sexta-feira, 3 de março de 2023

Católicos apontam tarefas aos bispos quanto a abusos sexuais

 

Decorreu, a 3 de março, em Fátima, a sessão extraordinária da Conferência Episcopal Portuguesa (CEP) com o objetivo de analisar o relatório da Comissão Independente (CI) sobre o problema dos abusos sexuais de menores e de pessoas vulneráveis, no âmbito da Igreja Católica, documento apresentado publicamente no passado dia 13 de fevereiro e sobre o qual os bispos se propõem tomar as medidas adequadas. 

A este respeito, mais de duas centenas de católicos, não querendo deixar os bispos sozinhos com o problema e no intuito de contribuírem para a vivência de novo horizonte eclesial, enviaram à CEP, a 1 de março, a carta intitulada “Carta aos bispos da Igreja em Portugal, sobre as mudanças que todos necessitamos de fazer” (que subscrevi), com um elenco de medidas a tomar e com a sugestão de prazos indicativos. “Este é o tempo! Este é o tempo de uma tristeza imensa e – como não dizê-lo? – de uma enorme revolta contra os abusos praticados e contra o seu encobrimento. Este é o tempo que nenhum de nós desejava, mas a que não podemos fugir”, referem.

Entre as medidas sugeridas, destacam-se: a criação imediata de modos de viabilizar apoio e ajuda psicológica, psiquiátrica e espiritual às vítimas de abusos sexuais que o pretendam; a instituição de um momento solene e coletivo para pedir-lhes perdão; e a criação de uma nova CI que prossiga o trabalho da anterior, recebendo denúncias e acompanhando casos.

A missiva parte do pressuposto de que a crise “tremenda” que a Igreja vive é de todos os que a ela pertencem, que podem acompanhar os bispos, ajudando-os a refletir o caminho a seguir.

Muitos dos subscritores são os mesmos que, em novembro de 2021, se dirigiram à CEP incentivando-a a criar uma comissão nacional independente para estudar o problema dos abusos de crianças no seio da Igreja. São cristãos de movimentos como o Graal, Nós Somos Igreja, Ação Católica dos Meios Sociais Independente, Metanoia-Movimento Católico de Profissionais, Comunidade da Capela do Rato (Foco ecológico) ou Grupo Sinodal Nós entre Nós, mas também catequistas, responsáveis de serviços paroquiais, membros de comunidades locais.

Os subscritores são professores, médicos, quadros superiores da administração pública, profissionais da ação social, investigadores, etc. Se se contar o total de membros das organizações signatárias e dos subscritores individuais, são algumas centenas as pessoas envolvidas.

A carta aos bispos sugere medidas imediatas, a adotar nos próximos 30 dias, como as referidas acima, e outras a adotar nos próximos dois meses. Entre estas, propõe-se que a rede de comissões diocesanas relativas aos abusos se recentre na prevenção primária e na formação; os bispos encobridores, a existirem, se retirem de funções; e se tomem medidas relativamente a “todos os abusadores que estejam atualmente ao serviço da Igreja”, a saber: suspensão com caráter preventivo quando haja indícios minimamente credíveis sobre abusos e, se considerados culpados à luz da moral cristã, independentemente de processo judicial, sejam dispensados de funções e, no caso de clérigos, passagem ao estado laical. Porém, a meu ver, o estado laical não pode ser considerado um castigo (o leigo não é um proscrito). E cada caso deve ser analisado: se é reiterável ou não. Nem todos serão irrecuperáveis. E é preciso distinguir entre doença e abuso de poder.

Num horizonte de seis meses, os bispos são ainda convidados a: promover e incentivar o acesso ao relatório da CI e o seu estudo bem como o das suas conclusões, entre os agentes de pastoral, “prevenindo a tentação negacionista ou de relativização do fenómeno criminal”; elaborar “um manual de boas práticas que ajude os agentes pastorais a prevenir situações de risco e a identificar indícios de casos de abusos, bem como a acolher e encaminhar vítimas”; encetar “uma reflexão de fundo sobre o impacto negativo que a perceção distorcida sobre a sexualidade humana tem vindo a causar em toda a Igreja, com a ajuda de especialistas externos”; e proporcionar um acompanhamento aos abusadores que inclua tratamento psiquiátrico e psicológico.

