segunda-feira, 13 de março de 2023

Lições do episódio do encontro de Jesus com a Samaritana

 

Na Liturgia da Palavra do 3.º domingo da Quaresma, no Ano A, é proclamada a perícopa do 4.º Evangelho (Jo 4,5-42), com o encontro de Jesus com uma mulher (Estrangeira e mulher!), junto de um poço, na cidade samaritana de Sicar.

A Samaria era a região central da Palestina – heterodoxa, habitada por uma raça mista de sangue (Judeus e Pagãos) e de religião sincretista. A animosidade entre Samaritanos e Judeus começara em 721 a.C., com a tomada da Samaria pelos assírios e com a deportação de 4% dos habitantes. Aí se instalaram colonos assírios que se misturaram com a população local. Segundo os Judeus, os Samaritanos paganizaram-se. E a relação entre as duas comunidades agrava-se após o regresso do Exílio: os Judeus recusam a ajuda dos Samaritanos na reconstrução do Templo de Jerusalém (ano 437 a.C.), denunciam os casamentos mistos e enfrentam a oposição dos Samaritanos.

Em 333 a.C., surgiu novo polo de inimizade: os Samaritanos edificaram o Templo do monte Garizim, que foi destruído, em 128 a.C., por João Hircano. E continuaram as ações maléficas, tendo a mais famosa ocorrido por volta do ano 6 d.C., quando os Samaritanos profanaram o Templo de Jerusalém na Páscoa, espalhando ossos humanos nos átrios.

Os judeus desprezavam os Samaritanos por serem mistura de sangue israelita com estrangeiros e consideravam-nos hereges; e os Samaritanos davam-lhes igual desprezo.

O episódio em referência ocorre junto ao poço de Jacob, no rico vale entre os montes Ebal e Garizim, perto de Siquém (atual Askar). É um poço estreito, aberto na rocha calcária (segundo a tradição, pelo patriarca Jacob), com profundidade superior a 30 metros. Dados arqueológicos revelam que serviu os Samaritanos entre 1000 a.C. e 500 d.C. (ainda se pode extrair dele água). Tornou-se um elemento mítico, sintetizando os poços abertos pelos patriarcas e a água que Moisés fez brotar do rochedo e tornando-se figura da Lei (donde brota a água viva que mata a sede de vida do Povo), que a tradição considerava observada pelos patriarcas, antes de dada por Moisés.

O Evangelho de João apresenta Jesus como o Messias, Filho de Deus, enviado pelo Pai a criar um Homem Novo. No “Livro dos Sinais”, o evangelista – recorrendo aos sinais da água, do pão, da luz, do pastor e da vida – faz as catequeses da ação criadora do Messias. Nestes termos, o trecho em apreço faz a primeira catequese do “Livro dos Sinais”: pela água, João descreve a ação criadora e vivificadora de Jesus. No centro do cenário, está o poço de Jacob, em torno do qual gravitam as personagens principais: Jesus e a samaritana. Esta, apresentada sem nome próprio, representa a Samaria, que procura a água capaz de matar a sua sede de vida plena. E Jesus espera por esta mulher – referência ao Deus-esposo que vem ao encontro do povo/esposa infiel para lhe fazer descobrir o amor. De facto, o profeta Oseias, inventor desta imagem matrimonial para representar a relação Deus/Povo, pregou na Samaria.

O poço representa Lei, sistema axial da experiência religiosa samaritana. Nele os Samaritanos procuravam a água da vida. Não obstante, não correspondia à sede de vida dos que o procuravam. Os Samaritanos, reconhecida tal insuficiência, procuravam outras vias religiosas. Por isso, Jesus alude aos cinco maridos que a mulher teve, os cinco deuses dos Samaritanos (vd 2Rs 17,29-41).

Estamos, pois, ante um quadro que representa a busca da vida, mas sem a achar. A mulher sente a falência das usuais ofertas de vida: matam a sede por curtos instantes, mas quem procura a resposta nelas voltará a ter sede, como sucede com a água física. É no reconhecimento da insuficiência e na procura que se cria a recetividade à Boa Nova de Jesus. Ele, cansado, senta-se junto do poço, como a querer ocupar-lhe o lugar, e, começando por pedir à mulher que lhe dê da água do poço, propõe-lhe a água viva que matará definitivamente a sede de vida eterna. Jesus será o novo poço, onde todos os que têm sede de vida encontrarão resposta para a sua sede.

