terça-feira, 13 de setembro de 2022

Contraofensiva vitoriosa da Ucrânia não passa de consolo e de ilusão

 

É verdade que as tropas russas, no âmbito da denominada operação militar especial na Ucrânia retiraram de alguns lugares considerados importantes na estratégia do invasor, que as tropas ucranianas recuperaram grande parte do território da região de Kharkiv e que o regime do Kremlin é objeto de alguns importantes focos de contestação.

Na verdade, o presidente ucraniano afirmou, a 12 de setembro, que os seus militares “libertaram e assumiram o controlo de mais de 30 povoações na região de Kharkiv”, totalizando já 3000 km2 de território recuperado no nordeste nos últimos 10 dias, e que tinha reconquistado a estratégica cidade oriental de Izium às forças russas, no âmbito de uma contraofensiva.

É também do conhecimento público que um grupo de 18 deputados municipais russos – dos distritos de São Petersburgo (em que se inclui o município de Smolninskoye, cidade natal de Putin) e de Moscovo – entregou, no passado dia 8, na Câmara de Deputados (Duma), uma petição para que acuse de alta traição o Presidente Vladimir Putin, por ter iniciado uma guerra na Ucrânia, o que indicia o “crime previsto no artigo 73.º da Constituição da Federação Russa, alta traição” e “prejudica a segurança da Rússia e dos seus cidadãos”.

Para o diário digital Meduza, o objetivo da petição, atualmente já assinada por 35 autarcas, é que Putin seja deposto da liderança, aonde chegou em 2000 e em que, nos termos da revisão constitucional que promoveu para retirar o limite de mandatos presidenciais consecutivos, pode ficar até 2036, quando completará 84 anos. Segundo a petição, desde o início das hostilidades morrem cidadãos russos, a economia degradou-se e regista-se uma fuga de investidores e de cérebros do país. A par disso, alargar-se-á a NATO (Organização do Tratado do Atlântico Norte) a leste e a decisão do presidente levou a fronteira entre a Rússia e a Aliança Atlântica a duplicar de tamanho, com a entrada da Finlândia e da Suécia.

Por outro lado, a intervenção militar russa provocou o efeito contrário à desmilitarização do país vizinho – objetivo apresentado por Putin –, com o fornecimento ocidental à Ucrânia de armamento no valor de 38 mil milhões de dólares (38.120 milhões de euros).

A 7 de setembro, no Fórum Económico Oriental, em Vladivostok, Putin negou ter sido a Rússia a iniciar as operações militares na Ucrânia e a violar o direito internacional, invadindo um Estado independente e soberano. E, segundo uma sondagem recém-divulgada, 70% dos russos apoiam a campanha militar, a que se opõe 18%.

Esta petição culmina a onda de contestação que vem engrossando: Dmitry Palyuga, deputado municipal em Smolninskoye introduziu a resolução que pede à Duma que acuse judicialmente Putin de traição pela invasão da Ucrânia. A resolução foi aprovada pela maioria dos deputados presentes. Por conseguinte, Dmitry Palyuga foi detido pela polícia por suspeita de “desacreditar” as autoridades, juntamente com outros quatro deputados do distrito, mas foi libertado no dia 9 – embora ainda possa pagar uma multa que terá de ser decidida pelo tribunal.

Todavia, os candidatos pró-Kremlin venceram todos os 14 governos nas eleições regionais russas que decorreram entre os dias 9 e 11 deste mês. A maioria dos vencedores concorreu pelo Rússia Unida, o partido político dominante no país, ligado a Putin. Dois candidatos concorreram como independentes, mas apoiam o Rússia Unida. Só na cidade de Moscovo, mais de 77% dos lugares foram ganhos por candidatos pró-Kremlin, apontou a agência estatal TASS.

Mas o processo eleitoral não foi justo nem democrático, sublinhou a “Golos”, uma organização independente de observação de eleições. Foram reportadas dezenas de violações com boletins de votos, intimidação de cidadãos e observadores, compra de votos e violações nas contagens. O acesso à comunicação social na campanha não foi igual para todos, diz a organização, que fala em campanha e em ato eleitoral não livres e sem igualdade, sendo “impossível determinar a real vontade dos eleitores nestas condições”. O New York Times refere que as eleições ocorreram ao longo de três dias, tornando-se mais vulneráveis a fraudes. Alguns cidadãos russos aproveitaram para protestar contra o regime: “Rússia sem Putin” e “Pela Paz” foram algumas das mensagens escritas nos boletins de voto, de acordo com fotografias divulgadas na rede social Telegram.

