sexta-feira, 3 de março de 2023

Não deve fazer-se o trabalho não impreterível ao domingo

 

Assinalou-se, a 3 de março, o Dia do Domingo Livre de Trabalho, com vista a refletir sobre a necessidade de o comércio estar aberto todo o fim de semana, incluindo o domingo.

A este respeito, a Liga Operária Católica/Movimento dos Trabalhadores Cristãos (LOC/MTC), de Portugal, para assinalar a efeméride, redigiu e divulgou uma mensagem, que o Movimento de Trabalhadores Cristãos da Europa (MTCE) assumiu.

O documento interroga os consumidores se não há, na semana, outro dia para as compras, se além das atividades estritamente necessárias, será preciso trabalhar ao domingo e se, como sociedade, devemos reservar um dia na semana, onde a maioria esteja livre de trabalho, valorizando o descanso, o tempo livre, o lazer, dando mais tempo à família e ao seu legítimo bem-estar.

A seguir, faz uma resenha histórica sobre a organização e a duração do tempo de trabalho, vincando que, nos países mais civilizados, se demorou a entender e a regulamentar a matéria.

Durante muitos séculos, trabalhou-se de sol a sol. Porém, as lutas dos trabalhadores dos séculos XIX e XX desembocaram no limite geral de oito horas diárias, em cinco dias por semana, na maioria dos países ocidentais. Nos anos 90 do século XX, com a introdução das novas tecnologias acreditou-se que era possível reduzir o horário de trabalho e que os trabalhadores teriam mais tempo livre, esperança não concretizada. Ao invés, à época, nova legislação autoriza, de forma indiscriminada, o trabalho ao domingo, medida apresentada como inevitável e como seguidora do modelo dos outros países europeus, pois criaria mais facilidades para as compras, aumentava o seu volume e criaria mais empregos. Estudos recentes mostram que não se criaram mais empregos, mas grandes superfícies impuseram-se e muito do comércio tradicional, urbano e local encerrou por não aguentar a concorrência.

Vários países da Europa não adotaram tais medidas, sendo raros os estabelecimentos comerciais abertos ao domingo. Também não aumentou o volume de compras com a abertura ao domingo, apenas se transferiu o valor da compra dos outros dias para o domingo, nas grandes superfícies.

Por isso, a LOC/MTC pensa que não faz sentido “trabalho ao domingo que não seja para cuidar de pessoas (crianças, jovens, idosos, famílias…), ou infraestruturas imprescindíveis à vida humana”. E os setores que não possam parar ao domingo devem ter melhor regulamentação e fiscalização, e os seus trabalhadores devem ser mais bem remunerados e compensados em tempo de descanso. “O trabalho é uma dimensão essencial da vida social, porque não é só um modo de ganhar o pão, mas também um meio para o crescimento pessoal, para estabelecer relações sadias, expressar-se a si próprio, partilhar dons, sentir-se corresponsável do mundo e, finalmente, viver como povo” (ver encíclica Fratelli tutti, n.º 162), diz a LOC/MTC.

A globalização da economia e os novos hábitos de consumo levaram à modificação na conceção do trabalho, o que gerou novas formas da organização do tempo de trabalho, ameaçando e tornando incerto o tempo de descanso. Em diversas situações, como no teletrabalho, a fronteira entre o tempo de trabalho profissional e o tempo livre está pouco definida e têm-se agravado as condições de trabalho e a qualidade de vida, fruto da feroz competição do mercado e de condições de trabalho vezes inumanas, em certos setores e profissões com novas configurações: salários baixos, horários irregulares, turnos rotativos, à noite, aos fins de semana, trabalho em dois ou três lugares diferentes, laboração contínua, sem que as empresas paguem mais.

A fronteira entre o tempo de trabalho e o tempo de lazer tem-se esbatido. Em termos médios, o tempo de descanso dos trabalhadores tem vindo a perder terreno. Vivemos um tempo do primado do capital sobre o trabalho. “Os nossos princípios partem do primado da pessoa sobre as coisas. A economia, a empresa e o trabalho devem servir as pessoas, e não o contrário (“o trabalho para a pessoa, e não a pessoa para o trabalho”). “É este o sentido do tradicional princípio do primado do trabalho sobre o capital.” (ver encíclica Laborem exercens, n.os 7 e 13).

“Compatibilizar esta diversidade de formas de trabalho com as exigências de um horário que permita o descanso diário, semanal e anual, e a dignidade do trabalho e do trabalhador, aqui está o grande desafio”, afirma Cristina Rodrigues, doutora em Sociologia do Estado, do Direito e da Administração, pela Universidade de Coimbra.

A realidade põe em causa o fundamental do ser humano, o “ser pessoa”, pois a adaptação contínua a novos horários e os desencontros de horários dificultam a coincidência dos tempos de descanso do trabalhador com os do cônjuge ou dos filhos, prejudicando a harmonia familiar.

A liberalização do comércio a envolver o domingo interfere com questões de ordem humana, social, familiar, cultural e religiosa e contraria o bem-estar comunitário, o convívio familiar e a disponibilidade para participar na vida social, cultural e religiosa, desagrega as famílias e a sociedade, individualiza as pessoas, impede a solidariedade, não gera bem-estar, provoca doenças e dificulta a vida comunitária. Ora, não tem futuro a sociedade onde as famílias se não encontram, não dialogam e quase não se conhecem. Todos precisamos de assumir as responsabilidades. E compete aos consumidores, a cada um de nós, fazer opções.

