quinta-feira, 2 de março de 2023

Plano de paz da China para o conflito Rússia-Ucrânia não foi aceite

 

Pequim marcou o primeiro aniversário da invasão da Ucrânia pela Rússia (24 de fevereiro) com a apresentação de um plano de paz para a região, em doze pontos.

A proposta do plano surgiu um dia depois de a China ter optado pela abstenção numa resolução da Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU) a apelar ao fim do conflito, resolução que, aprovada com 141 votos a favor, sete contra e 32 abstenções, inclui a exigência da saída do exército russo de território ucraniano.

A proposta da China foi divulgada a 24 de fevereiro, mas tinha sido anunciada a 17, por Wang Yi, o diplomata chinês que tem a pasta dos Negócios Estrangeiros, na Conferência de Segurança de Munique, e visa, segundo o responsável, alcançar “uma iniciativa de paz” que acabe com a guerra na Ucrânia, no cumprimento da Carta das Nações Unidas.

Com o anúncio do plano de paz, a China do Presidente Xi Jinping reitera a intenção de ser neutra na guerra, apesar de continuar a bloquear os esforços da ONU para condenar a invasão.

O documento, cujo teor a Ucrânia dizia não conhecer, ecoa as alegações russas de que os governos ocidentais são os culpados pela invasão e critica as sanções adotadas contra a Rússia. Com efeito, a China atribuiu a responsabilidade pelas sanções a outros “países relevantes” sem os nomear, mas referindo que esses países “devem parar de abusar das sanções unilaterais” e “fazer a sua parte na redução da crise na Ucrânia”, no que tem razão, em meu entender.

Na reunião de Munique, o secretário de Estado dos Estados Unidos da América (EUA), Antony Blinken, expressou ceticismo sobre a posição de Pequim, mesmo antes da divulgação do plano, avançando ter informações de que a China está “a considerar fornecer apoio letal” à Rússia, alegação que Pequim considerou ser “uma difamação”.

O presidente ucraniano assumiu que gostaria de uma maior aproximação da China à Ucrânia. “Gostaríamos de nos encontrar com a China", apontou Volodymyr Zelensky numa conferência conjunta com o primeiro-ministro espanhol, Pedro Sanchéz, em Kyiev, a 23 de fevereiro.

E Zhanna Leshchynska, a principal diplomata de Kiev em Pequim, citada pela Bloomberg, vincou: “Claro que a Ucrânia gostaria de ver a China ao seu lado […]. Neste momento, vemos que a China não está a apoiar os esforços ucranianos […]. Esperamos que eles também insistam com a Rússia para parar a guerra e retirar as suas tropas do território da Ucrânia.”

O plano apresentado por Pequim vai ao encontro do que vários diplomatas chineses tinham já manifestado. É mais brando para com Moscovo, não explica em que ponto ficam os territórios já anexados pela Rússia e muitos dos 12 pontos são muito gerais e não contêm propostas específicas.

Em todo caso, a China propõe: o respeito pela soberania dos países; o abandono da mentalidade da Guerra Fria; o fim das hostilidades; o regresso das conversações de paz; a resolução da crise humanitária; a proteção dos civis e dos prisioneiros de guerra; a salvaguarda das centrais nucleares; a redução dos riscos estratégicos; o encorajamento às exportações de cereais; o fim das sanções unilaterais; a manutenção da estabilidade das cadeias de abastecimento; e a promoção da reconstrução pós-conflito.

Como se vê, a proposta pede um cessar-fogo, negociações de paz e o fim das sanções à Rússia.

Sem mencionar a Rússia ou a Ucrânia, Pequim defende que a soberania de todos os países deve ser mantida, embora não concretize como é que isso funcionaria para a Ucrânia, tendo em conta que a Rússia já anexou várias regiões do país, a começar pela Crimeia, em 2014.

A proposta também condena a “mentalidade de Guerra Fria”, expressão usada frequentemente pela China quando se refere aos EUA ou à aliança militar entre EUA e Europa, ou seja, a Organização do Tratado do Atlântico Norte (NATO). E considera que “a segurança de uma região não deve ser alcançada pelo fortalecimento ou expansão de blocos militares”.

