quinta-feira, 2 de março de 2023

Há dez anos, o Papa “desceu do trono”

 

Num livro publicado pela Rubbettino, o moralista e vaticanista Giacomo Galeazzi traça a vida de Bento XVI através de antecedentes, anedotas e testemunhos: desde os estudos à experiência do Concílio Vaticano II – em que participou como perito do arcebispo de Colónia, o cardeal Joseph Frings, e, mais tarde, como membro autónomo de diversas comissões – até ao pontificado e aos 10 anos como Papa Emérito.

A este respeito, Miche Pennisi, arcebispo de Monreale, na Sicília, de 8 de fevereiro de 2013 a 28 de abril de 2022 – após a reorganização da igreja siciliana em 2000, os arcebispos de Monreale não são metropolitas, mas mantêm o posto pessoal de arcebispo – diz que é “importante iniciar uma reflexão teológica e canónica sobre a renúncia de um pontífice ao ministério petrino”.

As últimas palavras que Bento XVI proferiu, na condição de Sumo Pontífice, foram as seguintes:

“Vós sabeis que este meu dia é diferente dos anteriores; eu não sou mais o Sumo Pontífice da Igreja Católica: até às oito horas da noite ainda serei, depois não mais. Sou simplesmente um peregrino que inicia a última etapa de sua peregrinação nesta terra.”

Na tarde daquele dia 28 de fevereiro de 2013, a praça fronteira ao palácio Castelgandolfo estava cheia e as ruas vizinhas também. As pessoas gritavam “Obrigado” e lia-se nos cartazes, erguidos junto com bandeiras e faixas: “Não vá embora”.

Já passaram dez anos desde a última aparição pública de Bento XVI como Pontífice da Igreja universal. Ratzinger, como pude ver pela televisão, saudou o mundo a partir do palácio Castel Gandolfo com um breve discurso. Imediatamente depois, as portas do palácio fecharam-se e os guardas suíços deixaram os seus postos. A renúncia ao papado, comunicada em latim a 11 de fevereiro, tornou-se efetiva e a Sé Apostólica ficou vacante, pela primeira vez em muitos séculos, não por morte do Papa, mas na sequência da renúncia

Quem recorda essa página na História da Igreja moderna, como se disse, é o jornalista Giacomo Galeazzi, há muito tempo vaticanista do jornal italiano La Stampa, no livro Ratzinger. Il Papa sceso dal trono, publicado pela Rubbettino.

“Em 28 de fevereiro de 2013, o Papa, que levantou, tantas vezes, a voz em defesa da vida e da família e contra o pecado interno da Igreja, que definiu, na sua viagem pastoral a Portugal, como “a pior perseguição”, desceu do trono e retirou-se, em oração, para o Mater Ecclesiae, ex-mosteiro no coração dos Jardins do Vaticano, sua residência de 2 de maio de 2013 até à sua morte, morte que encerrou “um período sem precedentes em dois milénios de História cristã”.

“Desceu do trono”. A asserção escolhida por Galeazzi, autor de numerosos volumes sobre os três últimos Papas, não é acidental, antes lembra a etimologia latina do que é comumente chamado de “trono pontifício”, “sŏlium pontifĭcĭus” (o trono do Pontífice). Lembro-me de que D. João da Silva Campos Neves, o primeiro Bispo de Lamego que conheci pessoalmente, se intitulava, em provisões e cartas pastorais,  como “Bispo de Lamego e Assistente ao Sólio Pontifício”.

Em Bento XVI, o objetivo é indicar o gesto de renúncia ao ministério, às funções, aos privilégios, bem como o movimento, o caminho, o processo que levou Ratzinger a passar de pastor da Igreja universal a monge escondido do mundo, como disse no seu último Angelus.

Ao despedir-se, deixou claro que havia algo na sua eleição como Papa que permaneceria “para sempre”. E, até ao final, usou a veste branca, assinou como “Benedictus XVI, Papa emeritus”, viveu na área de São Pedro. Tudo isso levou a interpretações hostis à unidade da Igreja, assim como entre o Papa emérito e o Papa reinante. A sua morte, que ocorreu no dia em que a Igreja se consagra à ação de graças pelos benefícios recebidos no ano a findar, dissolveu as ambiguidades, pondo fim à era do que erroneamente se chamava “dois Papas” que compartilhavam fraternalmente o mesmo espaço físico e a dedicação à mesma missão: o bem supremo da Igreja.