É a água do Espírito que jorra para a vida eterna e que, no Evangelho de João, é o grande dom de Deus. Na conversa com Nicodemos, Jesus avisara que “quem não nascer da água e do Espírito não pode entrar no Reino de Deus”; e, quando Se apresenta como a água viva que mata a sede do homem, João anota que Ele se refere ao Espírito, que iam receber os que cressem n’Ele, Espírito que, pelo homem, o transforma, o renova e o capacita para amar Deus e os outros.

Inicialmente, a mulher sente-se confusa. Disposta a remediar a situação de falência que lhe marca a vida, não sabe como agir. Parece-lhe que a Samaria deve abandonar a sua especificidade religiosa e ceder à dos judeus, para quem o verdadeiro encontro com Deus só acontece no Templo de Jerusalém e na sua instituição religiosa (“nossos pais adoraram neste monte, mas vós dizeis que é em Jerusalém que se deve adorar”). Porém, Jesus nega que a opção seja entre a via judaica e a samaritana. Não é no templo de pedra que Deus está. O que importa é acolher a novidade de Jesus, aderir, e abraçar o seu plano de vida, aceitando o Espírito e a Verdade que Ele é para todos. Só deste modo desaparecerá a barreira que separa os povos. O que conta é a vida do Espírito que encherá os corações, ensinando o amor a Deus e aos outros e fazendo de todos – sem distinção de etnias ou de religiões – uma família de irmãos.

A mulher/Samaria responde à proposta de Jesus, abandonando o cântaro (inútil), e corre a anunciar aos habitantes da cidade o desafio que Jesus lhe faz. O texto refere, ainda, a adesão entusiástica de todos os que tomam conhecimento da proposta de Jesus e a confissão da fé: Jesus é reconhecido como o Salvador, ou seja, O que dá ao homem a plenitude de vida.

Define-se, deste modo, a missão de Jesus: comunicar ao homem o Espírito que dá vida. O Espírito que Jesus tem para oferecer desenvolve e fecunda o coração do homem, capacitando-o a amar sem medida. Eleva, assim, os homens que buscam a vida plena à categoria de Homens Novos, filhos de Deus que fazem as obras de Deus. Do dom de Jesus nasce a nova comunidade.

A cena da samaritana, a pregoeira da novidade messiânica junto dos seus concidadãos (que acreditaram pelo que ela disse e, depois, pelo que viram e ouviram de Jesus) – além de mostrar a necessidade da superação da autossuficiência, a força da procura e o diálogo com a novidade, com vista à sua aceitação – evidencia o papel da mulher no apostolado, antecipando a postura de Maria Madalena e das outras mulheres, as quais, não se tendo afastado de Jesus no Calvário e na sepultação, ao invés da quase totalidade dos apóstolos, foram as primeiras destinatárias do anúncio da Ressurreição e, por conseguinte, as apóstolas dos apóstolos (papel quase totalmente esquecido para subalternizar a mulher na sociedade e na Igreja). Por outro lado, sublinha a universalidade da salvação, independentemente dos lugares, tempos e etnias, considerando o especial apreço de Deus por quem está fora do grupo que se considera privilegiado e fora dos cânones estabelecidos ou alterados pelos decisores humanos. As prioridades da salvação não são definidas pelos homens, mas por Deus, que prefere os últimos.       

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Em 1.ª leitura (Ex 17,3-7), temos um trecho pertencente às “tradições da libertação” (cf Ex 1-18). É um bloco de tradições que narram a libertação dos hebreus do Egipto (por ação de Javé e de Moisés) e a travessia pelo deserto até ao Sinai.

O trecho em referência narra o episódio de Massa/Meribá nos arredores de Refidim, no sul da península do Sinai (cf Nm 33,14-15) ou nos arredores de Kadesh, a norte (cf Nm 20,7-11). São textos que provêm de fontes diferentes (combinados por um redator final), fontes que se referirão a viagens e grupos distintos, que atravessaram, em épocas distintas, o deserto do Sinai.

Em todo o caso, o importante é acolher o intuito dos catequistas de Israel que fazem catequese sobre o Deus libertador, que guiou o seu Povo da terra da escravidão para a terra da liberdade.

Importa ao povo fugitivo do Egito, chefiado por Moisés, a sobrevivência num cenário desolado como o deserto do Sinai. Os beduínos conheciam estratagemas que lhes asseguravam a sobrevivência. Um deles estará conexo com o texto presente. Havia, no Sinai, rochas porosas que, ao serem quebradas em certos pontos, facultavam o aproveitamento da água aí armazenada. Terá sido algo similar que ocorreu na marcha dos Hebreus e que deixou sinal na memória do Povo. Porém, o fundamental é que Israel viu no facto um sinal da presença e do amor do Deus libertador.

