sábado, 17 de setembro de 2022

Constituição do Fundo Populorum Progressio por rescrito papal

 

Através de rescrito, datado de 7 de setembro e em vigor a parir do dia 16, o Papa Francisco ordenou a supressão da Fundação Populorum Progressio, como parte do Dicastério para o Serviço do Desenvolvimento Humano Integral, e constituiu, em seu lugar, o Fundo Populorum Progressio, confiando-o ao Conselho Episcopal Latino-Americano (CELAM) e delegando no cardeal Michael Czerny, Prefeito do referido Dicastério, a incumbência de elaborar o respetivo regulamento. Assim, como explicou na audiência ao Conselho de Administração, a Fundação muda a forma, mas mantém a missão, permanecendo uma obra de caridade do Papa para os pobres da América Latina e do Caribe.

O objetivo de Francisco, que agiu segundo a norma do cânone120 §1 do Código de Direito Canónico, é “promover maiores laços com as Igrejas locais” e tornar mais eficazes os programas de desenvolvimento integral nas comunidades indígenas e afrodescendentes mais negligenciadas e pobres da América Latina”

O Pontífice explicou a suas motivações no discurso do dia 16 aos membros do conselho de administração da Fundação reunidos para o efeito, como se verá mais adiante.

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A Fundação Populorum Progressio, ora extinta, foi criada por São João Paulo II a 13 de fevereiro de 1992. Era a continuação, em nova forma, de um fundo que São Paulo VI instituiu, a 26 de março de 1968, aquando da sua visita à Colômbia, que tem financiado, todos os anos, projetos, que favorecem o desenvolvimento integral das comunidades mais pobres. O Fundo fora criado para ajudar os camponeses pobres e para promover a reforma agrária, a justiça social e a paz na América Latina, segundo as orientações dos Episcopados daquele continente.

São João Paulo II quis instituir uma fundação autónoma que denominou de Fundação Populorum Progressio a fim de promover o desenvolvimento integral das comunidades dos camponeses mais pobres da América Latina. Por isso, escrevia no documento fundador: “Este quer ser um gesto de amor solidário da Igreja a quantos estão no abandono e necessitam mais de proteção, como são as populações indígenas, mestiças e afro-americanas. […] A Fundação dispõe-se a colaborar com todos aqueles que, conscientes das sofredoras condições dos povos latino-americanos, desejam contribuir para o seu desenvolvimento integral, fazendo-o de modo que a doutrina social da Igreja encontre uma justa e oportuna aplicação.”

Segundo o Vatican News, o portal de notícias oficial multilíngue do Vaticano,  só de 1993 a 2018, foram aprovados 4.471 projetos por mais de 44 milhões de dólares, graças à generosidade dos católicos italianos, canalizada através da sua Conferência Episcopal, assim como de outras doações. Depois, foram analisados e desenvolvidos mais de 200 projetos a favor das comunidades indígenas, mestiças, afro-americanas e camponesas da América Latina e o Caribe.

Tem prestado uma atenção especial aos países da região Pan-Amazónica onde a Fundação, nos seus anos de existência, desenvolveu 638 projetos dos quais se beneficiaram mais de 40 comunidades indígenas, assim como um número significativo de comunidades rurais e afro-americanas.

Também colocou ênfase nos projetos para a Venezuela e América Central em agricultura, artesanato, microempresas, infraestrutura, saúde, educação e comunicação.

Além disso, tem parceria com a Catholic Outreach, organização de caridade católica que apoia as atividades da Fundação desde 2018.

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Agora, desejando que a ajuda ao desenvolvimento de projetos continue a ser uma expressão da caridade do Papa, mas não tendo o centro na Cúria Romana, e também numa linha de simplificação, Francisco entregou ao CELAM a tarefa de ajudar a Santa Sé na análise dos projetos e na sua implementação. O Dicastério para o Serviço do Desenvolvimento Humano Integral manterá a responsabilidade pela administração do fundo, que estará vinculado ao serviço desta missão específica. 

Aliás, esta foi a forma concebida por São Paulo VI em 1968, no primeiro aniversário da sua Encíclica Populorum Progressio, para ajudar os camponeses pobres e promover a reforma agrária, a justiça social e a paz na América Latina, de acordo com as diretrizes oferecidas pelos Episcopados do continente. Em 1992, São João Paulo II pensou numa Fundação, como “um gesto de amor solidário da Igreja para com aqueles que estão abandonados e mais necessitados de proteção, como as populações indígenas, mestiças e afro-americanas”. E, trinta anos depois, a escolha de Francisco faz parte da reforma da Cúria Romana, que “encontrou a sua expressão na Praedicate Evangelium” e está a dar origem a “uma série de mudanças necessárias”.