Para entender tudo isso, agora que passaram dois meses desde o falecimento do homem que foi Papa Emérito durante dez anos, Giacomo Galeazzi tece os fios da história pessoal de Joseph Ratzinger – Bento XVI, recorrendo a fontes históricas e jornalísticas, testemunhos, histórias de bastidores e pequenas anedotas que lhe marcaram a vida, os estudos e oito anos de pontificado. Assim, nas 188 páginas do livro é possível, por exemplo, encontrar, entre outros, o nome do ex-presidente da República Italiana, Francesco Cossiga, que, “muitas vezes, citou as suas conversas com Bento XVI, com quem estava ligado por um amor à literatura e também por uma paixão por doces”. Aos domingos, o ex-chefe de Estado mandava entregar-lhe, no Vaticano, uma cassata ou um pastiera.

Como se depreende do que se vem expondo, a técnica utilizada pelo autor para contar a história é a regressiva ou do flashback. Parte do presente, ou seja, do funeral de 5 de janeiro de 2023, com o “caixão sóbrio e essencial” na Praça de São Pedro, para voltar, no tempo, e reviver as fases históricas da vida de Ratzinger, começando pela sua juventude, com a “resistência intelectual” ao nazismo, os estudos académicos e, acima de tudo, a experiência como perito do Concílio. Para o jovem teólogo – residente em Roma, no Hotel Zanardelli, onde aprendeu a prática italiana da ‘soneca’ – o Vaticano II “foi um verdadeiro sinal do destino, da Providência”, diz o autor. Viveu as quatro sessões daquela aventura, imerso no ritmo deslumbrante de iniciativas, de sessões de trabalho, de brainstorming e de elaboração de documentos, em estreito contacto com os maiores bispos e teólogos do século XX: de Congar a Rahner a Volk, de De Lubac a Danièlou, que permearam seu pensamento.

O outro evento histórico que o livro revive é o Conclave de 2005, que o elegeu o 264.º Sucessor de Pedro. “Não foi surpresa para ninguém”, escreve Galeazzi, lembrando os estreitos laços com o antecessor, São João Paulo II, que recusou, a 16 de abril de 2002, a demissão do prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé (CDF), que naquele dia completava 75 anos. “Karol Wojtyla, já muito fatigado pela doença, não tinha a intenção de renunciar ao seu mais importante colaborador no governo central da Igreja”, lê-se no texto.

A fé granítica, o episcopado como paternidade, as raízes e o legado de um Papa intelectual, “que cresceu com Santo Agostinho, São Boaventura e Orígenes”, são os outros temas explorados no livro, a par de uma interessante análise sobre a modernidade da teologia de Joseph Ratzinger, um teólogo que não é criativo, mas que “devolveu modernidade à tradição”.

O jornalista esclarece o campo dos “mal-entendidos em torno das batalhas bioéticas travadas por Bento XVI, lançando luz sobre a formulação que marcou todo o seu pontificado: a dos princípios não negociáveis relativos à bioética (defesa da vida, da família, da liberdade educacional)”. E observa o pensamento do pontífice alemão sobre economia e finanças, que exerceu um fascínio em alguns intelectuais seculares, como Marcello Pera ou Massimo Cacciari ou num “ateu devoto” como Giuliano Ferrara, tornando-se um ponto de referência para aqueles aos quais foi aplicada a definição de “marxistas ratzingerianos”.

Um ponto, este último, também destacado por D. Michele Pennisi, no seu pós-prefácio em que convida: “Depois da decisão profética do Papa Bento XVI de renunciar a servir a Igreja universal, é importante iniciar uma reflexão do ponto de vista teológico e canónico sobre a condição de um Romano Pontífice que renuncie ao exercício do ministério petrino.”