“Como Igreja – conclui a missiva – temos agora dois caminhos possíveis: denegar e iludir, insistir no rumo que nos trouxe a esta aflição permanente de caminhar para a autodestruição e ferir pessoas; ou avançar, com oração e com coragem para mudar e reformar, com espírito humilde e destemido. Não temos dúvidas sobre onde, mais facilmente, encontraremos Jesus Cristo”.

Enfim, acolhimento, acompanhamento e ressarcimento das vítimas de abusos sexuais; um ato público de perdão, depois de escutar histórias de sobreviventes; assunção de responsabilidades públicas; e apoiar também os agressores, numa atitude de vigilância e acompanhamento. Estas deveriam ser, a avaliar pelas propostas de católicos colocados em diferentes estruturas, algumas das decisões principais. É a hora!

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Na referida assembleia da CEP, estiveram presentes os membros da CI, que deram esclarecimentos sobre o relatório e sobre as recomendações apresentados à hierarquia católica. E o pedopsiquiatra Pedro Strecht, coordenador da CI, fez também a entrega da lista nominal, por dioceses, dos alegados abusadores referenciados pelas vítimas – lista que foi elaborada a partir dos dados obtidos pelo trabalho da CI cruzados com os elementos recolhidos pelo Grupo de Investigação Histórica (GIH), que trabalhou nos arquivos das dioceses e congregações religiosas.

Um professor de Teologia Moral na Universidade Católica Portuguesa (UCP), um católico que faz voluntariado como visitador em quatro prisões e uma jurista que trabalha com vítimas de violência doméstica apontam os sobreviventes de abusos como o centro da primeira decisão que tomariam, se fossem chamados a sentar-se em Fátima com os bispos, que devem dispor-se a “acolher as verdadeiras vítimas, segundo modos julgados convenientes, de forma a proporcionar uma terapia para continuar a viver depois do mal sofrido”, diz o padre Jorge Teixeira da Cunha.

Paulo Neves recorda: “Há pessoas nisto. É preciso reparar as vítimas até onde for possível, através de acompanhamento psicológico e psiquiátrico ou de ressarcimento a quem o pedir. É preciso respeitar cada vítima e ouvi-la. Não sei se os bispos estão a fazê-lo, mas esse é o caminho.”

A jurista Ana Beatriz Cardoso diz que uma das suas primeiras decisões seria a criação de canais de denúncia. “A Comissão Independente esteve bem quando sugeriu uma nova comissão. O número de vítimas leva a pensar que o trabalho não terminou e é importante haver um sítio, um telefone, um mail, alguém ou uma entidade que acolha novas vítimas e testemunhos.”

É necessário que quem queira denunciar ou testemunhar ter sido vítima de abusos o possa fazer “em segurança”, diz a jurista. “Este é um tipo de crimes difícil de provar, mas os psicólogos conseguem avaliar.” Sobre o tipo de estruturas para apoiar vítimas, a jurista considera importante a articulação das comissões diocesanas com a nova estrutura independente.

Paulo Neves julga que “continuar a dar voz ao silêncio será positivo; e que isso não seja só no dia 3 de março, mas um ato contínuo”. Por isso, um novo organismo “o mais independente possível para que as pessoas possam dizer tudo o que entenderem de forma aberta” poderá ser o caminho.

Além de considerar que uma das decisões deveria ser a assunção de responsabilidades – “que os bispos assumam e façam assumir as responsabilidades públicas que houver que assumir” –, Jorge Teixeira da Cunha sugere “um programa de justiça efetiva e sanadora para os abusadores, de modo a fazer uma justiça penal proporcionada e uma penitência moral eficaz”.

Paulo Neves diz que outra das decisões seria para responder à pergunta sobre “como lidar com os abusadores”: muitos foram igualmente vítimas e a Igreja deveria fazer ato de contrição também por isso, pela forma como educou, como formou e como tratou. “Como lidamos com este mal?”, pergunta. “É de temer o que pode acontecer a quem foi abusador”. Por isso os agressores devem ser acompanhados, para evitar casos como a morte não esclarecida do padre José António Gonçalves, de Évora, encontrado morto no Gerês, após ter sido acusado de assédio.

