domingo, 26 de março de 2023

A nova criação postula a fé viva, que o milagre corrobora

 

Proclamar e meditar a “visão dos ossos calcinados”, de Ezequiel, o profeta da esperança, o episódio da ressurreição de Lázaro, contido numa das catequeses do livro dos sinais, do 4.º Evangelho, ou a perícopa da Carta aos Romanos em que o protagonista é o Espírito de Deus, tudo isso remete para a ótica da nova criação, originada na ressurreição de Cristo – não ressuscitação, como no caso de Lázaro, nem reencarnação da alma humana noutro corpo (outra pessoa ou outro animal). Neste sentido, os textos da Liturgia da Palavra do 5.º domingo da Quaresma no Ano A são de longe eloquentes.

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Desterrado na Babilónia desde 597 a.C. (no reinado de Joaquim, quando Nabucodonosor conquistou, pela primeira vez, Jerusalém e deportou um primeiro grupo de jerosolimitanos), Ezequiel profetiza aí entre os exilados judeus.

A primeira fase do seu ministério decorre entre 593 a.C., quando sentiu a vocação, e 586 a.C., em que Jerusalém é arrasada pelas tropas de Nabucodonosor e é deportada nova leva de exilados. O profeta tenta destruir as falsas esperanças e anuncia que o exílio está para durar. Mais: os que estão em Jerusalém e multiplicam os pecados e infidelidades farão companhia aos deportados.

A segunda fase da profecia desenrola-se a partir de 586 a.C. até cerca de 570 a.C. Em terra estrangeira, sem Templo, sem sacerdócio e sem culto, os exilados estão desesperados e duvidam da bondade e do amor de Deus. Aí, o profeta alimenta a esperança e transmite ao Povo a certeza de que o Deus libertador e salvador não os abandonou.

O trecho em apreço (Ez 37,12-14) pertence à segunda fase e integra a “visão dos ossos calcinados” (cf Ez 37). Ezequiel descreve a visão de uma planície de ossos. Porém, o Espírito do Senhor sopra sobre os ossos, que, revestidos de pele e de músculos, ganham vida. É a réplica atual e renovada da primeira criação. Os ossos calcinados simbolizam o Povo de Deus, que jaz abandonado, sem esperança e sem futuro. É uma situação de morte. Com efeito, a situação de ausência total de esperança, a falta de um horizonte de futuro é como “estar no túmulo”. No entanto, Javé irá transformar a morte em vida, o desespero em esperança, a escravidão em libertação. Em concreto, promete ao Povo o regresso à sua terra, restaurando a esperança dos exilados num futuro de felicidade e de paz. E derramará o seu Espírito (“ruah”) sobre o Povo condenado à morte.

A referência ao Espírito de Deus na revivificação do homem situa-nos no contexto de Gn 2,7: no homem que criou do barro, Deus infundiu-lhe o seu “hálito de vida” (“neshamá”) para o tornar ser vivente. Agora, sobre o Povo jacente, Deus “infunde o seu Espírito” (“ruah”). É uma nova criação. No entanto, o “ruah”, aqui transmitido ao Povo tumulado, é mais do que a simples força vital, que dá a vida física: é a vida divina que transforma os homens, fazendo com que os corações de pedra – duros, insensíveis, autossuficientes – se tornem corações de carne, sensíveis e bons, capazes de amar Deus e os irmãos. Esta nova criação supera, portanto, a antiga. Com um coração de carne capaz de compreender o amor, o Povo reconhecerá a bondade de Deus, a sua fidelidade à Aliança e às promessas que fez ao seu Povo. Na verdade, apesar das aparências, Deus não abandona o Povo à morte. Mesmo quando tudo parece perdido, Deus vem transformar o desespero em esperança, a morte em vida. Javé é o Deus da vida. Em cada instante da História recria, transforma, renova, encaminha para a vida plena.

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A 2.ª leitura dá-nos o ensejo de meditar um trecho da Carta aos Romanos (Rm 8,8-11), carta que é um texto sereno e didático, em que o apóstolo resume o seu pensamento teológico e expõe a sua conceção do essencial na mensagem cristã. Numa época (anos 57/58) de problemas graves de entendimento e de perspetiva entre os cristãos vindos do judaísmo e os do paganismo, Paulo vinca a unidade da revelação e da história da salvação: Deus tem um desígnio de salvação para todos.

