segunda-feira, 6 de março de 2023

É preciso escutar o Filho, o amado do Pai

 

O Evangelho da transfiguração de Jesus (Mt 17,1-9) recorre a elementos simbólicos do Antigo Testamento (AT) para formular uma catequese sobre Jesus, o Filho, o amado de Deus, que vai concretizar o seu projeto libertador em prol dos homens, pelo dom da vida. Com efeito, integra a secção de Mt 16,21-20,34 – a da grande catequese sobre o discipulado, como seguimento de Jesus – o Senhor e o Mestre (“ho Kýrios kaì ho Didáscalos” – Jo 13,14) – até à cruz.

O relato da transfiguração é antecedido do primeiro anúncio da paixão (cf Mt 16,21-23) e de uma instrução sobre as atitudes do discípulo (instado a renunciar a si mesmo, a tomar a sua cruz e a seguir Jesus no caminho de amor e de doação da vida – cf Mt 16,24-28). Tendo ouvido falar da rota da cruz e conhecido o que Jesus pede a quem o quer seguir, os discípulos estão desanimados, pois a aventura em que apostaram parece encaminhar-se para o fracasso, esfumando-se na cruz a plantar numa colina de Jerusalém, o que lhes desfaz os sonhos de glória, de honras, de triunfos.

É neste ambiente psicológico que Mateus situa a transfiguração, que traz uma palavra de alento aos discípulos, por manifestar a glória de Jesus e atestar que Ele é, apesar da cruz, o Filho, o amado de Deus (“ho yiós moû, ho hagapêtós”), o que lhes garante que o plano de Jesus vem de Deus. E, apesar das suas próprias dúvidas, recebem um suplemento de esperança que os leva a embarcar e a apostar, animados, nesse plano divino-humano.

Temos aqui uma teofania ou manifestação de Deus. E o evangelista coloca na descrição do quadro teofânico todos os ingredientes que, no imaginário judaico, acompanham as manifestações de Deus (presentes nos relatos teofânicos do AT): o monte, a voz do céu, as aparições, as vestes brilhantes, a nuvem, o medo e a perturbação dos que presenciam o encontro com o divino. Não se trata de relato fotográfico de acontecimentos, mas de catequese que visa ensinar que Jesus é o Filho, o amado, de Deus, que traz aos homens um projeto divino.

O monte situa-nos num contexto de revelação: é num monte que Deus Se revela; e, em especial, é no cimo de um monte que faz aliança com o Povo.

A mudança do rosto e as vestes de brancura resplandecente recordam o resplendor de Moisés, ao descer do Sinai, depois do encontro com Deus e da entrega das tábuas da Lei. A nuvem indica a presença de Deus, pois era na nuvem que Deus manifestava a sua presença, ao conduzir o Povo pelo deserto. Moisés e Elias são a antonomásia da Lei e da Profecia, respetivamente, a anunciar e a fazer entender Jesus, e são personagens que, segundo a catequese judaica, deviam aparecer no “dia do Senhor”, quando se manifestasse a salvação definitiva.

O temor e a perturbação dos discípulos são a reação de homem ou de mulher face à manifestação da grandeza, da omnipotência e da majestade de Deus. E as tendas aludem à festa das tendas, em que se celebrava o tempo do êxodo, quando o Povo de Deus habitou em tendas, no deserto.

A mensagem fundamental, amalgamada com todos estes elementos, pretende dizer quem é Jesus. Recorrendo a simbologias do AT, o evangelista frisa que Jesus é o Filho, o amado, de Deus, em quem se manifesta a glória do Pai. É o Messias libertador e salvador esperado por Israel, anunciado pela Lei (Moisés) e pelos Profetas (Elias). É o novo Moisés, ou seja, aquele por quem Deus dá ao seu Povo a nova lei e a nova e eterna aliança. É o novo Elias, que profetiza e manda profetizar sempre e em toda a parte, mesmo em cima dos telhados.

Da ação libertadora e universal de Jesus, novo Moisés e novo Elias, nascerá o novo Povo de Deus. Com esse Povo, Deus estabelece uma nova aliança e decide percorrer, com ele, os caminhos da História, conduzindo-o pelo deserto que leva da escravidão à liberdade.

A apresentação de Jesus transfigurado tem como destinatários os discípulos que veem no horizonte só a cruz. Aponta-lhes a ressurreição, anunciada pela glória de Deus que se manifesta em Jesus, pelas vestes resplandecentes, semelhantes às dos anjos que anunciarão a ressurreição e pelas palavras de Jesus: “não conteis a ninguém esta visão, até o Filho do Homem ressuscitar dos mortos”. Jesus diz-lhes que a cruz não é a palavra final, mas a ressurreição para a vida plena.

E a disponibilidade de Pedro para construir três tendas no cimo do monte para Jesus, para Moisés e para Elias, mostra a veleidade de assentar arraiais naquele cenário, que era premonitório. Pedro não sabia o que estava a propor. Com efeito, Jesus não é igual a Moisés e a Elias. É maior do que eles. É a lei, mas a lei nova, sem o fardo e as minúcias da antiga; é a profecia, mas a profecia que não é exclusiva de um grupo, mas que é mobilizadora de todos em toda a parte e em todos os tempos. Não se cinge a uma casta ou classe. Por outro lado, os discípulos têm de perceber que a glória e a ressurreição resultam da passagem pelo caminho da cruz, que significa o dom da vida, da entrega total, do amor – afetivo e efetivo – até às últimas consequências.

