Num livro
publicado pela Rubbettino, o moralista e vaticanista Giacomo Galeazzi traça a
vida de Bento XVI através de antecedentes, anedotas e testemunhos: desde os
estudos à experiência do Concílio Vaticano II – em que participou como perito
do arcebispo de Colónia, o cardeal Joseph Frings, e, mais tarde, como membro autónomo de
diversas comissões – até ao
pontificado e aos 10 anos como Papa Emérito.
A este
respeito, Miche Pennisi, arcebispo de Monreale, na Sicília, de 8 de fevereiro de 2013
a 28 de abril de 2022 – após a reorganização da igreja siciliana em 2000, os
arcebispos de Monreale não são metropolitas, mas mantêm o posto pessoal de
arcebispo – diz que é “importante
iniciar uma reflexão teológica e canónica sobre a renúncia de um pontífice ao
ministério petrino”.
As últimas
palavras que Bento XVI proferiu, na condição de Sumo Pontífice, foram as
seguintes:
“Vós sabeis
que este meu dia é diferente dos anteriores; eu não sou mais o Sumo Pontífice
da Igreja Católica: até às oito horas da noite ainda serei, depois não mais.
Sou simplesmente um peregrino que inicia a última etapa de sua peregrinação
nesta terra.”
Na tarde
daquele dia 28 de fevereiro de 2013, a praça fronteira ao palácio Castelgandolfo
estava cheia e as ruas vizinhas também. As pessoas gritavam “Obrigado” e lia-se
nos cartazes, erguidos junto com bandeiras e faixas: “Não vá embora”.
Já passaram
dez anos desde a última aparição pública de Bento XVI como Pontífice da Igreja
universal. Ratzinger, como pude ver pela televisão, saudou o mundo a partir do
palácio Castel Gandolfo com um breve discurso. Imediatamente depois, as portas
do palácio fecharam-se e os guardas suíços deixaram os seus postos. A renúncia
ao papado, comunicada em latim a 11 de fevereiro, tornou-se efetiva e a Sé
Apostólica ficou vacante, pela primeira vez em muitos séculos, não por morte do
Papa, mas na sequência da renúncia
Quem recorda
essa página na História da Igreja moderna, como se disse, é o jornalista Giacomo
Galeazzi, há muito tempo vaticanista do jornal italiano La Stampa, no livro Ratzinger. Il Papa sceso dal trono, publicado
pela Rubbettino.
“Em 28 de
fevereiro de 2013, o Papa, que levantou, tantas vezes, a voz em defesa da vida
e da família e contra o pecado interno da Igreja, que definiu, na sua viagem
pastoral a Portugal, como “a pior perseguição”, desceu do trono e retirou-se,
em oração, para o Mater Ecclesiae, ex-mosteiro no coração dos Jardins do
Vaticano, sua residência de 2 de maio de 2013 até à sua morte, morte que
encerrou “um período sem precedentes em dois milénios de História cristã”.
“Desceu do
trono”. A asserção escolhida por Galeazzi, autor de numerosos volumes sobre os
três últimos Papas, não é acidental, antes lembra a etimologia latina do que é comumente
chamado de “trono pontifício”, “sŏlium pontifĭcĭus” (o trono do Pontífice). Lembro-me
de que D. João da Silva Campos Neves, o primeiro Bispo de Lamego que conheci
pessoalmente, se intitulava, em provisões e cartas pastorais, como “Bispo de Lamego e Assistente ao Sólio
Pontifício”.
Em Bento
XVI, o objetivo é indicar o gesto de renúncia ao ministério, às funções, aos
privilégios, bem como o movimento, o caminho, o processo que levou Ratzinger a
passar de pastor da Igreja universal a monge escondido do mundo, como disse no
seu último Angelus.
Ao
despedir-se, deixou claro que havia algo na sua eleição como Papa que
permaneceria “para sempre”. E, até ao final, usou a veste branca, assinou como
“Benedictus XVI, Papa emeritus”, viveu na área de São Pedro. Tudo isso levou a
interpretações hostis à unidade da Igreja, assim como entre o Papa emérito e o
Papa reinante. A sua morte, que ocorreu no dia em que a Igreja se consagra à
ação de graças pelos benefícios recebidos no ano a findar, dissolveu as
ambiguidades, pondo fim à era do que erroneamente se chamava “dois Papas” que
compartilhavam fraternalmente o mesmo espaço físico e a dedicação à mesma
missão: o bem supremo da Igreja.
