quarta-feira, 29 de março de 2023

Relatório da AI radiografa drasticamente 2022 no Mundo

 

O último relatório da Amnistia Internacional (AI) mostra que há povos e guerras que não merecem a atenção dos que têm o poder de mudar algo. E ante as falhas de quase todos os países do Mundo em proteger os seus cidadãos, esmorece a esperança de que a resposta mundial à agressão russa marcasse nova era para um sistema internacional fundado em valores e no direito.

Os crimes contra a Humanidade ocorrem em toda a parte, sem sanção ou crítica. Os ditadores seguem impunes. Diz-se que 2022 foi o ano em que a guerra voltou em força à Europa, mas ela já existia há oito anos no leste da Ucrânia, pelo que os ucranianos não chamam “guerra” a esta, mas “invasão em larga escala”. A outra marinava e o Ocidente não interferia.

Nos países menos desenvolvidos, centenas de conflitos, com armas de fogo ou de controlo social, alimentam a deterioração das condições de vida de centenas de milhares de pessoas. A lei humanitária internacional é usada como dá jeito, conforme o interesse em causa. Se há interesses económicos comuns e alianças geopolíticas, as coisas fazem-se, caso contrário, impera o silêncio. Esta duplicidade de atuação espelha a hipocrisia do uso do duplo tipo de critérios e de ações para denunciar os conflitos, protegendo os “bons”, não os “maus”.

Agnès Callamard, secretária-geral da AI, disse, na apresentação do relatório de 2022, que “a invasão da Ucrânia pela Rússia é um exemplo assustador” do que pode suceder quando os Estados “pensam que podem desrespeitar o direito internacional e violar os direitos humanos sem consequências” e lembrou os 75 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH), que se ergueu sobre destroços do conflito mais violento de que há memória, a II Guerra Mundial, reconhecendo o direito igual de todos os povos à paz e à liberdade.

A perpetuação do conflito israelo-palestiniano é um dos pontos que mais pesam na tese, defendida pela AI, de que o Ocidente tem um olho seletivo nas exasperações que elege. Com efeito, 2022 foi o ano mais violento da última década para os Palestinianos da Cisjordânia. Os Israelitas mataram 151 pessoas em 2022, sendo 37 menores de idade. E a política de construção de casas para Israelitas em territórios que a Organização das Nações Unidas (ONU) considera parte de um Estado palestiniano futuro desaloja, todos os dias, famílias palestinianas.

A 5 de agosto, Israel lançou uma ofensiva de três dias sobre a Faixa de Gaza, porção de terra palestiniana, colada ao Mediterrâneo, de onde é difícil sair e onde tudo o que entra é controlado pelas forças israelitas. Pelo menos 1.700 palestinianos perderam as suas casas em 72 horas, 17 morreram devido aos ataques israelitas e sete foram vítimas de morteiros, que dispararam, sem querer, do lado palestiniano. E o silêncio dos Estados Unidos da América (EUA), face ao apartheid que Israel impõe nos territórios ocupados, cobre Israel para perseguir os Palestinianos.

Ao fim de 20 anos de guerra, os EUA saíram do Afeganistão, fenecendo as ilusões que as mulheres tinham de mudança sólida do seu papel na sociedade. Sem alternativa num país dominado por um grupo imbuído do seu machismo superlativo, as afegãs ficaram impedidas de aceder a qualquer tipo de escolaridade ou de emprego. No Irão, os protestos por liberdade levaram à detenção e à morte de centenas de pessoas, principalmente jovens, sendo as mulheres as principais vítimas, como no Afeganistão.

Nos EUA abundam os exemplos de sociedade enviesada contra as mulheres. Até em países onde há recursos financeiros, democracias robustas, funcionamento dos serviços, tudo fatores de garantia de melhores condições de vida às mulheres, nota-se o retrocesso de direitos.

Em 2021, o Supremo Tribunal dos EUA reverteu a decisão “Roe contra Wade” que garantia o direito ao aborto às mulheres, ao criar a ligação entre este ato médico e o direito à privacidade entre doente e médico. Por causa dessa decisão, dezenas de casos judiciais, a nível estadual, contribuem para a restrição dos direitos das mulheres. A discriminação de mulheres negras, pobres, indígenas, imigrantes sem documentos, entre outras, aumenta. E estes são os segmentos da população com salários mais baixos e condições familiares mais instáveis.