Muitos dos políticos críticos do regime fugiram do país desde o início da guerra; outros têm sido detidos, ao abrigo das leis aprovadas nos últimos meses com o objetivo de proibir críticas às forças armadas russas, limitando ainda mais a liberdade de expressão no país. A organização de direitos humanos OVD-Info regista, desde o começo da guerra, mais de 16 mil detenções ao abrigo de tal legislação. Yevgeny Roizman, crítico de Putin e ex-presidente da câmara de Ekaterinburgo, cidade dos Urais com mais de 1,5 milhões de habitantes, depois de ter sido multado três vezes pela justiça, foi detido, no final de agosto, acusado de “desacreditar” as forças armadas do país. Se for condenado, enfrenta uma pena que pode ir até aos cinco anos de prisão. E, no dia 11 deste mês, o líder da Chechénia, fervoroso apoiante de Putin, também deixou duras críticas à estratégia militar do ministério da Defesa na invasão da Ucrânia: “Cometeram erros e creio que vão retirar as ilações necessárias. Se hoje ou amanhã não forem feitas mudanças na estratégia, vou ser forçado a falar com a liderança do ministério da Defesa e do país para lhes explicar a verdadeira situação no terreno”, disse no seu canal de Telegram Ramzan Kadyrov.

Entretanto, Dmitry Peskov, porta-voz do Kremlin, afirmou, no dia 12, que a saída de tropas russas de determinadas cidades e localidades foi uma decisão estratégica. E, embora as forças ucranianas avancem no terreno, a Rússia alcançará todos os objetivos que se propôs no âmbito da “operação militar especial”. Segundo Peskov, “o Presidente está em contacto permanente com o ministro da Defesa e os restantes líderes militares”. Efetivamente, foi decidido “reagrupar as tropas russas nas zonas de Balakleya e Izium e redirecionar os esforços na direção de Donetsk”.

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Em termos militares, não é provável que a reconquista de grande parte do território ocupado mude alguma coisa. As consequências do inesperado ataque e com tanto sucesso são psicológicas e políticas – na Rússia e na Ucrânia, mas não equivalem a “catástrofe” para a Rússia. A velocidade a que os ucranianos conquistaram tanto território em comparação com o número de homens perdidos faz da contraofensiva um sucesso. A reconquista, por parte do exército ucraniano, de várias localidades na região de Kharkiv, no nordeste do país, em pouco mais de três dias, induziu as autoridades russas a alegar: “as nossas tropas estão a reagrupar”, como aconteceu nos primeiros dias de abril, quando perderam todos os territórios em redor de Kiev. Então, Moscovo aduzia que o objetivo era enviar tropas para defender o Donbas, onde a Rússia mantém a narrativa de que a “operação especial” visa salvar os falantes de russo do genocídio iniciado em 2014. Agora, o objetivo da retirada de Kharkiv é o mesmo – e não uma consequência do ataque ucraniano.

O enorme e silenciador lençol de propaganda com que o Presidente da Rússia cobre, há anos, a imprensa livre do país tem beneficiado as elites do Kremlin, mas o tecido começa a rasgar-se e já nem os comentadores oficiais parecem dispostos a conter a sua irritação face às inesperadas dificuldades que o exército russo está a enfrentar na Ucrânia. Mesmo os canais de televisão afetos ao Kremlin, que têm licença para transmitir livremente, integraram vozes críticas nos seus painéis nos últimos dias; e a discussão sobre os fracassos da guerra à luz dos objetivos estabelecidos em fevereiro parece estar a quebrar.

As opções de Putin continuam todas em aberto, até porque esta é “a primeira grande derrota do exército russo, maior ainda que a de Kiev”, diz Daniel L. Davis, comentador de assuntos de defesa e segurança e veterano do exército norte-americano. Porém, isso não retira mérito à operação dos ucranianos no nordeste do país: “é uma vitória sem espinhas nem equívocos, uma injeção de moral nos cidadãos e nas tropas, e até os meios de comunicação russos estão a dar voz à raiva que existe contra os comandos militares, à consternação pública, há uma clara procura pela alma russa, é um momento de questionamento coletivo” – explicita. Porém, só isso não muda o curso da guerra.

Putin pode declarar guerra e decretar a mobilização total mas, precisa de promover o treino das pessoas e os instrutores estão todos na linha da frente. É improvável negociar com Zelensky depois deste feito militar ucraniano. Restará a escalada, com ou sem a utilização de armas mais potentes, como químicas e até nucleares?

Mesmo as armas nucleares, a menos que Putin pense dizimar todo o país, apenas afetam parte da linha da frente e a China abandonaria Moscovo, o que economicamente seria o colapso da Rússia. Os ataques químicos matam ou ferem muita gente de forma muito dolorosa, mas não servem para conquistar território, apenas para acirrar os ucranianos e o Ocidente. Por isso, é previsível que se mantenha a tática dos bombardeamentos dos russos sobre infraestruturas essenciais e prédios civis, com mais frequência e com maior intensidade. Mais sanções e contrassanções? Certamente.

Por seu turno, a Ucrânia precisa de “armas modernas da NATO”. E os países europeus abdicarão de arsenal que utilizariam na sua própria defesa, mais moderno, opção difícil de passar em certas capitais europeias? Que efeitos traz, na guerra, uma vitória política? Devia pôr-lhe termo, não?

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Enfim, caprichos da guerra que fatigam, desmoralizam e matam. Interrogações sobre as alianças.

2022.09.12 – Louro de Carvalho

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