Para
entender tudo isso, agora que passaram dois meses desde o falecimento do homem
que foi Papa Emérito durante dez anos, Giacomo Galeazzi tece os fios da
história pessoal de Joseph Ratzinger – Bento XVI, recorrendo a fontes
históricas e jornalísticas, testemunhos, histórias de bastidores e pequenas
anedotas que lhe marcaram a vida, os estudos e oito anos de pontificado. Assim,
nas 188 páginas do livro é possível, por exemplo, encontrar, entre outros, o
nome do ex-presidente da República Italiana, Francesco Cossiga, que, “muitas
vezes, citou as suas conversas com Bento XVI, com quem estava ligado por um
amor à literatura e também por uma paixão por doces”. Aos domingos, o ex-chefe
de Estado mandava entregar-lhe, no Vaticano, uma cassata ou um pastiera.
Como se
depreende do que se vem expondo, a técnica utilizada pelo autor para contar a
história é a regressiva ou do flashback.
Parte do presente, ou seja, do funeral de 5 de janeiro de 2023, com o “caixão
sóbrio e essencial” na Praça de São Pedro, para voltar, no tempo, e reviver as
fases históricas da vida de Ratzinger, começando pela sua juventude, com a
“resistência intelectual” ao nazismo, os estudos académicos e, acima de tudo, a
experiência como perito do Concílio. Para o jovem teólogo – residente em Roma,
no Hotel Zanardelli, onde aprendeu a prática italiana da ‘soneca’ – o Vaticano
II “foi um verdadeiro sinal do destino, da Providência”, diz o autor. Viveu as
quatro sessões daquela aventura, imerso no ritmo deslumbrante de iniciativas, de
sessões de trabalho, de brainstorming e de elaboração de
documentos, em estreito contacto com os maiores bispos e teólogos do século XX:
de Congar a Rahner a Volk, de De Lubac a Danièlou, que permearam seu
pensamento.
O outro
evento histórico que o livro revive é o Conclave de 2005, que o elegeu o 264.º
Sucessor de Pedro. “Não foi surpresa para ninguém”, escreve Galeazzi, lembrando
os estreitos laços com o antecessor, São João Paulo II, que recusou, a 16 de
abril de 2002, a demissão do prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé
(CDF), que naquele dia completava 75 anos. “Karol Wojtyla, já muito fatigado
pela doença, não tinha a intenção de renunciar ao seu mais importante colaborador
no governo central da Igreja”, lê-se no texto.
A fé
granítica, o episcopado como paternidade, as raízes e o legado de um Papa
intelectual, “que cresceu com Santo Agostinho, São Boaventura e Orígenes”, são
os outros temas explorados no livro, a par de uma interessante análise sobre a
modernidade da teologia de Joseph Ratzinger, um teólogo que não é criativo, mas
que “devolveu modernidade à tradição”.
O jornalista
esclarece o campo dos “mal-entendidos em torno das batalhas bioéticas travadas
por Bento XVI, lançando luz sobre a formulação que marcou todo o seu
pontificado: a dos princípios não negociáveis relativos à bioética (defesa da
vida, da família, da liberdade educacional)”. E observa o pensamento do
pontífice alemão sobre economia e finanças, que exerceu um fascínio em alguns
intelectuais seculares, como Marcello Pera ou Massimo Cacciari ou num “ateu
devoto” como Giuliano Ferrara, tornando-se um ponto de referência para aqueles
aos quais foi aplicada a definição de “marxistas ratzingerianos”.
Um ponto,
este último, também destacado por D. Michele Pennisi, no seu pós-prefácio em
que convida: “Depois da decisão profética do Papa Bento XVI de renunciar a
servir a Igreja universal, é importante iniciar uma reflexão do ponto de vista teológico
e canónico sobre a condição de um Romano Pontífice que renuncie ao exercício do
ministério petrino.”