Na Polónia, Justyna Wydrzynska, ativista pelo direito ao aborto foi condenada a oito meses de serviço comunitário por ter enviado comprimidos indutivos de aborto a uma mulher que pediu ajuda à associação Abortion Dream Team, que Justyna dirige. É a primeira pessoa na história da Polónia condenada em caso de ajuda ao aborto, indo a pena até aos três anos de prisão.

No Paquistão e na Índia, os “assassínios de honra” são problema grave. Duas irmãs, com dupla nacionalidade, espanhola e paquistanesa, foram mortas em 2022 pelos respetivos maridos, com quem foram forçadas a casar, por se recusarem a pedir-lhes vistos de cônjuge para Espanha. Muitos pais casam as filhas com homens da mesma família (no caso, primos direitos) para mais membros da família entrarem na Europa, pelo processo de reunificação familiar.

Este foi também o ano em que se confirmou a mortandade da guerra de dois anos na Etiópia. Mais de 600 mil pessoas morreram em 2021 e 2022, número que os investigadores europeus da universidade de Ghent, na Bélgica, os primeiros a chamar a atenção para as atrocidades na região do Tigray, corroboraram. Em 12 anos de guerra na Síria, terão morrido entre 350 e 400 mil pessoas. No Iémen, em guerra há sete anos, morreram 377 mil pessoas.

No Myanmar, o exército persegue as minorias religiosas e a violência intensificou-se. Em maio de 2022, a AI divulgou o relatório específico para a situação no país, que relata o uso generalizado de detenções arbitrárias, tortura e execuções extrajudiciais de civis. Embora as minorias étnicas, nomeadamente cristãos e muçulmanos, sofram, há décadas, nas mãos do exército, houve um aumento significativo da violência, após o golpe militar de fevereiro de 2021, que levou à morte de centenas de civis e ao deslocamento de mais de 150 mil pessoas em três meses (de dezembro de 2021 a março de 2022).

Este ano, a comunidade internacional reage à agressão da Rússia sobre a Ucrânia e condena a invasão, mas isso contrasta com a pouca ação a outras violações de direitos humanos em países como a Etiópia, o Myanmar e a Arábia Saudita, que tanto viola os direitos dos seus cidadãos como está envolvida na terrível guerra do Iémen”, diz o diretor da AI de Portugal, Pedro Neto.

Os custos da crise climática intensificaram-se. Inundações, secas, ondas de calor e incêndios causaram mortes, perda de bens de primeira necessidade, habitações, florestas e culturas agrícolas, provocando crassa escassez alimentar e doenças em várias zonas do globo.

A União Africana declarara 2022 como o Ano da Nutrição, mas as condições climáticas extremas desencadearam o contrário. Na Somália, a seca severa aumentou os casos de subnutrição e, na Nigéria, as inundações precipitaram um surto de doenças transmitidas pela água, matando centenas de pessoas e de animais. Aumento do nível do mar e inundações afetaram comunidades costeiras empobrecidas em países como o Bangladesh, as Honduras e o Senegal.

Apesar de as alterações climáticas atingirem todo o Mundo, é em África que se regista a maioria das consequências. Em 2022, o Corno de África sofreu a sua pior seca em 40 anos e partes da África Austral sofreram inundações inéditas, causadas por chuvas intensas. Em Madagáscar, as tempestades tropicais e os ciclones mataram mais de 200 pessoas de janeiro a abril.

Na África do Sul, as chuvas destruíram milhares de casas. Na África Ocidental, as autoridades nigerianas não conseguiram implementar medidas suficientes para mitigar o impacto das inundações que mataram, pelo menos, 500 pessoas. No Senegal, o aumento do nível do mar causou erosão nas aldeias de pescadores, forçando as comunidades a deslocar-se para o interior.

Dois anos antes da guerra da Síria enorme seca levou ao êxodo rural para os meios urbanos. Muito do descontentamento que gerou os protestos radica nesse evento climático, que levou à abundância de mão-de-obra nas cidades, onde não havia emprego para todos.

