quinta-feira, 1 de setembro de 2022

Palpites inoportunos e outros dados inconvenientes

 

Embora demissionária, Marta Temido ainda está em funções como titular da pasta da Saúde. E António Costa previu que a sucessão não é para já, pois quer que seja Temido a apresentar ao Conselho de Ministros os diplomas regulamentadores do Serviço Nacional de Saúde (SNS), bem como a nomear o primeiro responsável pela direção-geral do SNS.

Contudo, já estão na praça os inoportunos palpites sobre o possível sucessor, cuja escolha passará pelo aparelho do Partido Socialista (PS) ou apenas pela preferência pessoal do primeiro-ministro.

Os bastonários das ordens conexas com a Saúde, nomeadamente médicos e enfermeiros, e os sindicatos da área, não escondem a preferência por Fernando Araújo, Lacerda Sales ou Maria de Belém Roseira (esta sobraçou a pasta, que abandonou cansada, passando a sobraçar outra menos difícil. Querem alguém com peso político, sem ideologias (é querer a Lua) e com capacidade de negociação. É este o perfil descrito pelos representantes dos profissionais de saúde para o ministro da Saúde: uma pessoa que conheça o terreno – e que esse terreno não seja só a gestão pública ou o setor privado, mas o sistema de saúde como um todo.

Uma primeira escolha provavelmente estará na cabeça do primeiro-ministro, mas no PS vários nomes são objeto de especulação e o que reúne melhor currículo é Fernando Araújo, presidente do Centro Hospitalar Universitário São João (CHUSJ), no Porto, a convite da ministra.

Manuel Pizarro, 58 anos, eurodeputado, e António Lacerda Sales, 62, ainda secretário de Estado adjunto de Marta Temido, ambos médicos: o primeiro de medicina geral e o segundo ortopedista especialista em medicina desportiva (mantendo ainda atividade). Têm algum peso nos aparelhos distritais do PS: Pizarro no Porto e Sales em Leiria. Pizarro foi secretário de Estado da Saúde de 2008 a 2011 e Sales ocupa a pasta desde 2019. Foram os dois deputados eleitos à Assembleia da República. Têm perfis profissionais e políticos parecidos e são dois dos nomes de que o PS fala para suceder a Temido. Seriam escolhas de aparelho e, como políticos profissionais, assegurariam cuidado na exposição pública e alinhamento incondicional com o primeiro-ministro. Governantes que pretendem recondução em listas eleitorais do partido não se dão a ousadias autonomistas.

Todavia, quem dizem reunir melhor currículo para a tarefa é Fernando Araújo, 56 anos, também médico (especialista em imuno-hemoterapia) e, além disso, professor catedrático. Não é militante do PS, mas foi secretário de Estado adjunto e da Saúde de novembro de 2015 a outubro de 2018, sendo ministro Adalberto Campos Fernandes. Por convite de Temido, preside, desde fevereiro de 2019, ao CHUSJ. O seu trabalho tem sido objeto de vários elogios, sobretudo no atinente à pandemia de covid-19. Escreve com regularidade no Jornal de Notícias e vem-se tornando progressivamente mais crítico da gestão do SNS e da ação da ministra.

A 27 de julho, assinou um artigo considerando “i-na-pli-cá-vel” o novo diploma da valorização das horas extras dos médicos em serviço de urgência. Também contestou a portaria que estabelece prémios remuneratórios para gestores públicos do SNS, recusando ser premiado, pois, citando Camões, “o fraco rei faz fraca a forte gente” e enquanto as tropas não forem valorizadas os generais não podem ser premiados, pois corre-se o risco “de criar desconfiança, desmotivação e caos no exército”. Não lhe falta currículo como médico, cientista, professor e gestor do SNS, nem pensamento crítico, mas este pode contribuir para não ser o escolhido. E não se sabe se aceitaria o convite que lhe viesse a ser formulado. Aliás, os males do SNS que levaram Temido à demissão já existiam no SNS quando ele era governante. A pandemia e a economia (periférica) de guerra só os avolumaram e expuseram.

A lista dos ministeriáveis inclui dois outros ex-secretários de Estado: Rosa Matos, 60 anos, administradora hospitalar, que foi secretária de Estado da Saúde entre 2017 e 2018 (ao tempo, casada com o eurodeputado do PS Carlos Zorrinho) e que administrou hospitais públicos e dirigiu, durante seis anos (2006-2011), a Administração Regional de Saúde (ARS) do Alentejo: e Luís Goes Pinheiro, 47 anos, que deteve, durante um ano (2018-2019), a pasta da Modernização Administrativa e que agora dirige os Serviços Partilhados do Ministério da Saúde. É alguém cuja carreira se desenvolveu na Justiça e na Administração Interna. Licenciado em Direito, é especialista em simplificação administrativa e governação eletrónica.

Escolha surpresa seria a do anestesista Rui Guimarães, cuja liderança do Centro Hospitalar Gaia-Espinho tem sido elogiada, como já tinha sido quando foi diretor clínico em Barcelos (dirigindo um inovador programa de diminuição de falsas urgências).

