sexta-feira, 10 de março de 2023

Mulheres católicas querem mais vez e voz no interior da Igreja

 

Francisco tem sido o papa impulsionador de grandes mudanças na Igreja Católica no atinente ao aumento da presença e da relevância das mulheres na Igreja, inclusive na Cúria Romana. Mas, segundo a esmagadora maioria das mulheres católicas, muito há ainda por fazer.

Segundo um estudo internacional apresentado na Santa Sé, a 8 de março, Dia Internacional da Mulher, oito em cada dez mulheres (82%) consideram que deveriam ser incluídas em todos os níveis de liderança e dois terços gostariam de ver outras “mudanças radicais”. E são ainda mais as que pensam que o poder clerical causa danos à Igreja Católica (85%). Com efeito, há “uma preocupação significativa com os abusos de poder cometidos por clérigos e com os danos espirituais daí resultantes” (89%). Não faz sentido falar de clérigos do “sexo masculino”, pois frades não padres e freiras não integram a clerezia, ao invés do que referem os historiadores.

O estudo, levado a cabo por uma equipa de investigadores/as australianos/as, coordenada por Tracy McEvan, teóloga e socióloga da religião, da Universidade de Newcastle, Kathleen McPhillips, socióloga da religião, género e saúde mental, e Miriam Pepper, socióloga da religião, baseou-se em entrevistas a 17.200 mulheres católicas de 104 países diferentes – a maior pesquisa alguma vez feita junto de mulheres católicas.

A metodologia assentou num inquérito online em oito idiomas (inglês, espanhol, alemão, italiano, francês, polaco, mandarim e português), aberto entre 8 de março e 26 de abril de 2022.

A amostra, não-aleatória, resulta de uma rede de coletivos (dioceses, paróquias, redes e organizações de mulheres) que, em países e culturas diferentes, divulgaram o questionário e apelaram ao seu preenchimento.

Foi a organização internacional Catholic Women Speak (CWS) que decidiu avançar com o inquérito, em resposta ao convite do Papa para contributos para o Sínodo dos Bispos 2021-2024. A preocupação de dar a conhecer à Igreja o sentir e pensar das mulheres católicas relativamente à instituição de que fazem parte levou a organização a convidar a equipa de investigação da Universidade de Newcastle, juntamente com a professora emérita Tina Beattie, da Roehampton University UK, para elaborar e executar o estudo e apresentar o relatório ao Vaticano.

O relatório final, intitulado International Survey of Catholic Women; Analysis and Report of Findings (Inquérito Internacional sobre as Mulheres Católicas: Análise e Relatório das Conclusões), de cerca de 90 páginas, inclui um sumário, dados mais relevantes e recomendações.

Mais de três quartos das entrevistadas (79%) consideram que as mulheres devem poder fazer a homilia na missa e apontam um forte apoio à “plena inclusão das mulheres na liderança da atividade pastoral, litúrgica e de governação, bem como em funções [que envolvem] tomada de decisões”, o que inclui a admissão aos ministérios ordenados, em pé de igualdade com os homens. E, entre as suas preocupações, contam-se, ainda, a “promoção de agendas políticas” por parte dos padres e a “falta de transparência no governo da Igreja”.

A esmagadora maioria das inquiridas respondentes (88%), o que é de assinalar, afirma, com vigor, a importância que tem, para elas, a sua identidade católica, traduzida na “importância que dão à sua fé”, na “centralidade da Eucaristia para as suas vidas, e a sua participação ativa nas paróquias e comunidades eclesiais”. Simultaneamente, exprimem “elevados níveis de frustração ou de insatisfação” conexos com as suas experiências, associados, em particular, aos abusos sexuais, espirituais e físicos em contextos eclesiais e entendidos como uso indevido ou até abuso de poder e expressão do clericalismo. E muitas praticam a fé, apesar da preocupação, da frustração e da insatisfação com a instituição.

Muitas (80%) chamam a atenção para a falta de responsabilização e de transparência na liderança e governação eclesial, sobretudo na gestão da hierarquia de alegações de abuso sexual. Este aspeto foi considerado “uma barreira à participação na vida da Igreja”.

Relativamente ao que importa fazer e ao que é prioritário, mais de quatro em cada cinco participantes (84%) defendem a necessidade de reformas na Igreja. Contudo, um grupo bastante mais reduzido teme que as mudanças redundem num “compromisso com as tendências seculares” – acatólicas ou mesmo anticatólicas. Apoiam fortemente o cuidado com a linguagem inclusiva quanto ao género, nas práticas litúrgicas e nos documentos da Igreja, bem como a promoção da “inclusividade” como “dimensão central de uma ética cristã” (82%). Assim, manifestam preocupação com os marginalizados pelos católicos, pela teologia, pela doutrina e pela prática litúrgica, incluindo os católicos LGBTIQ+, divorciados, católicos monoparentais, embora divirjam quanto ao que significa ou implica esse acolhimento.

Entre outros aspetos que são fonte de preocupação, contam-se: o maior respeito pela liberdade de consciência na tomada de decisões no foro sexual e reprodutivo; a maior ação e empenho por parte da liderança da Igreja relativamente à doutrina social católica (83%), particularmente no respeitante a questões conexas com a mudança climática, com a justiça económica e com a pobreza; e o problema da justiça económica nos assuntos da Igreja, incluindo a má gestão financeira, a corrupção, a exploração e a falta de remuneração adequada das pessoas que trabalham para a Igreja, tanto leigas como religiosas.

