quarta-feira, 14 de setembro de 2022

O binómio ética-felicidade ou uma digressão pelas sendas da virtude

 

Ética e felicidade criaram grande relação entre si ao longo da História da Filosofia e na vida das pessoas. Relacionam-se entre si pelo facto de a felicidade ser a finalidade da ética e esta postular a prática da virtude, a qual dá o prazer, que leva à felicidade, se for genuíno.  

O desenvolvimento da consciência pessoal e os níveis de moralidade são constructos utilizados para pensar a ética com enfoque no sujeito. E, como a felicidade se realiza através do indivíduo, a forma como a pessoa constrói o seu modelo de realidade determina-lhe a capacidade de ser feliz, mesmo sem a certeza de que o seu conhecimento seja a exata representação da realidade.

Sendo a ética é o complexo de valores morais e princípios que norteiam a conduta humana na sociedade, almejando o equilíbrio na pessoa e bom funcionamento social, importa como saber ela se relaciona com a felicidade, que não é um conceito unívoco.

É possível identificar a relação entre ética e felicidade, estudando a ética na filosofia, que difere da ética social ou da ética religiosa, que é um corpo de doutrina que determina o correto e o incorreto, o bom e o mau, relativamente ao caráter e à conduta. Neste sentido, há uma ética cristã, religiosa, paralela e semelhante à ética normativa filosófica na afirmação da sua validade, mas que difere dela por não se estabelecer apenas na investigação racional. Já a ética filosófica, enquanto estudo dos temas morais, do modo de ser e agir dos seres humanos, além dos seus comportamentos e caráter, tenta descobrir as motivações de cada pessoa para agir de um determinado modo e discerne entre o bom e o mau, o mal e o bem. A ética na filosofia estuda os valores que regem os relacionamentos interpessoais, como as pessoas se posicionam na vida e como convivem em harmonia com as demais.

O termo “ética” é oriundo do grego êthikê, ês, significando o que pertence ao caráter e cria os costumes. Relaciona-se com o adjetivo etikós, ê, ón, que significa usual, habitual.

Para Aristóteles, elementos positivos como riqueza e saúde, não possuirão valor, se a alma da pessoa em causa não for boa. Assim, o melhor que há a fazer é promover o que há de melhor no sujeito, que é ser tão racional como possível, pois, assim como a alma é superior ao corpo, a parte racional da alma é superior a parte irracional. Isso já seria bom em si, uma virtude (em Grego, aretê), que traria recompensas. É natural que os homens se tornem animais racionais e, se não o fizerem, podem ser homens vivos, mas não vivem como homens, não têm o prazer (térpsis, gozo, encanto) em viver. A forma de realizar a natureza humana é realizar a natureza divina, sendo a mente o elemento divino que possibilita a aproximação aos deuses (o filósofo era politeísta, embora chegue a apontar para o Deus único, o motor imóvel).

Considerando o valor que Aristóteles atribui a razão, é de ter em conta a utilidade que dá à filosofia. Para ele, algumas coisas são boas pelo que podem proporcionar, outras são-no em si.

Este é o caso da filosofia. O facto de ser fundamental sem proporcionar algo mais significa que é um dos bens mais elevados. E, no atinente à ética, há duas compilações conexas: a Ética a Nicómaco e a Ética a Eudemo. A primeira é a principal obra de ética de Aristóteles. Nela expõe a sua conceção teleológica e eudemonista de racionalidade prática, a sua conceção da virtude como mediania (In medio uirtus) e as suas considerações sobre o papel do hábito e da prudência na ética. É um escrito de Aristóteles maduro, com o seu sistema filosófico próprio e definitivo. O seu contexto é a fundação do Liceu em 335 a.C. a 323 a.C. O título da obra advém do nome de Nicómaco, seu filho e discípulo. O texto terá resultado das suas anotações de aula e publicadas pelos discípulos de Aristóteles após da morte prematura de Nicómaco, em combate.