***
No dizer do
eurodeputado socialdemocrata Paulo Rangel, Bento XVI ficará para a História
como o Papa que renunciou, mudando a arquitetura político-institucional do
Vaticano, mas também como um dos grandes pensadores do século XX e, sobretudo,
um pensador da Europa. A escolha do nome Bento XVI foi homenagem a Bento XV
pelo seu papel na Europa da Grande Guerra. E Joseph Ratzinger nunca subestimou
o risco do regresso da guerra à Europa.
O tão
aclamado Francisco, não seria possível sem Bento XVI e a inspiração da sua
renúncia. É mister, em Ratzinger, regressar ao tempo do nazismo, à ascensão
como teólogo, ao seu papel progressista no Concílio a par de Hans Küng, à
regressão que fez com o Maio de 68 e ao tempo de prefeito da CDF. Algumas das
posições conservadoras imputadas a Bento XVI não são rigorosas. Apesar de certa
linguagem técnica e até hermética, deixa pistas para muita da pedagogia de
Francisco. O problema de alguns com Bento XVI não residia nas suas posições,
mas na apropriação que certas correntes conservadoras abusivamente querem fazer
delas.
O seu grande
gesto revolucionário é a renúncia ao papado, gesto de impacto histórico, mas
imperdoável para as correntes mais conservadoras, que postula uma reforma na
compreensão do lugar e do papel do Papa, tópicos cuja reformulação o próprio
defendia.
Com a superior
inteligência de que era dotado e com o seu notável conhecimento da História da
Igreja, sabia que, dificilmente, as coisas ficariam iguais, até porque a
renúncia contrasta com a resistência do antecessor. Ambos os gestos encantaram
o mundo: um, pelo exemplo de valor dado aos que padecem de uma incapacidade; o outro,
pelo desapego e generosidade de que é portador.
A renúncia
implica a “dessacralização” do papado e abre a porta a uma visão mais colegial
e mais sinodal da Igreja, bem como à compreensão do múnus papal, não como irrenunciável
dignidade eclesiástica, mas como um serviço temporário. Assim, Bento XVI
transmitiu, humildemente, a mensagem de que é o Espírito que orienta a Igreja,
a qual precisa de reformas, até pela “captura” que muitos quiseram e querem
fazer dela aproveitando-se da postura de Ratzinger, dizendo que ele não estaria,
ou que estaria, segundo outros, em condições de conduzir a Igreja.
O efeito
preventivo da renúncia foi manifesto, por ter atraído visibilidade para o
processo de sucessão que impedia a sua manipulação pelo pessoal da Cúria Romana,
por ter surpreendido possíveis manipuladores e por a existência física de Bento
XVI dar garantias únicas de lisura.
E, por ter
vindo de quem veio, a renúncia tem a marca da “dessacralização”, da
“humanização”, da “normalização” do papado. Com efeito, ao publicar livros na
qualidade do teólogo Joseph Ratzinger e não de Papa – é o caso, pelo menos, dos
três volumes de Jesus de Nazaré –, Bento XVI assinala ao papado a
condição de serviço e não de sagração que imprima caráter. Há um Papa na
plenitude das funções e uma pessoa singular que não age na veste de Papa. Esta
separação de esferas tem significado histórico e está em harmonia com a futura decisão
fundamental da renúncia, que reconfigura o múnus papal que deixa de ser
“vitalício” por si. Nada que surpreenda para quem leu os seus livros ou a sua
entrevista Luz do Mundo a Peter Seewald.
Na verdade,
o Papa não tem uma ordenação para lá da episcopal. É investido no cargo de
Bispo de Roma e, como tal, tem jurisdição também em toda a Igreja Católica.
Como o bispo que se torna emérito, não deixa de ser bispo, mas deixa de ser o
Bispo, também o Papa que se torne emérito não deixa de ser bispo, mas deixa de
ser o Papa-bispo de Roma. Porém, como o bispo emérito mantém o título da antiga
diocese, também Bento XVI manteve, com razão, o título de Papa emérito ou bispo
emérito de Roma e o uso da veste branca, mas não a férula ou báculo papal.
A diferença
é que a renúncia do comum bispo diocesano carece de aceitação e a do Papa não
carece. Por outro lado, o bispo emérito pode, em certos casos substituir o
Bispo diocesano, o que, no caso do Papa, podia oferecer alguma confusão sobre
quem é o genuíno timoneiro.
Entretanto,
o Papa é único, neste caso, Francisco.
2023.03.02 – Louro de Carvalho
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