E o inquérito aponta a “urgente necessidade” de um modelo de Igreja “menos hierárquico e autoritário”, com maior colaboração, diálogo, e responsabilidade partilhada entre clero e laicado.

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Compreendendo dados quantitativos e qualitativos, a pesquisa incluiu perguntas abertas, que resultaram em contributos significativos. E Tracy McEwan salienta que, ao invés do espectável, há “respostas duras”, não só das entrevistadas mais jovens, mas também da parte de muitas mulheres mais velhas. Por exemplo, muitas com mais de 70 anos apoiam o casamento entre pessoas do mesmo sexo e a pregação da homilia por mulheres, enquanto o número de apoiantes é muito menor na faixa etária entre os 18 e os 40 anos.

Mesmo quando têm lutas consideráveis com as instituições católicas, quase 90% das mulheres porfiam que a identidade católica é importante, pelo que praticam contras todos os incómodos.

“Eu agarro-me à Igreja com unhas e dentes, por causa da eucaristia e apesar de muitos dos seus clérigos”, responde uma entrevistada do Reino Unido. “Ser mulher na Igreja é difícil – caminhamos na linha de ser membros valiosos da sociedade, mas sem voz em muitos elementos da Igreja. Estou a tentar encontrar o caminho para ser uma mulher moderna e alguém que se encaixe dentro do papel disponível”, afirma uma participante australiana.

Os resultados apresentam algumas variações de país para país. Enquanto a Austrália aparece como mais conservadora do que a média global em vários indicadores (74% dizem que querem reformas, comparativamente à média global de 84%), a Irlanda e a Espanha surgem como os Estados onde o desejo de mudança é mais forte.

Com base nos dados da pesquisa, a equipa responsável pelo estudo fez várias recomendações, nomeadamente: um maior acesso das mulheres à liderança pastoral e organizacional significativa, incluindo a ordenação de mulheres; a promulgação de diretrizes para eliminar a violência sexual, espiritual e física; novos requisitos relativos à denúncia dos perpetradores às autoridades; e a implementação de medidas transparentes e responsáveis quanto às práticas de gestão.

O essencial dos resultados foi debatido, ainda em versão preliminar, em encontros da CWS, no final do último verão, andes de serem enviados para o secretariado-geral do Sínodo, em Roma. “A resposta esmagadora que tivemos é um indicador claro de como as mulheres católicas silenciadas se sentiram”, disse Tracy McEwan, avançando que o trabalho já provocou impacto global e chamou a atenção de altos funcionários do Vaticano envolvidos no Sínodo, que convidaram a equipa a apresentar as conclusões pessoalmente.

Algumas mudanças têm vindo já a verificar-se nos últimos anos, particularmente durante o pontificado de Francisco. Em 2022, as mulheres representavam 23,4% da população ativa no Vaticano, contra apenas 19,2% em 2013. E o aumento de colaboradores do sexo feminino é mais pronunciado, se olharmos para a Cúria romana, onde a proporção de mulheres aumentou de 19,3 para 26,1% nos últimos 10 anos, significando que mais de um em cada quatro funcionários da Santa Sé agora é uma mulher: em números absolutos, 812 de 3.114.

Este crescimento da presença de mulheres tem sido elogiado, mas uma dezena de funcionárias entrevistadas pela AFP lamentam – sob anonimato – as atitudes condescendentes e adversas que enfrentam, principalmente entre os clérigos. “Ainda há um longo caminho a percorrer”, sublinha uma das que trabalha, há dez anos, na Santa Sé. Outra entrevistada denuncia um “teto de vidro e uma atitude globalmente paternalista nos corredores”, com a visão antiga da “mulher sensível, doce, que encontramos refletida nos discursos do papa”. “Às vezes temos a sensação de sermos consideradas estagiárias. São pequenos gestos, uma mão no ombro, uma falta de consideração, comentários quase diários sobre o físico ou a roupa”, acrescenta.

Outras mulheres ainda, mães algumas delas, lamentam ter sido relegadas para papéis secundários.

Entretanto, no Dia Internacional da Mulher, Francisco destacou, na audiência geral, o importante contributo feminino para uma “sociedade mais humana”. “Penso em todas as mulheres: agradeço pelo seu empenho na construção de uma sociedade mais humana, através da sua capacidade de apreender a realidade com um olhar criativo e um coração terno. Este é um privilégio das mulheres”, disse, despertando os aplausos dos milhares de pessoas presentes.

Francisco aceitou escrever o prefácio do livro “More Women’s Leadership for a Better World” (Mais lideranças femininas para um mundo melhor), lançado a 10 de março. No seu texto, denuncia que “a violência contra a mulher é uma ferida aberta, resultante de uma cultura patriarcal e machista de opressão”, e conclui: “devemos encontrar o tratamento para curar esta praga e não deixar as mulheres sozinhas”.

A obra, que resulta de uma investigação multidisciplinar sobre o papel das mulheres para um novo modelo de desenvolvimento cultural e social, inclui um texto de Isabel Capeloa Gil, reitora da Universidade Católica Portuguesa, sobre a liderança das mulheres nestas instituições académicas.

Enfim, as mulheres precisam de vez e voz na sociedade e na Igreja. Talvez a Igreja tenha maior responsabilidade na mudança (não faz sentido, teologicamente, vedar, o ministério ordenado às mulheres), mas a sociedade tem de crescer em dignificação e em igualdade.

2023.03.10 – Louro de Carvalho

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