No seu discurso de 16 de setembro, exprimindo a sua gratidão àqueles que, durante os últimos trinta anos, trabalharam para a Fundação Populorum Progressio, “que agora muda a sua forma”, Francisco sublinha que o novo Fundo “mantém sua missão e continua a ser uma obra de caridade do Papa”. Aponta que “muitas famílias na América Latina e no Caribe sobrevivem em condições sub-humanas”, sendo que o Documento Final de Aparecida fala dos excluídos, que “não são apenas explorados, mas supranumerários, descartados”. E recorda que a Assembleia Eclesial do Continente, ainda em desenvolvimento, “foi uma oportunidade para escutar o grito dos pobres”, enquanto o Sínodo na Amazónia deu a conhecer a “realidade da exclusão em que vivem as comunidades indígenas e afrodescendentes”. Citando a Fratelli tutti, o Pontífice acrescenta que “diante das várias formas atuais de eliminar ou ignorar os outros”, é necessário “reagir com um novo sonho de fraternidade e de amizade social que não se limite às palavras”.

Ao percorrermos o caminho sinodal, devemos crescer como uma Igreja “samaritana” que conforta, se compromete e se abaixa para tocar as feridas da carne sofredora de Cristo no povo. Na verdade, o Senhor queria identificar-se com os mais pobres e marginalizados e oferecer-nos a sua presença misericordiosa neles.

O desejo do Papa é que “as iniciativas de solidariedade mostrem que é possível mudar, que a realidade não está bloqueada” e que, se empreendidas com sabedoria e coerência, motivem muitos. Assim, Francisco reitera que os pobres devem estar envolvidos nos projetos que lhes dizem respeito, não devendo ser vistos como destinatários de obras de caridade, mas como uma parte ativa do discernimento das necessidades mais urgentes.

Para Francisco, é importante que nos libertemos “da mentalidade paternalista, que amplia a disparidade entre os que são chamados a formar uma só família”.

Por fim, o Santo Padre renovou a sua gratidão a todos aqueles que serviram na Fundação Populorum Progressio e às organizações internacionais que colaboraram, encorajando todos “a dar continuidade a este compromisso”. E evocou a Virgem Maria para que, “com seu carinho e ternura de mãe”, nos possa exortar “a estar perto dos mais pobres e esquecidos, que Deus certamente não esquece”.

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Em suma, enquanto São João Paulo II diluiu na expressão “gesto de amor solidário” qualquer resquício de semelhança prática com o dinamismo marxista e com a Teologia da Libertação, que rejeitava liminarmente, Francisco retoma o objetivo claro de São Paulo VI espelhado na Encíclica Populorum Progressio, dedicada à cooperação entre os povos e ao problema dos países em desenvolvimento, denunciando o agravamento do desequilíbrio entre países ricos e países pobres, criticando o neocolonialismo e afirmando o direito de todos os povos ao bem-estar.

Propõe a criação um grande Fundo mundial, sustentado por uma parte da verba das despesas militares, para vir em auxílio dos mais deserdados.

O texto critica tanto o “liberalismo sem freio”, que conduziu ao “imperialismo internacional do dinheiro”, como a “coletivização integral e a planificação arbitrária, que priva os homens da liberdade e dos direitos fundamentais da pessoa humana”.

É uma das encíclicas mais importantes da História da Igreja Católica, ainda que tenha suscitado críticas ferozes nos meios mais conservadores, sobretudo ao admitir, com São Tomás de Aquino, o direito dos povos à insurreição revolucionária, em caso de tirania evidente e prolongada que ofenda gravemente os direitos fundamentais da pessoa humana e prejudique o bem comum.

Com efeito, os olhos e os ouvidos mais hipocritamente pios escandalizam-se face ao que segue:

“A terra foi dada a todos e não apenas aos ricos. Quer dizer que a propriedade privada não constitui para ninguém um direito incondicional e absoluto. Ninguém tem o direito de reservar para o seu uso exclusivo o que é supérfluo, quando a outros falta o necessário. Numa palavra, ‘o direito de propriedade nunca deve exercer-se em detrimento do bem comum, segundo a doutrina tradicional dos Padres da Igreja e dos grandes teólogos’. Surgindo algum conflito ‘entre os direitos privados e adquiridos e as exigências comunitárias primordiais’, é ao poder público que pertence resolvê-lo, com a participação ativa das pessoas e dos grupos sociais.”

Enfim, está dito, está feito. Os cristãos devem acatar a doutrina e não apenas o que agrada.

2022.09.17 – Louro de Carvalho

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