sábado, 4 de março de 2023

Proposta de lei do pacote “Mais Habitação” em consulta pública

 

O texto da proposta de lei do pacote “Mais Habitação”, com as medidas criadas pelo governo para fazer face à crise habitacional, foi publicado pelo governo e encontra-se em consulta pública desde 3 de março. O envio de participações, no âmbito desta consulta pública, faz-se exclusivamente pelo portal ConsultaLEX (consultalex.gov.pt) e pressupõe a inscrição na plataforma dos cidadãos, empresas ou associações. E o texto pode ler-se em ANEXOS DA CONSULTA: LEGISLAÇÃO “MAIS HABITAÇÃO”.

O documento a apresentar à Assembleia da República prevê, entre outras medidas, que mais de metade dos membros de um condomínio pode determinar o encerramento de um alojamento local (AL) no próprio prédio, o que parece vir ao encontro da jurisprudência dos tribunais superiores.

É importante conhecer as principais novidades e os novos pormenores conexos com as medidas anunciadas pelo Governo e que, passado o momento da mera apresentação em PowerPoint, estão agora plasmadas em texto. Parece que a opinião pública não gostou de ver o primeiro-ministro a fazer o anúncio apoiado num suporte digital, quando aceitam os gráficos, os quadros e as tabelas dos comentadores políticos, nomeadamente de Marques Mendes e de Paulo Portas. Não querem um governante atualizado!

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Estabelecendo “medidas com o intuito de garantir habitação para todos”, a lei cria um regime de arrendamento, para subarrendamento, para famílias com dificuldades no acesso à habitação no mercado; cria um apoio à promoção de habitação a custos controlados para arrendamento acessível; e aumenta os solos disponíveis para habitação pública ou a custos controlados.

Para tanto, procede à 4.ª alteração à lei de bases gerais da política pública de solos, de ordenamento do território e de urbanismo, aprovada pela Lei n.º 31/2014, de 30 de maio, alterada pela Lei n.º 74/2017, de 16 de agosto, e pelos Decretos-Leis n.os 3/2021, de 7 de janeiro, e 52/2021, de 15 de junho; à 4.ª alteração ao Regime Jurídico dos Instrumentos de Gestão Territorial, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 80/2015, de 14 de maio, alterado pelos Decretos-Leis n.os 81/2020, de 2 de outubro, 25/2021, de 29 de março, e 45/2022, de 8 de julho; e à alteração ao regime jurídico da urbanização e edificação (RJUE), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 555/99, de 16 de dezembro, na atual redação.

Procede ao alargamento do âmbito de isenções de fiscalização prévia do Tribunal de Contas, através da 14.ª alteração à Lei n.º 98/97, de 26 de agosto, na atual redação; à revogação das autorizações de residência para atividade de investimento, através da 10.ª alteração à Lei n.º 23/2007, de 4 de julho, na atual redação, que aprova o regime jurídico de entrada, permanência, saída e afastamento de estrangeiros do território nacional; ao incentivo à transferência de fogos em alojamento local para o arrendamento habitacional, através da 5.ª alteração ao Decreto-Lei n.º 128/2014, de 29 de agosto, alterado pelo Decreto-Lei n.º 63/2015, de 23 de abril, pelas Leis n.ºs 62/2018, de 22 de agosto, e 71/2018, de 31 de dezembro, e pelo Decreto-Lei n.º 9/2021, de 29 de janeiro, que aprova o regime jurídico da exploração dos estabelecimentos de alojamento local; ao reforço da verificação das condições de habitabilidade dos fogos arrendados ou subarrendados, através da primeira alteração ao Decreto-Lei n.º 89/2021, de 3 de novembro; à fixação do valor das rendas nos novos contratos de arrendamento; e à proteção dos inquilinos com contratos de arrendamento anteriores a 1990 e à garantia da justa compensação do senhorio, através da 12.ª alteração à Lei n.º 6/2006, de 27 de fevereiro, que aprova o Novo Regime de Arrendamento Urbano (NRAU).