Segurança radioativa e implementação da carta das Nações Unidas são outros dois dos pontos que o território ucraniano quer ver assegurados.

Acreditando ser pouco provável que os EUA, a União Europeia (UE) e o Reino Unido apoiem o plano, Neil Thomas, analista sénior do grupo Eurásia, em declarações à CNN, dizia: “A proposta chinesa devia ter terminado no primeiro ponto, que pede o respeito pela soberania dos países. Esta guerra pode terminar já amanhã, se a Rússia parar de atacar a Ucrânia e retirar as suas tropas.”

E tinha razão o diplomata. Os EUA e a UE já declararam não aceitar o plano. Ao invés, a UE decretou novo pacote de sanções à Rússia. E o Kremlin, que se mostrou, a princípio, muito interessado no plano já declarou rejeitá-lo e diz não ver o fim da gueira na Ucrânia, por agora.

A China está “a tentar ter o melhor de dois mundos”, afirmou o secretário de Estado dos EUA, a 26 de fevereiro, em declarações à NBC. “Publicamente, apresenta-se como um país a lutar pela paz na Ucrânia, mas, no modo privado, tem fornecido, nos últimos meses, assistência não letal que serve diretamente para ajudar e encorajar o esforço de guerra da Rússia”, atirou Blinken.

O apoio da China à Rússia tem sido amplamente retórico e político. Pequim ajudou a impedir esforços para condenar Moscovo na ONU, mas não há provas públicas de que esteja a fornecer-lhe armas, embora os EUA digam que fornece “apoio não letal”, que pode aumentar e evoluir.

Na Conferência de Segurança de Munique, Blinken disse que os EUA receiam que a China esteja a fornecer armas à Rússia. “Temos informações que nos preocupam de que [os chineses] estão a considerar fornecer apoio letal à Rússia”, afirmou, acrescentando ter expressado ao enviado chinês à reunião, o diplomata Wang Yi, que “isso seria um problema sério”.

Por sua vez, o secretário-geral da NATO adiantou, no dia 23 de fevereiro, que viu alguns sinais de que a China pode estar pronta para fornecer armas e alertou que, a concretizar-se, o país estaria a apoiar uma violação do direito internacional.

No entanto, o ministro da Defesa da Ucrânia, Oleksii Reznikov, expressou dúvidas sobre a disposição da China de enviar ajuda letal à Rússia. “Acho que, se a China os ajudar, não será com armamento. Será com alguns tipos de roupas”, disse Reznikov a 27 de fevereiro, talvez a tentar deitar água na fervura.

“O tom básico e a mensagem fundamental da política são bastante pró-russos”, considerou Li Mingjiang, professor de política externa chinesa e segurança internacional da Universidade Tecnológica de Nanyang, em Singapura, citado pela agência norte-americana de notícias AP.

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O plano de paz vem num momento de pausa dos esforços diplomáticos. No entanto, é de recordar que, em novembro de 2022, enquanto os líderes das 20 maiores economias centravam, durante dois dias, a atenção no que é um dos maiores problemas na Europa, a guerra na Ucrânia, o presidente ucraniano, apresentou aos líderes europeus dez pontos, essenciais, aos olhos do país, para um acordo de paz. “Se não existirem ações concretas para restaurar a paz, significa que a Rússia simplesmente vos quer enganar novamente”, afirmou em videoconferência, garantindo que não haverá um Minsk-3 – alusão aos tratados de Minsk 1 e 2, dantes assinados para obter o cessar-fogo entre as partes. 

Para a Ucrânia, há dez soluções que devem ser asseguradas para que a paz volte ao bloco europeu: segurança radioativa e nuclear, segurança alimentar, segurança energética, libertação de todos os prisioneiros e deportados, implementação da carta das Nações Unidas, retirada das tropas russas e cessar das hostilidades, justiça, proteção ambiental, prevenção da escalada militar e a confirmação do fim da guerra oficial. 

