ministro, que vê a comunidade internacional unida, a Rússia mandou milhares de cidadãos para a morte, “mal equipados”; e o Reino Unido é um dos países ocidentais que mais se tem empenhado no apoio à Ucrânia, fornecendo equipamento, munições e treino aos militares de Kiev.
A embaixadora dos Estados Unidos da América (EUA) na Ucrânia, Bridget Brink, pontuou o discurso: “Os referendos fraudulentos e a mobilização são sinais de fraqueza.” Por isso, os EUA não reconhecerão a reivindicação da Rússia sobre esses territórios ucranianos e continuarão a estar com a Ucrânia “pelo tempo que for necessário”.
Pekka Toveri, major-general do exército finlandês na reserva, que foi, até 2020, chefe dos serviços de informações militares da Finlândia, questionado sobre se a mobilização parcial trará um número decisivo de militares  para a linha da frente nos próximos 6 a 12 meses, respondeu: “Não”.
Por outro lado, a garantia de Putin de que só os reservistas – os que têm experiência militar – serão mobilizados não corresponde à letra do decreto presidencial. Yekaterina Shulman, analista política russa, garante que o decreto não especifica parâmetros (nem territoriais nem sobre categorias de indivíduos), pelo que qualquer pessoa pode ser mobilizada, exceto os trabalhadores do complexo militar-industrial, que têm prolongamento do seu período de trabalho. E Anders Åslund, economista sueco, escreveu no Twitter que, “como estratega falhado que é, Putin está a acelerar o colapso do seu regime, apelando a uma mobilização parcial”.
Por seu turno, o Ministério das Relações Exteriores da China pediu que todas as partes se empenhem no diálogo e na procura de um modo de abordar as preocupações de segurança de todas as partes depois daquilo que considerou como “chantagem nuclear” da parte de Putin. “A posição da China sobre a Ucrânia é consistente e clara”, afirmou o porta-voz do Ministério das Relações Exteriores da China, Wang Wenbin, em conferência de imprensa
O primeiro-ministro português, António Costa, classificou o discurso de Putin de “desilusão”.  
A União Europeia (UE) promete reforçar as sanções à Rússia, que agravarão, mais uma vez, as condições de vida dos seus cidadãos, e diz que enviará mais armas para Kiev.
Entretanto, enquanto milhares de cidadãos são detidos na Rússia por gritarem contra a guerra, muitos milhares estão a abandonar o país rumo ao Ocidente, tal como muitos pró-russos o estão a fazer a partir do Donbass e da Crimeia.
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O presidente dos EUA, no seu discurso na 77.ª Assembleia-Geral da ONU, acusou a Rússia de violar a Carta das Nações Unidas: “Um membro permanente do Conselho de Segurança das Nações Unidas invadiu o seu vizinho, tentando apagar um Estado soberano do mapa.”
E, censurando Putin de ter voltado a “fazer ameaças nucleares contra a Europa, num desrespeito imenso pelas responsabilidades de um regime”, Joe Biden criticou a decisão russa de chamar mais soldados para o terreno e de realizar referendos para tentar anexar partes desse país vizinho: “O mundo deve ver estes atos escandalosos por aquilo que são: Putin diz ter agido porque a Rússia foi ameaçada; mas ninguém ameaçou a Rússia e ninguém para além da Rússia procurou um conflito.” Para o presidente norte-americano, “esta guerra tem como objetivo extinguir o direito da Ucrânia de existir como um Estado e como povo”, pelo que se justifica o apoio financeiro e material dos Estados Unidos e de vários outros países a Kiev.
Considerando que há uma batalha entre democracia e autocracia, o líder norte-americano disse acreditar que “a democracia continua a ser o maior instrumento para responder aos desafios que enfrentamos”, estando a trabalhar com o grupo G7 para o provar. E acusou a Rússia de espalhar mentiras, culpando da crise alimentar as nações que lhe impuseram sanções, quando as sanções permitiram explicitamente “que a Rússia exporte comida e fertilizantes, sem limitações”.
Por fim, o líder americano garantiu que os EUA continuarão a lutar pelas negociações de paz entre Israel e Palestina, defendendo uma solução de dois Estados para “assegurar a segurança e dar aos palestinianos o Estado a que têm direito”. Apelou a que todas as nações renovem os esforços diplomáticos contra a proliferação nuclear. Condenou a Rússia pelas ameaças nucleares, bem como a China, a Coreia e o Irão, que acusou de violarem as sanções da ONU. Garantiu não permitir que o Irão adquira uma arma nuclear. E disse acreditar que “a diplomacia é a melhor forma de conseguirmos esse resultado”.
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Entretanto, enquanto Putin desmente Biden, julgando infeliz o seu discurso, a administração norte-americana antevê o apoio explícito, no local, com militares e armas, a Taiwan contra a República Popular da China, quando, na Ucrânia, o apoio é limitado a armas e a mercenários.
Os líderes brincam à guerra com pessoas, com maquinaria sofisticada e com armas último modelo, sustentados, ao invés dos miúdos que brincam à consola, em razões geoestratégicas, históricas, culturais, políticas e religiosas – tudo a satisfazer a ambição expansionista ou os mais apetecíveis negócios, contra tudo e contra todos. Depois, deixam o terreno e as pessoas. E que é feito da paz?

2022.09.22 – Louro de Carvalho


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