quinta-feira, 29 de setembro de 2022

Apontados abusos sexuais de ex-administrador apostólico de Díli

 

A ser verdade, é de lembrar que “em bom pano cai a nódoa”, como reza o provérbio, ou “nem sempre as pessoas são o que delas se pensa. Recordo-me de um cónego da Sé de Lamego, muito conhecido ao tempo, a quem alguém dizia que “Vossa Reverendíssima é um santo, por isso, já tem o céu garantido para quando morrer”. Porém, ele retorquia: “Isso é o que dizeis agora, mas, quando todos nos encontrarmos no fim do mundo, ides apontar: ‘Olha o malandro’!”  

O jornal holandês De Groene Amsterdammer publicou, a 28 de setembro, testemunhos de alegadas vítimas de abusos sexuais, quando eram menores, sobre crimes que terão sido cometidos, durante vários anos, por D. Carlos Filipe Ximenes Belo, ex-administrador apostólico de Díli e Nobel da Paz, em parceria com José Manuel Ramos-Horta

Na edição online, o jornal revela ter ouvido várias vítimas e vinte pessoas com conhecimento do caso, inclusive “individualidades, membros do Governo, políticos, funcionários de organizações da sociedade civil e elementos da Igreja”. Pelos vistos, mais de metade das pessoas ouvidas conhecem pessoalmente uma vítima dos abusos e outros têm conhecimento do caso. Porém, a jornalista Tjirske Lingsma refere que outras vítimas recusaram contar a sua história nos media.

O jornal holandês em causa refere que os alegados abusos terão começado ainda antes de Ximenes Belo ser nomeado bispo, quando era superior nos Salesianos de Dom Bosco, em Díli, na década de 1980, em cujo colégio de Fatumaca era professor e diretor. Porém, os timorenses ouvidos dizem que os abusos são da década de 1990. Uma das vítimas, hoje com 42 anos (em 2002, tinha 22), alega que, ainda menor, foi alvo de abuso sexual na casa de Ximenes Belo, a troco de dinheiro.

Algumas primeiras denúncias dos alegados abusos foram dadas a conhecer a jornalistas no início deste século. Formalmente, porém, não há detalhes públicos sobre se as denúncias chegaram a ser formalizadas quer junto das autoridades policiais quer junto do Vaticano.

As primeiras investigações ao alegado abuso remontam a 2002, quando um timorense denunciou que o irmão era vítima de abuso. E, em novembro desse ano, Ximenes Belo anunciou a resignação do cargo, que exercia desde 1983, alegando problemas de saúde e a necessidade de um longo período de recuperação. “Estou a sofrer de fadiga mental e física, o que requer um longo período de recuperação” – dizia em comunicado, informando ter solicitado à Santa Sé a renúncia.

O antigo prelado, hoje com 74 anos, informou, entretanto, que o seu pedido, formulado ao abrigo do cânone 401 § 2 do Código de Direito Canónico, fora aceite pelo Papa São João Paulo II.

Na verdade, o Vaticano confirmou, a 26 de novembro de 2002, através da Sala de Imprensa da Santa Sé, e a 27, através do L’Osservatore Romano, que “o Santo Padre aceitou a renúncia ao cargo de Administrador Apostólico ‘Sede vacante et ad nutum Sanctae Sedis’ de Díli (Timor-Leste), apresentada por Sua Excelência Dom Carlos Filipe Ximenes Belo, bispo titular de Lorium, em conformidade com o cânone 401 § 2 do Código de Direito Canónico”. Ao mesmo tempo nomeou Dom Basílio do Nascimento administrador apostólico de Díli.

A saída de Ximenes Belo de Timor-Leste causou grande surpresa na sociedade timorense, porque, até então, o bispo nunca havia dado a entender essa vontade. Mas, em entrevista à agência de notícias católica UCA News (Union of Catholic Asian News), em 2004, explicava que saíra do cargo em Díli para ser sacerdote assistente em Moçambique, estando então a residir em Portugal.

Com a saúde restabelecida, em meados de 2004, D. Ximenes Belo aceitou a ordem da Santa Sé para fazer trabalho missionário na Arquidiocese de Maputo, como membro da congregação dos salesianos (congregação de que era originário) em Moçambique, entre 2004 e 2005. Depois regressou a Portugal, aos Salesianos na cidade do Porto, onde reside atualmente.

Ainda assim, os contornos da saída de Ximenes Belo de Timor-Leste, em novembro de 2002, nunca foram totalmente clarificados pelo Vaticano, com o assunto a tornar-se tabu no país.

Fontes da Igreja em Timor-Leste, segundo a Lusa, explicaram que “nenhuma vítima” denunciou alegados abusos, de forma presencial tanto na Nunciatura como na Igreja timorense, não havendo informações de qualquer denúncia junto das autoridades civis. Contudo, apontam a realização de uma investigação, cujos contornos não são conhecidos.

Em 2020, em declarações à Lusa, um elemento superior da Igreja Católica em Díli, a coberto do anonimato, escusou-se a revelar se houve demissão formal de Ximenes Belo por João Paulo II. Porém, falou de instruções para “ter um perfil baixo, não viajar, não mostrar insígnias episcopais, ter uma atitude modesta”.

