quarta-feira, 1 de março de 2023

Alteração ao protocolo original da Irlanda/Irlanda do Norte

 
A saída do Reino Unido (RU) da União Europeia (UE), o Brexit, exigida pela via referendária de 2016, implicou um Acordo de Saída. Logo no início das negociações, o RU e a UE reconheceram a singularidade das circunstâncias da ilha (Irlanda do Sul, independente, e Irlanda do Norte, integrando o RU) e a necessidade de salvaguardar o Acordo de Sexta-Feira Santa de 1998 (Acordo de Belfast), evitando uma fronteira física na ilha e protegendo a cooperação Norte-Sul.
Assim, para manter uma fronteira irlandesa invisível e evitar o ressurgimento da violência, Bruxelas e Londres negociaram um protocolo ad hoc que manteve a Irlanda do Norte sob as regras da UE para a alfândega, o Imposto sobre Valor Acrescentado (IVA), impostos especiais sobre o consumo, subsídios e comércio de bens. É o Protocolo relativo à Irlanda/Irlanda do Norte, concebido como solução estável e duradoura e aplicável, com qualquer acordo sobre a futura parceria, começando as suas disposições substantivas a ser aplicáveis em 1 de janeiro de 2021.
Nos termos do protocolo, evita-se uma fronteira física entre a República da Irlanda e a Irlanda do Norte, permitindo, assim, o bom funcionamento da economia de toda a ilha e salvaguardando o Acordo de Belfast em todas as suas dimensões; e garante-se a integridade do mercado único de mercadorias da UE, a par das garantias que oferece no domínio da proteção dos consumidores, da proteção da saúde pública e animal e do combate à fraude e ao tráfico.
Os principais elementos do protocolo são:
- A partir do termo do período de transição, a Irlanda do Norte fica sujeita a um conjunto limitado de regras da UE relacionadas com o mercado único de mercadorias e com a união aduaneira. Por exemplo, o Código Aduaneiro da União aplica-se a todas as mercadorias que entrem Irlanda do Norte ou saiam de lá.
- As verificações e os controlos das mercadorias que entrem na Irlanda do Norte em proveniência do resto do RU ou de qualquer outro país terceiro devem ter lugar nos pontos de entrada. Isto significa igualmente que o RU, agindo em relação à Irlanda do Norte para fins de aplicação do protocolo, assegura, nomeadamente, os controlos sanitários e fitossanitários pertinentes.
- Os direitos aduaneiros da UE são aplicáveis às mercadorias que entrem na Irlanda do Norte a partir de qualquer outra parte do RU ou de qualquer outro país terceiro, a menos que essas mercadorias não apresentem risco de transitar para UE.
- A aplicação e a execução do protocolo são da exclusiva responsabilidade das autoridades do RU no que diz respeito à Irlanda do Norte.
- A fim de cumprirem as suas responsabilidades, as instituições e os organismos da UE podem acompanhar a aplicação do protocolo pelas autoridades do RU. Por conseguinte, prevê-se uma “presença da União” em todas as atividades de execução efetuadas pelas autoridades do RU.
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Desde a sua assinatura em 2019, o protocolo da Irlanda/Irlanda do Norte foi alvo de intensas críticas do movimento unionista da Irlanda do Norte e do Partido Conservador, em Westminster, alegando que as disposições erguiam uma fronteira artificial no Mar da Irlanda e infringiam a soberania britânica. E a eleição de 2022 para a Assembleia da Irlanda do Norte, conhecida como Stormont, resultou numa clara maioria pró-protocolo e paralisou o executivo que compartilhava o poder, agravando a crise.
Conscientes da persistência do atrito, Bruxelas e Londres criaram, pelo Windsor Framework (Quadro de Windsor), uma emenda, o “travão de Stormont”,  para dar mais voz ao povo da Irlanda do Norte sobre o funcionamento das regras. Assim, a 27 de fevereiro deste ano, em conferência de imprensa conjunta com a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, o primeiro-ministro britânico, Rishi Sunak, pormenorizou as novas medidas que alteram o protocolo original da Irlanda/Irlanda do Norte. Com efeito, o RU e a Comissão Europeia chegaram a acordo sobre as regras comerciais pós-Brexit para a Irlanda do Norte, como avançou a imprensa britânica, acordo que surge após o encontro entre a presidente da Comissão Europeia e o primeiro-ministro britânico, em Londres, para desbloquear o protocolo da Irlanda do Norte.