Numa sociedade onde cada vez mais pessoas se mobilizam em torno de “Cuidar da Casa comum”, minimizar o consumo do supérfluo parece uma medida acertada. As nossas opções têm impacto nos decisores das empresas: muitos espaços comerciais fecham ao domingo e não perdem viabilidade económica. Temos de pensar mais em quem tem de trabalhar ao domingo e em todos os transtornos familiares e sociais que provocam o desencontro de horários a familiares e aos seus grupos sociais e de amigos. A luta pelo Domingo Livre de Trabalho é justa e necessária para a vida em família, para todos, e para que as famílias, todos os trabalhadores, possam conviver e confraternizar e para que se construa um mundo mais justo e solidário.

***

Desde 2011 tem aumentado o número de trabalhadores com o horário de trabalho fora dos dias úteis. São mais de dois milhões ao sábado e mais de um milhão ao domingo. Por isso, em 2014, Sara Gonçalves, licenciada em Gestão Cultural, lançou a petição online “Pelo encerramento dos shoppings aos domingos”. Cerca de 20 mil pessoas assinaram o documento, mas foi votado ao esquecimento, até que, na homilia do domingo de Páscoa de 2019, o Bispo do Porto, D. Manuel Linda, levantou a questão, situando-a na onda do materialismo consumista que degrada a condição humana, violando o direito ao lazer. Assim, a petição, em três dias, passou a contar com 55.884 assinantes e o número não parava de crescer, o que levou a jovem, movida pela responsabilidade social, a fazê-la chegar ao Parlamento, já com 81.785 assinaturas (a 21 de abril de 2020).

Frisando que nada exige a abertura dos shoppings ao domingo, a petição apelava à proibição do seu funcionamento nesse dia. “A procura de novas formas de entretenimento ajudaria a estimular a vida na cidade e no comércio local. O fortalecimento das relações interpessoais traria nova ênfase à vida familiar e aqui reside o aspeto valioso e fundamental da petição. Mais tempo de qualidade para nós e para os nossos”, lia-se no texto, em que a qualidade de vida dos trabalhadores desses espaços é motivo de preocupação. “Seria uma resolução que traria aos trabalhadores de grandes superfícies comerciais horários mais equilibrados e a garantia de passar o domingo em família, ao passo que, para os não trabalhadores de grandes superfícies comerciais, traria o pretexto ou empurrão perfeito para investir mais no espaço público e na nossa cultura”, prosseguia o texto.

A ideia nasceu quando Sara Gonçalves esteve a trabalhar em Lyon, França, e teve de conviver com domingos sem centros comerciais abertos.

A proponente vincava que chegar a petição à Assembleia da República em tempo de pandemia era adequado, pois, “neste contexto específico, encerrar as grandes superfícies comerciais ao domingo, seria também uma grande medida na prevenção de covid-19”.Agora mais que nunca, esta seria uma medida de extrema importância. Esta pausa forçada a que fomos obrigados mostrou-nos, de forma muito clara, que o nosso alucinante ritmo de vida traz consequências graves para nós como indivíduos, nós como coletivo e para o nosso ambiente”, dizia a primeira subscritora do texto.

A petição foi discutida pelos deputados, mas esbarrou com a oposição dos consumidores, que desejam a abertura das grandes superfícies ao domingo. E nem a recente Agenda do Trabalho Digno incluiu o encerramento das grandes superfícies comerciais nas condições de harmonização da vida profissional com a vida familiar e com o direito ao descanso e ao lazer. 

A petição veio ao encontro das preocupações da LOC/MTC, movimento especializado da Ação Católica que, pela vivência e pelo testemunho da mensagem cristã, entre os trabalhadores, se situa na dinâmica da vida operária, participando na caminhada solidária dos trabalhadores que buscam a justiça e a promoção coletiva. É um espaço de reflexão que permite aos militantes partilhar e aprofundar a fé cristã em ligação com os compromissos no trabalho. Nesse espaço aprofundam a sua consciência de ser Igreja, à qual pertencem ontologicamente pelo Batismo, e organicamente ligados a nível do Movimento, através dos assistentes oficialmente nomeados pela hierarquia. O seu método original é a revisão de vida: ver – julgar – agir. Através dele, os militantes procuram lançar um olhar mais profundo e crítico sobre as realidades do mundo do trabalho para aí descobrirem os sinais vivos de Jesus Cristo Ressuscitado e do Reino de Deus em germinação.

O tema requer atenta reflexão. O trabalho foi inventado para o homem e não o homem para o trabalho. Não pode transformar-se um meio de sustento pessoal e familiar, uma fonte de realização pessoal e de dignificação da pessoa humana e um instrumento de produção e de distribuição de riqueza num mecanismo de escravização humana e de refinada precariedade.

“Vale mais quem Deus ajuda do que quem muito madruga” é o adágio repleto de sabedoria popular. E é preciso acreditar que a economia, no sentido nobre do termo, concilia várias formas de socialização e pode, se bem regulada, amentar os objetivos de gestão e de produtividade.

Lutar pelo domingo de trabalho não impreterível, porque não?

2023.03.03 – Louro de Carvalho

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