Parte do silêncio sobre o Nobel da Paz dever-se-á ao facto da postura do Vaticano relativamente a abusos sexuais na Igreja ter mudado com os dois últimos papas (Bento XVI e Francisco), com a adoção de uma política de “tolerância zero”, que vale em todos os casos, e também em Timor. Houve, de facto, uma consciencialização progressiva da Igreja e da sociedade sobre a gravidade do assunto e sobre a atitude a assumir perante ele: a Igreja deve expulsar (Não crê na recuperação das pessoas?!) e corrigir ao máximo possível este crime dentro da Igreja, sobretudo no clero.

Nestes crimes, independente do teor da legislação criminal dos países, para a Igreja “não há prescrição” e, mesmo anos depois de investigados, recebem a sanção jurídica e penal da Santa Sé.

O caso está com os órgãos competentes da Santa Sé, disse à Lusa Marco Sprizzi, representante do Vaticano em Timor-Leste, sem confirmar se o prelado foi investigado. “Estão a examinar este artigo e o seu conduto e de outros que estão a ser publicados neste momento. E, a partir disto, qualquer resposta virá diretamente da Santa Sé.” O assunto está com o Vaticano e com a Santa Sé, não tendo já competência direta a Igreja local nem a Nunciatura.

Marco Sprizzi disse à Lusa que o jornal holandês foi “correto” e colocou várias perguntas à Nunciatura em Díli que foram “transmitidas aos competentes Dicastérios da Santa Sé”. Todavia, recusou-se a confirmar se foram impostas restrições ao bispo, como o impedimento de visitas a Timor-Leste, confirmando só que “não foi laicizado” (retirado das funções eclesiásticas). E, questionado sobre a saída de D. Ximenes Belo em novembro de 2002 – o que, na altura, causou bastante surpresa – Sprizzi recordou que a “renúncia voluntária de Ximenes Belo se baseou numa razão de saúde” e que a resposta oficial “não pode mudar, tendo sido dada com base no direito canónico”. Porém, se algo tiver de ser acrescentado, sê-lo-á pelos órgãos competentes.

Por seu turno, a 29 de setembro, em comunicado, Matteo Bruni, porta-voz do Vaticano, diz que o gabinete que lida com casos de abuso sexual recebeu alegações “sobre o comportamento do bispo” em 2019 e que, no prazo de um ano, tinha imposto sanções. Tais sanções incluem limites aos movimentos do bispo e ao exercício do seu ministério, bem como a proibição de manter contactos voluntários com menores ou com Timor-Leste.

O mesmo comunicado esclarece que estas medidas foram “modificadas e reforçadas” em novembro de 2021 e que, em ambas as ocasiões, o bispo aceitou formalmente o castigo.

Olav Njølstad, diretor do Instituto Nobel da Noruega veio a terreiro dizer que está “fora do âmbito de competências do Comité” retirar o Nobel da Paz a Ximenes Belo, escusando-se a comentar o caso. “O Comité muito raramente comenta o que um laureado com o Prémio da Paz pode fazer ou dizer nos anos após receber o prémio ou sobre o que um laureado pode ter feito no passado sem relação com o seu esforço premiado.” E, porque os estatutos excluem esta opção, está fora do âmbito de competências do Comité “retirar um prémio uma vez atribuído”.

José Ramos-Horta, Presidente da República de Timor-Leste, que foi galardoado com o Nobel da Paz, em 1996, ao mesmo tempo que Ximenes Belo, não comentou as suspeitas dos alegados abusos sexuais do ex-administrador apostólico de Díli, aguardando por mais informações da Santa Sé. Viu as declarações da Santa Sé, através da Nunciatura, à Lusa, e disse, para já, esperar pelos próximos passos, pelos próximos desenvolvimentos, por parte da entidade legitima, com credibilidade, que, “depois nos pode orientar sobre como gerir esta situação”.

***

Insisto: condenar e punir o crime é urgente, mas não é lícito jogar ao lixo a pessoa, nem mesmo avaliá-la por uma vertente da sua personalidade, por mais premente que seja. Em tudo deve apostar-se na justa medida, assente na razoabilidade e na proporção. Concordo que o bispo seja impedido de exercer a missão episcopal, mas não proibido de adequada e talvez discreta missão sacerdotal. É preciso continuar a olhar o bispo como pessoa. Se queremos seres sem pecado, sem erro… E pensar retirar-lhe o Nobel seria medida desajustada e inadequada à punição pelo crime de abuso sexual de menor (pode nem ter sido pedofilia).

Não deixa de ser verdade o que fez pela paz. Em fevereiro de 1989, escreveu ao presidente de Portugal, Mário Soares (com quem chegou a reunir), ao Papa São João Paulo II e ao secretário-geral das Nações Unidas, Javier Pérez de Cuellar, reclamando o referendo sobre a égide da Organização das Nações Unidas (ONU) sobre o futuro de Timor-Leste e a ajuda ao povo timorense que estava “a morrer como povo e como nação”. E, quando a carta dirigida à ONU se tornou pública em abril, tornou-se persona non grata para as autoridades indonésias. Esta situação veio a piorar ainda mais quando deu abrigo na sua casa a jovens que tinham escapado ao massacre de Santa Cruz, em 1991, e denunciou os números das vítimas mortais. Enfim, modus in rebus!

2022.09.29 – Louro de Carvalho

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