quinta-feira, 30 de março de 2023

Algumas tentativas de humanização nas empresas e nos serviços

 

O trabalho desempenha incontornável papel na vida de cada pessoa, dando-lhe o sentido de pertença a uma comunidade e o de cumprimento de uma missão intransferível.  

Não se trata do trabalho entendido em sentido puramente mercantilista, enquanto prestação de uma atividade paga, mas, sobretudo, na aceção abrangente de categoria humana que possibilita a expressão radical das nossas aptidões técnicas, fazendo de nós seres humano-sociais, capazes de transformar a sociedade e os seus territórios.

Uma vida sem esta componente fica circunscrita a um cinzento leque de trivialidades, pois é o trabalho que dá o tónus de utilidade e de elevação às nossas competências, tirando partido dos talentos e inclinações pessoais, tornando-se expressão total da nossa personalidade humana.

Isto, ao arrepio do sentido etimológico da palavra “trabalho”, que remete para uma perspetiva negativa. Efetivamente, o termo “trabalho” – do latino “tripalium” (três paus) – associava-se à ideia de tortura, pois o tripalium era a designação do instrumento (formado por três estacas de madeira) que visava a punição de um trabalhador não aplicado ou mesmo insurreto.

Porém, recuperando o sentido do termo “lavor” – do latino “labor”, derivado de “laborare” (lavrar), que remete para o trabalho na terra (a lavoura) –, teremos já a ideia positiva de uma ação transformadora (reservada a determinados escalões sociais). E, nos dias que correm, o conceito de trabalho evoluiu e tornou-se transversal a toda a sociedade, sendo entendido como a aplicação de determinadas faculdades, com dispêndio de tempo e de espaço, para atingir um determinado fim. Contudo, a dedicação a uma atividade, implicando sempre um maior ou menor esforço da parte do agente, atrairá, em si mesma, um conjunto de resultados valorativos.

Assim, ao trabalho está inerente a capacidade de a pessoa que trabalha contribuir, com as suas habilidades, para o bem da coletividade a que o seu múnus está associado, pondo a sua ciência e a sua técnica ao serviço dos interesses do grupo, com vista a atingir um determinado objetivo. Por outro lado, a dinâmica do trabalho implica uma componente de serviço, de estar ao serviço de, de estar dedicado a algo ou a alguém. E, obviamente, a parte remuneratória garante a sobrevivência do trabalhador, no presente e no futuro, e o seu contributo material para o sustento da família.  

A realização de cada um no trabalho será tanto maior quanto maior for a sua influência e o seu envolvimento na prossecução dos resultados do grupo. (Por grupo, entenda-se, neste contexto, qualquer tipo de agremiação (empresa, família, associação ou outro). E o valor intrínseco do trabalho corresponderá a uma contribuição para o bem comum e não a um resultado individualista ou narcisista.  

Assim, o trabalho não deve traduzir-se num carreirismo de fins egoístas, com vista à concretização estrita de objetivos de valorização pessoal, caso em que os interesses do indivíduo se sobreporão aos interesses do grupo. Este tipo de mentalidade leva a ter como objetivo último atingir, a qualquer custo, o máximo na carreira profissional. O trabalho torna-se ídolo, que absorve todo o tempo disponível e se sobrepõe a quaisquer outros interesses e valores. Neste cenário, sacrificam-se outras vertentes de satisfação e de crescimento pessoal, como a disponibilidade para a família e para os amigos, o cultivo da História o interesse pela Cultura, o apreço pelas Artes e pela Literatura, bem como o desenvolvimento de outros ofícios.

A par disto, os empresários e/ou os gestores tendem a desvalorizar a dimensão pessoal e familiar do trabalho e põem o acento na produtividade, na competitividade, no lucro, através da chamada economia de meios. As empresas, quando se restruturam, dispensam trabalhadores, eliminam postos de trabalho, criam novos serviços (para contratarem agentes a troco de menor remuneração), atendem pior os clientes, sobrecarregam os trabalhadores (ironicamente promovidos a simples colaboradores) com mais tarefas. E temos, em muitos casos, a proletarização de agentes que tinham vida de trabalho desafogada, bem como a semiescravização laboral: trabalhadores precários, sobrecarregados, em condições inumanas, mal pagos e sem direitos (anestesiados pelo regime de prestação de serviços e pela famigerada inevitabilidade).

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Entretanto, há tentativas de reverter ou de, pelo menos, mitigar a situação. Dão-se alguns dos exemplos mais significativos.

Foi aprovada, a 10 de fevereiro, no Parlamento, a Agenda do Trabalho Digno, que o Presidente da República promulgou a 22 de março.

O diploma contempla cerca de 70 medidas, com os seguintes objetivos: combater a precariedade e valorizar os salários; incentivar o diálogo social e a negociação coletiva, para que as soluções encontradas reflitam as realidades concretas de cada situação; promover a igualdade no mercado de trabalho entre mulheres e homens, com medidas novas destinadas a incentivar a real partilha das responsabilidades familiares; criar condições para melhor equilíbrio entre a vida profissional, a familiar e a pessoal; e reforçar os mecanismos de fiscalização, nomeadamente com cruzamento de dados para deteção mais eficaz de situações irregulares.