E aprova um conjunto de medidas fiscais, através: i) da criação da contribuição extraordinária sobre o alojamento local; ii) da alteração ao Código do Imposto sobre o Valor Acrescentado (IVA), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 394-B/84, de 26 de dezembro, na atual redação; iii) da alteração ao Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (IRS), aprovado em anexo ao Decreto-Lei n.º 442-A/88, de 30 de novembro, na atual redação; iv) da alteração ao Estatuto dos Benefícios Fiscais (EBF), aprovado em anexo ao Decreto-Lei n.º 215/89, de 1 de julho, na sua redação atual; v) da alteração ao Código do Imposto Municipal sobre Imóveis (IMI), aprovado pelo anexo I ao Decreto-Lei n.º 287/2003, de 12 de novembro, na atual redação; vi) da alteração ao Código do Imposto Municipal sobre as Transmissões Onerosas de Imóveis (IMT), aprovado pelo anexo II ao Decreto-Lei n.º 287/2003, de 12 de novembro, na atual redação; vii) da alteração ao Código do Imposto do Selo (IS), aprovado pela Lei n.º 150/99, de 11 de setembro, na atual redação; e viii) da 2.ª alteração ao Decreto-Lei n.º 159/2006, de 8 de agosto, alterado pelo Decreto-Lei n.º 67/2019, de 21 de maio.

A mesma lei, em anexos, aprova o regime jurídico do arrendamento para subarrendamento para famílias com dificuldades no acesso à habitação no mercado e o regime jurídico do apoio à promoção de habitação a custos controlados para arrendamento acessível.

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Além dos incentivos já conhecidos, para que os proprietários que têm as casas em regime de AL as passem para regime de arrendamento habitacional (através, por exemplo, da taxa de zero em IRS), ressalta, agora, a possibilidade de, num prédio urbano, o condomínio poder decidir pelo término do regime de alojamento local. Basta, para isso, que mais de metade dos elementos do condomínio o decida em sede de assembleia de condóminos.

No artigo 9.º da proposta, pode ler-se que, em caso de a atividade de AL ser exercida numa fração autónoma de edifício ou parte de prédio urbano suscetível de utilização independente, “a assembleia de condóminos, por deliberação de mais de metade da permilagem do edifício, pode opor-se ao exercício da atividade de alojamento local na referida fração”.

Exceto nas regiões autónomas, até 31 de dezembro de 2030 fica suspensa a emissão de novos registos de AL, “com exceção das zonas para alojamento rural”.

Os AL existentes caducam na mesma data, tendo, depois, a duração de cinco anos “contados a partir da data da comunicação prévia”. Porém, será necessária autorização por parte da "câmara municipal territorialmente competente”.

As rendas antigas vão ficar congeladas em definitivo – e fora do NRAU – mas, segundo pacote legislativo em causa, vão ser atualizadas consoante a inflação e não consoante o rendimento bruto dos inquilinos, como sucede hoje. Isto é, mesmo que o rendimento da pessoa não aumente, o senhorio pode decidir um aumento da renda até ao valor da inflação.

A compensar os senhorios pelos entraves aos aumentos de renda, o governo propõe que fiquem isentos de tributação em sede de IRS sobre os rendimentos prediais, bem como em sede de IMI. E terão uma compensação monetária “pelas rendas não cobradas aos arrendatários”, cujo montante e forma de cálculo ainda não estão definidos.

Como anunciado pelo governo, também as novas rendas terão tetos máximos para aumento. A proposta de lei – em consulta pública – esclarece que a renda inicial dos novos contratos de arrendamento para fins habitacionais não pode exceder o valor da última renda praticada sobre o mesmo imóvel, num contrato anterior, mais a variação de, no máximo, 2% (atribuída à inflação).