Tendo provado que todos (judeus e pagãos) vivem no domínio do pecado, mas que a justiça de Deus oferece a vida a todos, sem exceção, mostra como, por Jesus Cristo, essa vida se comunica.

A obediência de Cristo ao plano do Pai fez com que a graça da salvação fosse oferecida a todos os homens; acolhendo a graça e aceitando o batismo, os homens tornam-se participantes do dom de Deus; a adesão a Cristo, tornando-os livres das cadeias do egoísmo e do pecado, transforma-os em homens novos; e é o Espírito, dado ao crente no batismo, que potencia essa vida nova.

O Espírito é a personagem central do capítulo 8 da Carta aos Romanos (o termo “pneuma” – “espírito” – surge trinta e quatro vezes nesta Carta; e, dessas, vinte e uma surgem neste capítulo). O Espírito é o responsável pelo facto de a vida nova, que Deus oferece, crescer e se desenvolver. Sobressai, no capítulo, uma das mais fortes antinomias paulinas: carne/Espírito. Viver segundo a carne é viver à margem de Deus (o homem da carne é o do egoísmo, da autossuficiência, cujos valores são o ciúme, o ódio, a ambição, a inveja, a libertinagem); viver pelo Espírito é viver na órbita de Deus, segundo os valores da caridade, da alegria, da paz, da fidelidade e da temperança.

O cristão, no batismo, optou pela vida do Espírito. A partir daí, vive sob o domínio do Espírito. Aberto a Deus, recebe vida de Deus, torna-se filho de Deus, identifica-se com Cristo. E, como Cristo – após uma vida vivida no Espírito e de opção por Deus – ressuscitou e foi elevado à glória do Pai, também o cristão está destinado à vida nova, plena e eterna. É, pois, o Espírito – presente nos que renunciaram à vida da carne e aderiram a Jesus – que liberta os crentes do pecado e da morte, que os transforma em homens novos e os conduz à vida definitiva.

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O trecho evangélico proclamado neste 5.º domingo da Quaresma (Jo 11,1-45) é a quinta catequese (a da vida) do “Livro dos Sinais” – narração que não tem paralelo nos outros Evangelhos, os sinóticos, e que versa a ação criadora e vivificadora do Messias.

O episódio leva-nos a Betânia, aldeia a este do monte das Oliveiras, a cerca de três quilómetros de Jerusalém. O narrador confronta-nos com um triste episódio familiar: a morte de um homem. A família de Betânia, de três pessoas, é conhecida de Jesus, pois diz-se que Jesus amava Marta, a sua irmã Maria e Lázaro. Aliás, a visita de Jesus à família é mencionada em Lc 10,38-42; e João observa que esta Maria é a que ungira o Senhor com perfume e lhe enxugara os pés com os cabelos. Esta família apresenta algumas caraterísticas a anotar. O narrador não refere outros membros, além de Maria, Marta e Lázaro, mas insiste parentesco que os une: são irmãos. O termo “irmão” (“adelphós”) é a designação assumida por Jesus, após a ressurreição, para definir a comunidade dos discípulos (Jo 20,17) e será comum na comunidade cristã (Jo 21,23). É família amiga de Jesus, que Jesus conhece e que O conhece, que ama Jesus e que é amada por Ele, que recebe Jesus em casa. Um facto a abala: um irmão (Lázaro) está gravemente doente. As irmãs mostram interesse, preocupação e solidariedade para com o irmão doente e informam Jesus.

A relação de Jesus com Lázaro é de afeto e de amizade. Todavia, Jesus não vai logo a Betânia; até se atrasa deliberadamente, deixando que a morte do amigo se consuma. Quererá dizer que não veio para alterar o ciclo normal da vida física do homem, libertando-o da morte biológica, mas para dar novo sentido à morte física e para oferecer ao homem a vida eterna.

Passados dois dias, Jesus resolve ir ao encontro do amigo, na Judeia, precisamente onde está a forte oposição a Jesus – e principalmente em Jerusalém. Os discípulos tentam dissuadi-Lo, pois não entenderam, ainda, que o plano do Pai é que Jesus dê vida ao homem enfermo, mesmo correndo riscos e tendo de oferecer a própria vida. Jesus não dá atenção ao medo discipular: a sua preocupação é realizar o plano do Pai. Jesus não pode abandonar o amigo: Ele é o pastor que desafia o perigo por amor dos seus. E é preciso que se veja a glória de Deus.