“Estamos todos a querer condenar. Nas cadeias, também já vi homicidas a condenar abusadores. Nada desculpa o que aconteceu e o que os abusadores fizeram, mas a justiça tem de servir para alguma coisa, não só para castigar”, diz o visitador. Alguns agressores suicidaram-se, por isso é necessária vigilância constante, para ajudar a ultrapassar a fragilidade que todos transportamos.

A jurista em referência sugere ainda outro âmbito de decisão: “É preciso ver como está cada pessoa e garantir apoio psicológico ao nível do trauma. Para muitas vítimas, será necessário apoio psicológico, psiquiátrico ou alguma reparação de danos. A Igreja já deu um passo significativo, mas ele não basta para reparar os danos.” E, como mulher católica”, também considera importante que a Igreja revisse a “visão da sexualidade e da castidade” e, a prazo, abrisse o “sacerdócio às mulheres e acabasse com a obrigatoriedade do celibato.

Teixeira da Cunha acrescenta duas propostas: “Que se apliquem as normas em vigor para excluir da ordenação sacerdotal pessoas que mostrem sinais de inconformidade grave com as exigências do ministério sacerdotal e que se elabore uma pastoral lúcida sobre o significado teológico da denúncia dos abusos na Igreja e na sociedade, tendo em conta o dever de pregar e praticar a reconciliação, de assinalar o avanço ético da humanidade que desperta para a defesa da dignidade de crianças, menores e vulneráveis”, avanço que “é um fruto do Evangelho de Jesus”. E Paulo Neves retoma a ideia do pedido de perdão às vítimas: “O perdão não é só dizer que se pede perdão, é também olhar para o futuro. Pode ser importante um reconhecimento simbólico e público”, acrescenta, recordando que o Papa já deu o exemplo várias vezes.

Os três colocam alto a fasquia das expectativas: “O que espero dos nossos bispos na hora de se explicarem, é que eles manifestem valentia para admitir a culpabilidade da Igreja, em vista dos comportamentos criminosos de alguns dos seus membros”, diz o professor de Teologia Moral.

Paulo Neves diz que “enquanto cristão”, considera que “o relatório veio em bom tempo, apesar de ter havido resistência”. Espera que, agora, “se enfrente o problema, tendo em atenção todas as pessoas envolvidas: vítimas e todos os que contribuíram a vários níveis, incluindo os abusadores”, tentando perceber a fundo “a essência do que aconteceu e das pessoas que foram abusadoras”.

Acompanha um padre que está preso por abusos. Praticamente nenhum dos colegas o visita. Ora, é importante que se olhe para todos os envolvidos, embora nos devamos centrar nas vítimas, pois “mesmo um abusador pode ser mais do que isso.” E justifica: “Muitas vezes, muitos deles também foram vítimas – da Igreja, da formação dos seminários, do modo como se encarava a formação e o ministério.” Mesmo o Papa deveria falar mais claramente sobre a questão dos agressores. “O Evangelho e Jesus Cristo têm outra justiça, que deve ter um efeito reparador para todos.”

Beatriz Cardoso quer medidas concretas. A criação de “formas de escrutínio interno” na Igreja, de modo a dar segurança às vítimas, deveria ser “prática assumida”. E acrescenta que, em âmbito geral, deveria ser transposto para a prática judicial e de todas as instâncias o que está previsto na Convenção de Istambul (e não está no Código Penal): “É preciso acreditar nas vítimas, não se lhes pode perguntar o que fizeram para que o agressor tivesse praticado atos contra elas.”

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Por fim, importa que não se atirem pedras à Igreja, mas que a sociedade também se repense nas suas falhas nesta matéria. E, sendo isto uma vergonha para os crentes, nem por isso deixamos de crer na essência e na missão genuína da Igreja (“Quem nunca errou que atire a primeira pedra”, Jo 8,9), nem nos envergonhamos de ser cristãos, antes rejeitamos o rótulo de abusadores.

Aliás, a Igreja só existe porque há pecadores fora dela e dentro dela. Virá o tempo da inocência!

2023.03.03 – Louro de Carvalho

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