A ideia basilar de Aristóteles é, como para Platão, o Bem Supremo, que é a felicidade (em Grego, eudaimonía, sucesso). O livro começa pelo questionamento sobre o que é o bom ou o bem, mas afirma, desde logo, que todo o indivíduo, como toda ação e toda escolha, tem em mira um bem, que é aquilo para que todas as coisas tendem. O fim das ações das pessoas é o Sumo Bem, mas, porque o conhecimento desse Bem é importante para a vida, é necessário determiná-lo para se saber de qual ciência é objeto. Tal ciência é a ciência mestra (que é a política) e o seu estudo cabe à ética. Tal Bem é objeto da política, pois as ações belas e justas admitem variedade de opiniões, podendo ser consideradas como existentes por convenção, não por natureza. O fim em vista não é o conhecimento do bem, mas a sua ação; e esse estudo é útil a quem o deseja e age de acordo com um princípio racional, não o é a quem segue as paixões e não tem experiência da vida.

Visando todo o conhecimento e todo trabalho um bem, importa saber qual será o mais alto de todos os bens. O fim é a felicidade, que o vulgo não concebe como o sábio. Para o vulgo, a felicidade é óbvia como o prazer, a riqueza ou as honras. Quem identifica a felicidade com o prazer (hédonê) vive a vida do gozo (aisimíai, conveniência física); a honra (timê) é superficial e depende mais do que dá do que do que recebe; a riqueza não é o sumo bem, mas só algo de útil.

Por isso, devemos procurar o bem e saber o que ele é. Ora, se tudo o que fazemos tem uma finalidade, tal finalidade será o bem. A melhor função do homem é a vida ativa que tem um princípio racional. Assim, bens são as atividades da alma. E a felicidade identifica-se com a virtude, pois à virtude pertence a atividade virtuosa. Porém, o Sumo Bem está o no ato, porque pode existir um estado de ânimo sem ter bom resultado.

Sendo a felicidade a melhor coisa, estando identificada como atividade da alma em consonância com a virtude e não sendo felicidade a riqueza (ploûtos), a honra ou o prazer, nem por isso prescindimos desses bens, porque é impossível realizar atos nobres sem os meios. O homem feliz necessitará da prosperidade, pelo que alguns identificam a felicidade com a boa fortuna (eutikhía), enquanto outros a identifiquem com a virtude. Por isso, deve perceber-se se a felicidade se adquire pela aprendizagem, pelo hábito ou pelo adestramento, se é conferida pela providência (prónoia) divina ou se é obra do acaso. Se é a felicidade a melhor das coisas humanas, é uma dádiva (dôron) divina – ainda que resulte da virtude, pela aprendizagem ou pelo adestramento. Logo, confiar ao acaso o que há de melhor e mais nobre, seria solução imperfeita. A felicidade é atividade virtuosa da alma; os demais bens são condição dela ou serão úteis para a sua realização.

A Ética a Eudemo consiste em sete livros. Desses, três são os mesmos que três livros da Ética a Nicómaco. Isto quer dizer que Aristóteles os utilizou nas duas séries de palestras ou que algum editor da antiguidade os copiou de uma para preencher lacunas na outra. A Ética a Eudemo é a obra mais antiga e a Ética a Nicómaco contém uma versão posterior do pensamento do filósofo, apesar de as diferenças serem pequenas.

A Ética a Nicómaco assegura que o homem tende a fins (teleitaí) precisos, que se configuram como bens. Toda a arte, toda a pesquisa, toda ação e todo projeto visam algum bem. Por isso, o bem é aquilo para que tendem todas as coisas. Assim, para todos os homens, o bem supremo é a eudaimonía, ou seja, a felicidade. Mas o nome não é unívoco. A maioria considera que a felicidade consiste no prazer superficial. Porém, vida dedicada aos prazeres torna-nos semelhantes aos escravos e é existência própria dos animais. As pessoas mais evoluídas e mais cultas põem o bem supremo e a felicidade na honra. Buscam a honra, sobretudo, os que se dedicam ativamente à vida política. Contudo, este não pode ser o fim último, porque seria algo exterior, ao passo que o bem é individualmente inalienável. Portanto, os homens buscam a honra não por ela, mas como prova e reconhecimento público da sua bondade e virtude, que são mais importantes do que a honra. Se o tipo de vida dedicado ao prazer e o dedicado à busca da honra têm aparente plausibilidade, não se pode dizer o mesmo da vida dedicada a acumular riquezas, que não tem sequer essa aparente plausibilidade. Com efeito, prazeres e honras são buscados por si, já as riquezas não.