***

Três médicos e uma especialista em administração hospitalar são os mais apontados como sucessores. Têm experiência na pasta da Saúde, têm perfis diferentes e cada um representa uma estratégia diferente de Costa para os próximos tempos. O perfil do sucessor revelará a estratégia que o primeiro-ministro reserva para a Saúde: avançar com reformas, conter a pressão mediática, continuar o legado de Temido ou garantir o equilíbrio das quotas do Governo e acalmar o PS. É com base numa destas opções que o primeiro-ministro escolherá o próximo ministro. São nomes que nos bastidores são dados como previsíveis, desejados ou até possíveis surpresas. E cada um significa um sinal diferente, creem políticos, ex-governantes e profissionais de saúde. 

Poucos minutos depois de a demissão ser conhecida, a escolha de Fernando Araújo foi logo assumida entre a classe médica, e não só, como a melhor opção. E, em conversas de bastidores, todos lhe sublinhavam a competência, a independência e a capacidade técnica. Mas o facto de nos últimos tempos ter assumido posições e críticas ao governo em algumas declarações e artigos de opinião pode impedir a escolha. Recentemente, considerou que o Serviço Nacional de Saúde (SNS) estava sem norte e avisou que não parava de perder profissionais, médicos e enfermeiros, fruto da falta de medidas. Tem a seu favor o facto de o CHUSJ estar entre os melhores do país em eficácia e produtividade. Aliás, na pandemia, o hospital surpreendeu pelo modo como reagiu ao embate do aumento brusco dos doentes de cuidados intensivos por covid-19 e chegou a assumir posições críticas quanto à política seguida. É um excelente técnico que tentaria implementar medidas, mas talvez precisasse de algumas garantias de Costa. Apesar de tudo, o seu ímpeto reformista como vice-presidente da ARS Norte não conseguiu atingir todas as urgências da região e fazer deslocar as utentes do distrito de Bragança para as urgências de ginecologia-obstetrícia de Vila Real não é encomiástico.

Manuel Pizarro é o perfil que pode preencher melhor a estratégia de Costa. É um político com experiência e pode ajudar o primeiro-ministro a lidar com a pressão mediática e política que envolve o caos que está instalado nos hospitais. Apesar de estar no Parlamento Europeu, quem o conhece, acredita que dificilmente diria que não a António Costa. Seria uma escolha que daria sinais de que o primeiro-ministro quereria um político a comandar a pasta da saúde e que o ajudaria a enfrentar o país, o partido e os intervenientes na saúde. Além disso, partilha com Fernando Medina, ministro das Finanças, que tem de dar luz verde aos gastos de saúde, uma carreira no PS de apoio a Costa. Já foi secretário de Estado da Saúde por duas vezes e o seu nome já surgiu como ministeriável noutras ocasiões. Agora, o lugar de presidente da delegação do PS no Parlamento Europeu dar-lhe-á o estatuto de que Costa precisa para acalmar a opinião pública e a oposição. Pizarro até já foi do PCP. Esta a opção sinalizaria que o primeiro-ministro não quer grandes mudanças, mas conter os estragos e lidar com questão de forma política.

Lacerda Sales, que era visto, há uns meses, como certeza na sucessão de Temido, já não é tão consensual. Se for a escolha de  Costa, a mensagem será clara, dizem vários responsáveis: “É para continuar tudo igual”. Tem os seus pares como aliados. Aliás, ao longo dos últimos tempos, era difícil encontrar algum médico que o criticasse publicamente. Ao mesmo tempo, muitos sabiam que a ministra estava por um fio e acreditavam que ele seria o seu sucessor natural. É apontado como homem com “habilidade de contatos e na forma de fazer declarações públicas”, mas está associado a uma equipa que muitos responsabilizam pelo caos que se instalou.

Rosa Matos lidera o Centro Hospitalar Lisboa Central e é elogiada pelas suas capacidades técnicas. Bem pode ser a solução para Costa cumprir a ideia que tem defendido de que é preciso haver mais mulheres “em posição de direção e em funções executivas” e pode ser a solução para garantir as quotas que António Costa sempre defendeu. Aliás, ainda, quando confrontado com a pergunta dos jornalistas sobre qual poderá ser o perfil do próximo ministro, Costa respondeu de imediato: “Ministro ou ministra”, sublinhando que o género não é limitativo. É tímida e não gosta de exposição, mas gosta de desafios. É a única dos quatro nomes mais destacados que não é médica. Porém, Costa pode querer manter uma mulher no Governo e ela tem muita capacidade. Traria tranquilidade e Costa, que gosta de surpreender, assumiria a estratégia política da situação.

***

Além da inoportunidade do avanço destes, que integraram o Governo e que são responsáveis pelo bom e pelo mal do SNS (Quem estiver sem pecado atire a primeira pedra), ditos há que deviam ser improváveis, entre os quais sobressai o que atribui a governação da Saúde ao socialista marido de Marta Temido. Será que as cotas femininas não passam de paus mandados dos homens? Haja decoro no discurso, mesmo que seja intriguista, que tenha classe.

2022.09.01 – Louro de Carvalho

Sem comentários:

Enviar um comentário