“Tenho o prazer de informar que fizemos agora um avanço decisivo. Juntos, mudámos o protocolo original”, disse Rishi Sunak.
O protocolo, em negociação e renegociação desde a saída do RU da UE, mantém a Irlanda do Norte no mercado único europeu e facilita os controlos alfandegários entre a Irlanda do Norte e o resto do RU. Representa, assim, um “grande passo em frente” na resolução de um dos principais motivos de tensão entre Londres e Bruxelas desde o Brexit, pois, como referiu Rishi Sunak, proporciona um comércio fluido em todo o RU, protege o lugar da Irlanda do Norte na nossa união e salvaguarda a soberania do povo da Irlanda do Norte.
O “novo capítulo” (expressão usada intencionalmente) passa pela implementação de três grandes passos, como especificou Rishi Sunak. O primeiro é a remoção de “qualquer fronteira” no mar da Irlanda e a garantia de um fluxo comercial sem restrições, assegurando que os alimentos disponíveis nas prateleiras dos supermercados da Grã-Bretanha estejam também disponíveis na Irlanda do Norte, bem como a criação de rotas comerciais verdes e vermelhas” para o RU e para o resto da Europa, respetivamente, de forma a evitar a burocracia dos serviços aduaneiros.
Como segundo passo, foi assegurada a proteção da Irlanda do Norte dentro do RU. Neste sentido, Rishi Sunak esclareceu que foram feitas mudanças no protocolo para permitir que alterações ao IVA e aos impostos especiais de consumo se apliquem a todo o território. Neste parâmetro, foi ainda determinado que os medicamentos aprovados para utilização pelo regulador do RU passarão a estar automaticamente disponíveis nas farmácias e nos hospitais da Irlanda do Norte. 
Por fim, a terceira medida é o “Stormont Brake”, ou a possibilidade de a Assembleia da Irlanda do Norte pôr “travão de emergência” às leis da UE com efeitos significativos e duradouros na vida quotidiana. O travão visa salvaguardar a soberania da Irlanda do Norte, como vinca Rishi Sunak – embora, sempre que acionado, possa ser vetado pelo RU. 
De acordo com as regras anteriores, as alterações na legislação da UE – aprovação de uma emenda ou de novo texto – ainda que se aplicassem à Irlanda do Norte, deveriam entrar automaticamente em vigor em todo o território. Nos termos do Quadro de Windsor, o travão permite que a Assembleia de Stormont, com 90 lugares, levante objeções, se achar que as mudanças na lei da UE têm impacto significativo e duradouro no quotidiano dos residentes da Irlanda do Norte.
O Quadro de Windsor foi saudado como um conjunto de soluções conjuntas para lidar com a complexa situação regulatória na Irlanda do Norte, região com uma história de violência sectária sangrenta que ficou encurralada, com o referendo de 2016, entre a legislação do RU e da UE.
A petição terá de ser assinada pelo mínimo de 30 deputados da Assembleia de Stormont, de pelo menos dois partidos políticos diferentes, e terá de apresentar argumentos sólidos a provar que o impacto prejudicial pode persistir, explicitou o governo britânico, alertando que “o travão não estará disponível por motivos triviais”. E, em Bruxelas, a Comissão Europeia insiste que a ferramenta será opção de último recurso, destinada apenas às “circunstâncias mais excecionais” em que todos os outros esforços de mediação foram esgotados.
Assim que Stormont redigir e assinar a petição, Londres terá o direito de acionar o travão e suspender a aplicação da lei alterada da UE na Irlanda do Norte, com efeito imediato.
Depois disso, as autoridades da UE e do RU reunirão o seu comité conjunto para discutir a disputa legal e como o travão pode afetar o protocolo e a invisibilidade da fronteira irlandesa. Se nenhuma solução for encontrada, as partes submeterão a disputa a uma arbitragem independente.