Contudo, o bem supremo do homem não pode ser o que Platão indicou, a Ideia do Bem. Se assim fosse, não seria realizável nem adquirível pelo homem, que é o que nós buscamos. O bem, para Aristóteles não é uma realidade única e unívoca, mas algo polívoco, diferente nas diversas categorias e nas diversas realidades em que entra, mas sempre ligado por uma analogia. Segundo Aristóteles, está em harmonia com a conceção helénica de aretê (adaptação perfeita, excelência, virtude). O bem do homem só pode consistir na obra que só ele pode realizar, assim como, em geral, o bem de cada coisa consiste na obra que é peculiar a cada coisa. E a obra do homem não pode ser o simples viver, pois o viver é próprio de todos os seres vegetativos, e não pode ser o sentir, pois este é comum aos animais. Então a obra peculiar do homem é a razão e a atividade da alma segundo a razão. Consiste, pois, o verdadeiro bem do homem na atividade da razão e no perfeito desenvolvimento e atuação dessa atividade. Esta é a virtude do homem e aqui se deve buscar a felicidade. A felicidade consiste numa atividade da alma segundo a virtude. E qualquer aprofundamento no conceito de virtude depende do aprofundamento do conceito de alma.

Segundo Aristóteles, a alma divide-se em três partes, duas irracionais, a alma vegetativa e a alma sensitiva, e uma racional, a alma intelectiva. Cada uma tem a sua atividade peculiar. Entretanto, a virtude humana só é aquela em que entra a atividade da razão. É evidente que existe uma virtude da parte da alma especificamente humana, que consiste em dominar as tendências e impulsos da parte vegetativa e da parte sensitiva, que são por si desmedidos. Essa é a virtude ética. E, porque há na pessoa a alma puramente racional, deverá haver também a virtude peculiar dessa parte da alma, e esta será a virtude dianoética, ou seja, a virtude racional.

Assim, a verdadeira função das almas humanas racionais é fazer que os homens vivam bem, isto é, de modo racional. Mas a melhor quantidade é a que promove o eu racional autêntico. Para Aristóteles, o cavalheiro é aquele que faz correto uso dos bens que a sorte põe no seu caminho e que merece gozar das vantagens que goza. O homem ultrapassa os outros animais, porque tem uma natureza que o leva a viver numa comunidade política. Porém, este, que é um bom e digno modo de vida, só o será se se tem as virtudes necessárias e se está preparado para servir o público. Por isso, não é recomendável a vida política gananciosa ou em busca de fama.

Entretanto, o mais elevado modo de vida possível é o que exprime o elemento mais elevado do ser humanos, o elemento divino da razão, que leva à apreciação da verdade (alêtheia). O homem é animal racional e está no seu melhor estado quando usa a razão do melhor modo, que é conhecer a verdade. As disposições da mente que permitem conhecer a verdade são as virtudes intelectuais, distintas das virtudes morais ou disposições das emoções que ajudam a dar as respostas corretas às situações práticas. Logo, Aristóteles opta pela felicidade através da vida dedicada à filosofia.

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Aristóteles liga ética e felicidade ao uso da razão. A natureza racional é a mais elevada, pois, torna a alma racional, em certa medida, similar dos deuses. O uso da felicidade e do prazer na ética é bom ponto de partida para a reflexão antropológica, mas a vida de felicidade é a dedicada à filosofia, já que não precisa de oferecer recompensa ou utilidade. A filosofia é boa em si, porque encaminha para a verdade, que dá a felicidade, a fruição do Bem.

Em suma, a felicidade obtém-se na apreciação da verdade, pelo culto das virtudes intelectuais com o uso das virtudes morais, no diálogo em comunidade. O homem é um ser ético-político.

2022.09.14 – Louro de Carvalho

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