Chegado a Betânia, Jesus encontra o amigo sepultado havia quatro dias. Na ótica judaica, a morte era definitiva a partir do terceiro dia. Quando Jesus chega, Lázaro está mesmo morto. Jesus não elimina a morte física; mas, para quem é amigo de Jesus, a morte física não é mais do que um sono, de que se acorda para descobrir a vida definitiva.

Entram em cena as irmãs de Lázaro. Marta vem ao encontro de Jesus e insinua a sua reprovação: Jesus podia ter evitado a morte do amigo, se tivesse estado presente. Porém, ainda pode interceder junto de Deus, que O atenderá e devolverá a vida a Lázaro. Marta crê em Deus e que Jesus é um profeta, por quem Deus age no mundo, mas não sabe que Jesus é a vida do Pai e que dá a vida.

Jesus inicia a sua catequese dizendo-lhe: “teu irmão ressuscitará”. Marta pensa que tais palavras são consolação referente à crença farisaica, segundo a qual os mortos reviveriam, no final dos tempos, a quando da última intervenção de Deus na História humana. Mas esse dia está longe.

Porém, Jesus não fala disso. Para os amigos de Jesus, não há morte, pois, Jesus é “a ressurreição e a vida”. A morte física não passa do trânsito desta vida limitada para a vida plena. Jesus não evita a morte física, mas oferece ao homem a vida que se prolonga para sempre. Para tanto, é necessário que o homem adira a Jesus e O siga, na rota do amor e do dom da vida (“todo aquele que vive e crê em mim, nunca morrerá”). A comunidade de Jesus é a comunidade dos que já possuem a vida definitiva. Passarão, é certo, pela morte física, mas essa morte será apenas uma passagem para a verdadeira vida, a que Jesus oferece. Interpelada por esta catequese (“crês nisto?”), Marta adere ao que Jesus diz e professa a fé no Senhor da vida (“creio, Senhor, que Tu és o Messias, o Filho de Deus que havia de vir ao mundo”).

Maria ficara em casa, paralisada pela dor, sem esperança. E Marta – recriada pela fé em Jesus – convida-a a ir ao encontro de Jesus. Maria vai rapidamente, sem se justificar perante alguém, consciente de que só em Jesus encontrará a solução para o sofrimento que lhe asfixia o coração. Também censura Jesus por não ter estado presente, para impedir a morte Lázaro. Jesus não dá palavra de consolo, nem exorta à resignação. Mostra que é, efetivamente, a ressurreição e a vida.

O momento da ressurreição de Lázaro começa com o sereno pranto de Jesus, mostrando o afeto e a saudade. Sente a dor pela morte da pessoa amada, mas a sua dor não é desespero. A entrada da gruta da sepultura de Lázaro está cerrada com a pedra, que simboliza a definitividade da morte, cortando a relação entre o mundo dos vivos e o dos mortos. Contudo, Jesus manda retirar a pedra. Para os crentes, estas duas realidades têm relação. Jesus abate as barreiras criadas pela morte física, que não afasta o homem da vida. Vivificar Lázaro simboliza a concretização da missão que o Pai confiou a Jesus: dar vida plena ao homem. Por isso, Jesus, antes de mandar Lázaro sair do sepulcro, ergue os olhos ao céu e dá graças ao Pai, mostrando a comunhão com o Pai e a obediência na concretização do plano do Pai. Depois, mostra Lázaro vivo na morte, provando que a morte física não interrompe a vida plena do discípulo que ama Jesus e O segue.

Na família de Betânia revê-se a comunidade cristã, formada por irmãos e irmãs. Todos conhecem Jesus, são seus amigos, acolhem-No em casa e na vida. Essa família faz a experiência da morte física, mas lida com ela sem o desespero de quem sente que tudo acabou, sem a ótica farisaica de que Deus só nos ressuscita no final dos tempos e sem a crença platónica na reencarnação. Com efeito, ser familiar de Jesus é saber e sentir que Ele é a ressurreição e a vida e que dá aos seus a vida plena, em todos os momentos. A morte física, que não se evita, é, para os que aderem a Jesus, a passagem imediata para a vida definitiva. Choraremos a partida de um irmão, mas cantamos aleluias, porque ele encontra a vida plena na glória eterna do Deus que ama sem medida.

2023.03.26 – Louro de Carvalho

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