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No dizer do eurodeputado socialdemocrata Paulo Rangel, Bento XVI ficará para a História como o Papa que renunciou, mudando a arquitetura político-institucional do Vaticano, mas também como um dos grandes pensadores do século XX e, sobretudo, um pensador da Europa. A escolha do nome Bento XVI foi homenagem a Bento XV pelo seu papel na Europa da Grande Guerra. E Joseph Ratzinger nunca subestimou o risco do regresso da guerra à Europa.

O tão aclamado Francisco, não seria possível sem Bento XVI e a inspiração da sua renúncia. É mister, em Ratzinger, regressar ao tempo do nazismo, à ascensão como teólogo, ao seu papel progressista no Concílio a par de Hans Küng, à regressão que fez com o Maio de 68 e ao tempo de prefeito da CDF. Algumas das posições conservadoras imputadas a Bento XVI não são rigorosas. Apesar de certa linguagem técnica e até hermética, deixa pistas para muita da pedagogia de Francisco. O problema de alguns com Bento XVI não residia nas suas posições, mas na apropriação que certas correntes conservadoras abusivamente querem fazer delas.

O seu grande gesto revolucionário é a renúncia ao papado, gesto de impacto histórico, mas imperdoável para as correntes mais conservadoras, que postula uma reforma na compreensão do lugar e do papel do Papa, tópicos cuja reformulação o próprio defendia.

Com a superior inteligência de que era dotado e com o seu notável conhecimento da História da Igreja, sabia que, dificilmente, as coisas ficariam iguais, até porque a renúncia contrasta com a resistência do antecessor. Ambos os gestos encantaram o mundo: um, pelo exemplo de valor dado aos que padecem de uma incapacidade; o outro, pelo desapego e generosidade de que é portador.

A renúncia implica a “dessacralização” do papado e abre a porta a uma visão mais colegial e mais sinodal da Igreja, bem como à compreensão do múnus papal, não como irrenunciável dignidade eclesiástica, mas como um serviço temporário. Assim, Bento XVI transmitiu, humildemente, a mensagem de que é o Espírito que orienta a Igreja, a qual precisa de reformas, até pela “captura” que muitos quiseram e querem fazer dela aproveitando-se da postura de Ratzinger, dizendo que ele não estaria, ou que estaria, segundo outros, em condições de conduzir a Igreja.

O efeito preventivo da renúncia foi manifesto, por ter atraído visibilidade para o processo de sucessão que impedia a sua manipulação pelo pessoal da Cúria Romana, por ter surpreendido possíveis manipuladores e por a existência física de Bento XVI dar garantias únicas de lisura.

E, por ter vindo de quem veio, a renúncia tem a marca da “dessacralização”, da “humanização”, da “normalização” do papado. Com efeito, ao publicar livros na qualidade do teólogo Joseph Ratzinger e não de Papa – é o caso, pelo menos, dos três volumes de Jesus de Nazaré –, Bento XVI assinala ao papado a condição de serviço e não de sagração que imprima caráter. Há um Papa na plenitude das funções e uma pessoa singular que não age na veste de Papa. Esta separação de esferas tem significado histórico e está em harmonia com a futura decisão fundamental da renúncia, que reconfigura o múnus papal que deixa de ser “vitalício” por si. Nada que surpreenda para quem leu os seus livros ou a sua entrevista Luz do Mundo a Peter Seewald.

Na verdade, o Papa não tem uma ordenação para lá da episcopal. É investido no cargo de Bispo de Roma e, como tal, tem jurisdição também em toda a Igreja Católica. Como o bispo que se torna emérito, não deixa de ser bispo, mas deixa de ser o Bispo, também o Papa que se torne emérito não deixa de ser bispo, mas deixa de ser o Papa-bispo de Roma. Porém, como o bispo emérito mantém o título da antiga diocese, também Bento XVI manteve, com razão, o título de Papa emérito ou bispo emérito de Roma e o uso da veste branca, mas não a férula ou báculo papal.

A diferença é que a renúncia do comum bispo diocesano carece de aceitação e a do Papa não carece. Por outro lado, o bispo emérito pode, em certos casos substituir o Bispo diocesano, o que, no caso do Papa, podia oferecer alguma confusão sobre quem é o genuíno timoneiro.

Entretanto, o Papa é único, neste caso, Francisco.

2023.03.02 – Louro de Carvalho

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