O líder ucraniano frisava que a retirada das tropas contempla também a Crimeia e a região de Donbass – territórios anexados pela Rússia. “A Crimeia é parte da Ucrânia, não se trata apenas de estado dentro de outro estado, é parte do nosso país e da nossa soberania”, defendeu.
Zelensky desafiou os líderes a agirem e adotarem aquelas que são “soluções práticas e eficazes”. 

E os líderes do G20 comprometeram-se com medidas urgentes contra a crise alimentar. 

O acordo de exportação de cereais, assinado em julho entre a Ucrânia, a Rússia, a ONU e a Turquia seria prolongado por 120 dias, como anunciou, nessa altura, o líder ucraniano. “O acordo de cereais será prolongado durante 120 dias”, escreveu Zelensky, na rede social Twitter, apontando que se aguardava o anúncio oficial dos parceiros. Entretanto, a continuação do acordo foi confirmada por António Guterres, secretário-geral da ONU.

O acordo fora temporariamente suspenso em outubro, após um ataque ucraniano à Crimeia, mas foi retomado logo depois. 

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A China tem feito declarações contraditórias sobre a sua posição, dizendo que a Rússia foi provocada pela expansão da NATO para leste, reivindicando neutralidade em relação ao conflito.

Antes do ataque da Rússia, Xi e Putin compareceram à abertura dos Jogos Olímpicos de Inverno do ano anterior, em Pequim, e divulgaram uma declaração segundo a qual os dois países passariam a ter “uma amizade sem limites”. Desde então, a China tem ignorado as críticas ocidentais e reafirmado a sua promessa para com Moscovo. Putin já disse que espera que Xi visite a Rússia nos próximos meses, mas a China ainda não confirmou a viagem. E, agora, depois de mostrar alguma simpatia pelo plano de paz que Pequim propôs, Putin acabou por rejeitá-lo.

As forças russas e chinesas realizaram exercícios conjuntos desde o começo da invasão, o mais recente dos quais com a Marinha sul-africana numa rota na costa sul-africana.

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Foi um erro estratégico a forma precipitada como a UE e os EUA rejeitaram a iniciativa chinesa, ainda antes de a Rússia o fazer. Porém, é de realçar a atitude de Zelensky, que mostrou abertura a Pequim. O líder ucraniano revelou que sabe ler, como poucos, a opinião pública e o xadrez político internacional em que se movimenta. Ao invés do sucedido em tempos, passou a dar a entender que jamais será ele a rejeitar qualquer tentativa de paz.

Após a inação europeia aquando da invasão russa da Crimeia e do Donbass, quase todas as ações europeias e americanas relativas à guerra na Ucrânia eram vistas como positivas por muitos. Agora, a rejeição liminar de um plano de paz constitui um grave erro estratégico e diplomático.

Joe Biden começou por não o rejeitar, mas, logo a seguir, os EUA ridicularizaram a iniciativa de Pequim e repetiram o erro de Bruxelas. A Rússia jamais aceitaria um moderador que tivesse apoiado ou viesse a apoiar a Ucrânia, mas Zelensky, ao contrário da UE e dos EUA, abriu a porta à moderação chinesa. O presidente da Ucrânia, ao invés de rejeitar o interesse de uma potência como a China, que se propõe ajudar a construir a paz, mostrou abertura. Com efeito, a China não é o Irão e muito menos a Bielorrússia, é um país crucial no xadrez internacional e tem sido dos mais moderados apoiantes de Putin, ou um dos mais tolerantes. Por isso, Zelensky viu aqui uma oportunidade de caminhar para a paz.

Jamais o documento inicial coincide com a versão final após negociação das partes. Por isso, os 12 pontos – genéricos ou mais especificados – não passam de um ponto de partida, mas que é essencial. É certo que o plano chinês não é inocente nem desinteressado, mas não é despiciendo. E a sua rejeição liminar e ridicularização permite duvidar da boa-fé dos EUA, da UE e da Rússia.

2023.03.02 – Louro de Carvalho

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