Em setembro, um terço do Paquistão ficou submerso, provocando a fuga de milhares de pessoas, embarcar algumas em viagens perigosas até à Europa, aonde nem todos chegam. O facto de a cidadania paquistanesa ter aparecido, em 2022, entre as três mais comuns a chegar ao Reino Unido pelo canal da Mancha revela a correlação entre as alterações climáticas e o aumento de pedidos de asilo, registando-se um fenómeno migratório de dimensões que o Ocidente nunca viu e para o qual não se está a preparar.

Na Argélia, os fogos florestais mataram 40 pessoas. No Iraque, as tempestades de areia e as ondas de calor obrigaram cerca de 10 mil famílias a sair das suas casas.

Há outros exemplos de zonas do globo afetadas por conflitos regionais ou por tragédias climáticas que modificaram a forma de vida dos povos, mas os indicados ilustram bem o problema é a causa de quase todos os problemas: a desigualdade. É a desigualdade de tudo, incluindo de atenção mediática, de distribuição de recursos, como ajuda humanitária e medicamentos, e a dos esforços diplomáticos para resolução de conflitos. A pandemia de covid-19 e, agora, a guerra na Ucrânia exacerbaram o padrão duplo. As nações ricas acumularam vacinas e enfraqueceram os sistemas de redistribuição, contribuindo para aprofundar a desigualdade. Os países ricos falharam nas medidas de alívio das esmagadoras dívidas dos países em desenvolvimento.

Na Europa, tudo se fez para acolher ucranianos, a União Europeia (UE) facilitou o acesso à proteção internacional, mas para outras pessoas, como as de origem africana, que também fogem da guerra, a abertura não é a mesma. Os EUA acolhm milhares de ucranianos, mas prendem, deportam e torturam pessoas do Haiti, que vive uma situação igualmente dramática.

Na região de Xinjiang, na China, a minoria muçulmana uigur é vigiada, presa, endoutrinada contra a própria etnia, assassinada e torturada. Apesar das violações dos direitos humanos, equivalentes a crimes contra a Humanidade, Pequim escapou da condenação internacional pela Assembleia Geral da ONU, pelo Conselho de Segurança e pelo Conselho de Direitos Humanos. Este último estabeleceu um Redator Especial sobre os direitos humanos na Rússia e um mecanismo de investigação no Irão, mas votou para não se investigar mais, nem apreciar o relatório do que se passa em Xinjiang, num país que diz querer liderar as negociações de paz na Ucrânia (quando só lhe interessa a diplomacia comercial), mas que devia dar o exemplo com Taiwan.

Na Rússia, foram encerrados meios de comunicação, ONG privadas de fundos e alvo de buscas e de mandados de apreensão de material (caso da “Memorial”, que venceu o prémio Nobel da Paz em 2022), por terem chamado guerra à guerra. Jornalistas foram presos no Afeganistão, na Etiópia, no Myanmar, na Rússia, na Bielorrússia e em mais países onde há guerras.

Na Austrália, na Índia, na Indonésia e no Reino Unido, aprovaram-se leis que restringem as manifestações; no Sri Lanka, utilizaram-se os poderes do estado de emergência para restringir os protestos contra o aumento do custo de vida; no Reino Unido, a lei dá às autoridades amplos poderes, como o de proibir “protestos ruidosos”; em dezembro, as forças de segurança peruanas reprimiram indígenas e camponeses, pelos protestos contra a deposição do ex-presidente Pedro Castillo; e, em Moçambique, a par de inundações e de violência em Cabo Delgado, jornalistas, defensores dos direitos humanos e oposição política sofreram a repressão.

E uma reportagem da agência Lusa, já este ano, registava as queixas de manifestantes contra os métodos de repressão da polícia, cada vez mais comuns, tendo matado manifestantes em países como o Equador, a Colômbia, a Somália, a Serra Leoa, o Chade ou as Filipinas.

Enfim, sofrimento, guerra, violência e violação dos direitos humanos vistos sob duplo critério.

2023.03.28 – Louro de Carvalho

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