Por seu turno, a Associação Portuguesa de Certificação (APCER) promove a vertente de entidade familiarmente responsável nas empresas (EFR) e emite o certificado de EFR.

Com efeito, em todas as organizações, o objetivo das medidas de conciliação da vida profissional, pessoal e familiar é assegurar que as pessoas tenham sucesso nestas três dimensões da vida. As evidências revelam que o apoio aos trabalhadores no esforço de equilíbrio do trabalho com a vida pessoal e familiar não é “amabilidade”, mas obrigação. E lograr este equilíbrio resulta em benefício para todos os envolvidos, ao impactar, de forma positiva, na produtividade, na atração de talentos, na motivação e na retenção de força de trabalho.

Assim, a certificação EFR – Entidade Familiarmente Responsável é promovida pela Fundação Másfamilia, de que a APCER é parceiro, a fim de responder ao atual contexto sócio-laboral marcado pela flexibilidade, pela competitividade e pelo compromisso.

Os principais benefícios da implementação e da posterior certificação, de acordo com este referencial, são: a melhoria da imagem corporativa e da marca; o aumento da produtividade e da competitividade; a atração e a retenção de talentos; e a atração de investimentos socialmente responsáveis.

A Fundação Másfamilia nasceu em 2003, em Espanha, como organização privada, profissional, independente, sem fins lucrativos e de caráter benéfico. Desenvolve ações que supõem uma melhoria da qualidade de vida e de bem-estar das pessoas e das famílias, mediante a gestão da conciliação da vida pessoal, familiar e laboral, através do modelo EFR.

Foca-se na necessidade da gestão da conciliação e do apoio à família e à empresa. E, para que a conciliação laboral se torne efetiva, apresenta soluções inovadoras e altamente profissionais, como o certificado EFR, para a proteção e apoio das famílias, especialmente daquelas com dependências em seu seio.

Muitos artigos atinentes a esta matéria podem ler-se no site ver.pt, sob o signo dos valores, ética, responsabilidade (V.E.R.).

A Associação Cristã de Empresários e Gestores (ACEGE), uma associação sem fins lucrativos, com vinculação internacional à UNIAPAC – Union Internationale Chrétienne des Dirigeants d’Entreprise, tem por fins: inspirar líderes a viver o amor e a verdade no mundo económico e empresarial e dar testemunho junto da comunidade; aprofundar, difundir e aplicar, na prática, a doutrina da Igreja Católica relativa à vida empresarial e às instituições empenhadas em promover a paz social e o desenvolvimento.

Para alcançar os seus fins, promove ações informativas e formativas; promove estudos e publica textos que facilitem o conhecimento da doutrina social da Igreja e as suas implicações práticas, bem como dos estudos e dos casos com interesse para a ética empresarial; promove e desenvolve projetos de intervenção que promovam a paz social, a competitividade da economia e o desenvolvimento empresarial centrado na dignidade de cada pessoa; e estabelece parcerias e colaborações com outras entidades, privadas e públicas, que permitam potenciar o seu trabalho.

Por fim e não menos importante, a Economia de Francisco.

Em carta dirigida especialmente aos jovens, em maio de 2019, o Papa Francisco desafiou todos a participarem num encontro em Assis, com vista a uma “economia diferente, que faz viver e não mata, inclui e não exclui, humaniza e não desumaniza, cuida da criação e não a devasta.”

A reflexão sobre esta economia inspira-se em Francisco de Assis, o santo que se despojou de todas as formas de egocentrismo e pôs a vida ao serviço dos mais pobres, dos frágeis e da ecologia integral. E nasceu a Economia de Francisco – um movimento mundial, encabeçado pelas gerações mais jovens, mas que quer chegar a todos, a fim de promover uma economia mais orgânica, que integre e amplie a preocupação ativa pelo ambiente e pelas relações e vínculos que nos unem.

A rede da Economia de Francisco Portugal é “uma rede de pessoas, profissionais, investigadores, empreendedores, estudantes”, que, movendo-se por este novo paradigma, “procuram desafiar, fazer refletir e questionar o que precisa de ser transformado na economia estabelecida, em prol de uma economia mais centrada no amor e no cuidado pelo que nos rodeia.

Diz o Papa na exortação apostólica pós-sinodal “Christus vivit”, de 25 de março de 2019: “As vossas universidades, as vossas empresas, as vossas organizações são canteiros de esperança para construir outras modalidades de entender a economia e o progresso, para combater a cultura do descarte, para dar voz a quantos não a têm, para propor novos estilos de vida.” Deus queira!

Esta economia desenvolve-se em torno de três eixos: a pessoa humana, configurando a crença numa economia com centro na pessoa, uma economia mais humana e inclusiva, dando vez e voz aos mais frágeis; a ecologia integral, que inspire a perspetivação dos desafios do tempo presente e o cuidado da nossa Casa Comum, a Terra; e o bem comum, o que postula o trabalho em rede para desenhar soluções e produzir conhecimento com vista a uma sociedade mais justa e fraterna.

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Se não houver uma verdadeira mudança de paradigma da economia, o que se faça não passará de remendo. A Economia de Francisco implica essa mudança, mas precisa de um perfil operacional, a que os economistas da praça tentam esquivar-se por via dos poderosos interesses instalados.

2023.03.30 – Louro de Carvalho

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