O painel, nomeado pelas duas partes, decidirá se o acionamento do travão reuniu as condições necessárias ou foi injustificado. São possíveis, então, dois cenários: o painel determina que o travão foi injustificado, levando à sua desativação; ou decidiu que o travão foi justificado, permitindo a suspensão da alteração ou da nova lei da UE. No primeiro caso, a nova ou a lei alterada da UE será aplicada à Irlanda do Norte, conforme o protocolo; no segundo, a situação criará divergência regulamentar (limitada) entre a Irlanda do Norte e a República da Irlanda, esperando-se que a UE tome medidas corretivas específicas para lidar com a situação.
Embora Bruxelas e Londres concordem quanto à natureza do caráter de emergência do travão Stormont, alertando contra a sua exploração, há desacordo sobre o poder do mecanismo. Segundo o governo britânico, o travão daria ao RU veto inequívoco – permitindo que a regra (da UE) seja permanentemente desativada – dentro do Comité Conjunto.
O termo “veto” foi usado pelo primeiro-ministro na conferência de imprensa e, depois, repetido na sua conta do Twitter. Todavia, nem Von der Leyen, nem outros europeus empregaram o termo, que é politicamente forte e pode ser visto como a admissão da perda de controlo da UE. E o termo está ausente de qualquer documento oficial da Comissão Europeia.
“Substantivos ou adjetivos usados para descrevê-lo melhor são uma questão para cada um dos lados”, disse um porta-voz da Comissão Europeia, questionado sobre a divergência semântica.
David Henig, diretor do RU no Centro Europeu de Economia Política Internacional (ECIPE), tem o travão como exagerado por Sunak e pelo governo conservador, no qual a ala dos brexiteers de linha dura ainda tem influência importante. “O Reino Unido pode decidir não implementar a lei da UE, mas as duas partes devem discutir alternativas, e a UE pode tomar medidas, se não houver acordo”, disse à Euronews. E Christy Petit, professora de Direito Europeu na Dublin City University, observa que o travão é limitado pela condição de provar impacto significativo na vida do povo da Irlanda do Norte, e diz que, mesmo que ativado após decisão unilateral do RU, isso não pode ser totalmente inequívoco, pois a UE pode retaliar e há uma salvaguarda processual para garantir que (o RU) agiu de boa-fé e de acordo com o Windsor Framework.
E, em concessão surpreendente, Bruxelas aceitou excluir o Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) do travão Stormont, que ficará nas mãos do painel de arbitragem independente, o que foi celebrado abertamente por Londres. A este respeito, em Bruxelas, altos funcionários enfatizaram que o painel de arbitragem será chamado a decidir sobre as condições para acionar o travão (uma questão processual) e não sobre a substância da lei europeia, onde o TJUE continuará a ser o “árbitro único e definitivo”. Federico Fabbrini, professor convidado de Direito na Universidade de Princeton, diz que o Windsor Framework não diminui o TJUE, porque o seu papel permanece “entrincheirado” no protocolo original e o painel de arbitragem examinará novas mudanças na lei da UE, não a legislação existente na totalidade. “As partes comprometeram-se com a resolução pacífica de controvérsias e com o uso da arbitragem, o que sempre foi possível de acordo com o protocolo”, disse Fabbrini à Euronews. “Portanto, aí não há mudanças”, vincou.
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Após a conferência de imprensa conjunta, Von der Leyen reuniu-se com o rei Carlos III, o que gerou controvérsia no RU entre os eurocéticos, clamando que o monarca não tem que se meter nisso. Porém, como se podia ler num comunicado do Palácio de Buckingham, citado pela CNN Internacional, “o Rei tem o prazer de se encontrar com qualquer líder mundial, se estiver a visitar o Reino Unido, e o governo aconselhou-o a fazer isso mesmo.”
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Certo é que a pedra no sapato com a Irlanda do Norte saiu. Pode respirar-se à vontade.

2023.03.01 – Louro de Carvalho

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