É um episódio paradigmático a testemunhar as vicissitudes e dificuldades da caminhada histórica do Povo de Deus. Desde que o Povo saiu do Egipto, até chegar a Massa/Meribá, Javé manifestou, de muitos modos, o amor por Israel: na passagem do mar, na água amarga transformada em água doce, no maná e nas codornizes. E mostrou, sem dúvida, o empenho na salvação do seu Povo.

Israel já não devia ter qualquer dúvida sobre a vontade salvadora de Deus e sobre o seu projeto de libertação. Contudo, ante as dificuldades, o Povo esquece tudo e manifesta dúvidas sobre os objetivos de Deus. A falta de confiança em Deus gera revolta. O Povo entra em contenda com Moisés (o termo “meribá” vem da raíz “rib” – “entrar em contencioso”) e desafia Deus a clarificar, com um gesto espetacular, de que lado está (o nome “massa” vem da raíz “nsh” – tentar, provocar). Acusa Deus de ter um plano de morte, apesar de Ele, tantas vezes, ter demonstrado que o seu desígnio é de vida e de liberdade. Enfim, após tantas provas, vê-se que Israel não fez genuína experiência de fé: não aprendeu a confiar em Deus e a entregar-se nas suas mãos.

Face a esta mostra de ingratidão e de falta de confiança, Deus reage com eterna paciência e oferece ao Povo a água que dá vida. À pergunta do Povo (“O Senhor está ou não no meio de nós?”), Deus responde, provando que está no meio do Povo. Assim, os israelitas – e os crentes de todas as épocas – são convidados a reter esta verdade: o Senhor é o Deus que está presente na caminhada histórica do seu Povo oferecendo-lhe, em cada passo da caminhada, a vida e a salvação.

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O trecho paulino da Carta aos Romanos (Rm 5,1-2.5-8) parte da ideia de que todos os crentes – judeus, gregos e romanos – foram justificados pela fé. Na linguagem bíblica, a justiça é, mais do que um conceito jurídico ou relacional. Define a fidelidade a si próprio, à sua maneira de ser e aos compromissos assumidos no âmbito de uma relação. Ora, se Javé se manifestou na história do seu Povo como o Deus da bondade, da misericórdia e do amor, dizer que Deus é justo não significa que Ele aplique os mecanismos legais, quando o homem infringe as regras, mas que a bondade, a misericórdia e o amor inerentes ao ser de Deus se revelam em todas as circunstâncias, mesmo quando o homem não é correto no seu proceder.

Paulo, ao falar do homem justificado, fala do homem pecador que, por exclusiva iniciativa do amor e da misericórdia de Deus, recebe o veredicto de graça que o salva do pecado e lhe dá, gratuitamente, acesso à salvação. Ao homem apenas é pedido que acolha, com humildade e confiança, a graça, que não depende dos seus méritos e que se entregue completamente nas mãos de Deus. Este homem, objeto da graça de Deus, é nova criatura: o homem ressuscitado para a vida nova, que vive do Espírito e é filho de Deus e co-herdeiro com Cristo.

Os frutos que resultam deste acesso à salvação, que é um dom de Deus, são: a paz, não entendida, psicologicamente, como tranquilidade, nem politicamente, como ausência de guerra, mas no sentido teológico semita de relação positiva com Deus e, portanto, de plenitude de bens, já que Deus é a fonte de todo o bem; a esperança, o dom que nos leva a superar as dificuldades e a dureza da caminhada, apontando ao futuro glorioso de vida em plenitude, o que postula, não o otimismo fácil e irresponsável, com a evasão do presente, mas o encontro de sentido novo para a vida presente, certos de que a morte não terá a última palavra e de que a vida triunfará; e o amor de Deus ao homem e a todos os homens, pois o cristão é alguém que Deus ama, com um amor que está em Jesus, o Filho amado a quem Deus entregou à morte por nós quando éramos pecadores.

Como pano de fundo, o trecho em causa expõe o cenário do amor de Deus. E Paulo garante algo que encontrámos na 1.ª leitura: Deus nunca abandona o Povo em caminhada pela História. Está ao nosso lado, em cada passo, para nos oferecer, gratuita e amorosamente, a água que mata a sede de vida e de felicidade – a paz, a esperança, o amor.

2023.03.12 – Louro de Carvalho

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