Sobre a tributação das rendas no IRS não há novidades. Segue apenas a concretização do que já tinha sido anunciado. Os rendimentos prediais são tributados à taxa liberatória de 25% que será mais baixa em função da duração do contrato: entre 5 e 10 anos paga 15%, entre 10 e 20 anos pagam 10% e acima de 20 anos pagam apenas 5%.

No caso de casas que transitem de AL, há uma isenção de IRS ou de impostos sobre o rendimento das pessoas coletivas (IRC), até 2030 desde que “o registo do estabelecimento de alojamento local tenha ocorrido até 31 de dezembro de 2022” e o novo contrato de arrendamento com “respetiva inscrição no Portal das Finanças ocorra até 31 de dezembro de 2024”.

Como o governo anunciou, os municípios devem identificar, nas suas zonas geográficas, as casas devolutas com condições de habitabilidade e que possibilitem o imediato arrendamento. E cabe ao município, após a devida identificação, apresentar uma proposta de arrendamento do imóvel ao proprietário. Por sua vez, o proprietário terá de responder à proposta em 10 dias, mas, se não responder, poderá usufruir de mais 90 dias para dar um uso ao imóvel. Só ao fim desse tempo é que o município avançará para o arrendamento forçado.

De fora do conceito de imóvel devoluto ficam, entre outros, os que se destinem a “segundas habitações, habitações de emigrantes ou habitações de pessoas deslocadas por razões profissionais, de formação ou de saúde”. Para ser considerada devoluta, a casa tem de estar desocupada durante, pelo menos, um ano, sendo indícios disso a ausência de contratos de serviços (água, luz, telecomunicações) ou de consumos, ou a existência de consumos baixos.

Outra das novidades é uma inversão de marcha do governo quanto à isenção de mais-valias (impostos) em relação à venda de imóveis ao Estado. Assim, determina-se que os proprietários que vendam casas ao Estado ficam isentos de tributação sobre as mais-valias decorrentes dessas operações. Excetua-se quem tem “domicílio fiscal em país, território ou região com regime fiscal mais favorável, constante de lista aprovada por portaria do membro do governo responsável pela área das finanças” isto é, entidades com sede nos “paraísos fiscais” ou “offshores”.

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Da leitura do texto depreende-se que o governo limou algumas arestas, como anteviu o ministro da Economia, António Costa Silva, e fá-lo-á mais, ante os contributos da consulta em curso.

Não adianta invocar a Constituição (CRP) para defender, com unhas e dentes, a iniciativa privada ou a propriedade privada, constitucionalmente protegidas iuxta modum. Desde que a lei ordinária não tome medidas desajustadas ou desproporcionadas, não haverá atropelo à lei fundamental. Por isso, considero precipitada a hipótese avançada do chefe de Estado de submeter a lei à apreciação do Tribunal Constitucional. E as autarquias clamam que o assunto é com elas. Porém, é de questionar sobre o que têm andado a fazer ou a omitir no campo da habitação. Nem vale a pena aduzir que o IMI é municipal, pois a tributação (génese/modificação) é competência parlamentar.

O artigo 61.º, n.º 1 estabelece que “a iniciativa económica privada exerce-se livremente nos quadros definidos pela Constituição e pela lei e tendo em conta o interesse geral”, dentro da velha máxima “Salus Reipublicae lex suprema esto”. E o artigo 62.º, n.º 1 estabelece que “a todos é garantido o direito à propriedade privada e à sua transmissão em vida ou por morte, nos termos da Constituição”. E o seu n.º 2 acautela que “a requisição e a expropriação por utilidade pública só podem ser efetuadas com base na lei e mediante o pagamento de justa indemnização”.

Ora, não há expropriação, mas impulso à rendibilização. E não é do espírito da CRP a legitimação da especulação imobiliária ou a consideração da casa como mercadoria acessível só a carteiras bem entumecidas. E responda o Estado aos legítimos anseios dos que lutam por vida digna e justa (sum cuique reddere), que os populismos deixarão de ter razão de ser e não convencerão ninguém.

2023.03.04 – Louro de Carvalho

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