Este passo do Evangelho é antecedido por uma 1.ª leitura (Gn 12,1-4), em que sobressai a figura veterotestamentária de Abraão, o homem de fé, que vive na constante escuta de Deus, sabendo ler os seus sinais, que acata os apelos de Deus e lhes responde com a obediência total e com a entrega confiada. Neste sentido, é o modelo do crente que percebe o plano de Deus e o segue.

O passo bíblico em apreço faz parte de um bloco de textos, as “tradições patriarcais” (cf Gn 12-36), conjunto de relatos singulares, originalmente independentes uns dos outros, sem grande unidade e sem caráter de documento histórico. Contêm mitos de origem (marcam a tomada de posse de um lugar pelo patriarca do clã), lendas cultuais (do modo como um deus aparecera no lugar ao patriarca), indicações sobre a vida dos clãs nómadas que circularam pela Palestina no 2.º milénio a.C. e reflexões teológicas posteriores, para dar aos israelitas modelos de vida e de fé.

Subjacentes ao quadro teológico-catequético em evidência estão as migrações históricas de povos nómadas, antepassados do povo bíblico, nos inícios do 2.º milénio a.C., em que a História regista forte movimento migratório de povos amorreus entre a Mesopotâmia e o Egito, passando pela terra de Canaã. Não conseguiram fixar-se na Mesopotâmia ou tiveram de a abandonar por causa de convulsões políticas registadas nessa zona e continuaram o caminho migratório, à procura de uma terra onde plantar definitivamente a sua tenda, a escapando aos perigos e às incomodidades do nomadismo. E os patriarcas bíblicos fazem parte dessa onda migratória.

Os clãs referenciados nas tradições patriarcais – sobretudo os de Abraão, Isaac e Jacob – tinham sonhos cujo denominador comum era a esperança de encontrar uma terra fértil e bem irrigada, bem como de ter uma família forte e numerosa que perpetuasse a memória da tribo e se impusesse aos inimigos. O deus aceite pelo grupo era o potencial concretizador desse ideal.

Nos capítulos anteriores (cf Gn 3-11), o hagiógrafo descreve uma humanidade que preferiu afastar-se de Deus; agora, apresenta um novo ponto de partida: Deus não desistiu da humanidade e quer construir com ela uma história de salvação. Para tanto, interpela um homem, no meio de uma multidão de nações, para uma tarefa difícil: ser um sinal de Deus no meio dos homens.

O tema do trecho em causa é a interpelação de Deus a Abraão. Segundo o teólogo javista, Deus chamou-o, convidou-o a deixar a terra e a família e a partir ao encontro de uma outra terra. Em conexão com a eleição, surge a bênção e a promessa de a família se tornar uma grande nação.

O catequista javista não explica o porquê do chamamento deste homem, em particular. É o exemplo perfeito do mistério inexplicável chamado vocação.

Para os antigos, abandonar a terra, onde o clã vive naturalmente e tem as suas referências, a pátria, qual espaço onde o clã encontra o afeto, a solidariedade e a proteção por usos, leis e costumes, e a família, onde o homem encontra apoio e complemento, era praticamente irrealizável.

Porém, face ao desafio de Deus, Abraão permanece mudo, sem discutir e sem objetar. E o autor javista descreve a sequência factual, como se as ações de Abraão fossem a explicação: o patriarca pôs-se a caminho. O verbo “yalak” (“ir”, “partir”, “pôr-se a caminho”) tem extraordinária força e exprime a audácia do crente que é capaz de arriscar tudo, de deixar o seguro para apostar em algo incerto, confiando na Palavra de Deus. É um rasgo que define a atitude de fé radical, de confiança total, de obediência incondicional ao desígnio de Deus.  

Neste passo bíblico, o que se conta de Abraão tem o valor de modelo, ensinando a obediência incondicional a Deus. E Deus compromete-se com Abraão e acena-lhe com uma promessa, que se exprime pela bênção (a raiz “abençoar” repete-se cinco vezes, nestes versículos), que é a comunicação de vida pela qual Deus realiza a promessa de salvação. E, na formulação da promessa, a bênção concretiza-se como descendência numerosa (noutros textos a bênção além da descendência numerosa, formula a promessa de uma terra).

Importante, neste contexto, é a ideia de que o Povo nascido de Abraão será fonte de bênção para todas as nações, ou seja, Israel passa a centro do mundo e a sua vocação é a de testemunha da salvação de Deus face a todos os povos. Não é um privilégio, mas uma responsabilidade.

***

Na segunda leitura (2Tm 1,8b-10), Paulo apela aos seguidores de Jesus a que sejam, de forma verdadeira, empenhada e coerente, as testemunhas do plano de Deus no mundo. Nada – muito menos o medo, o comodismo ou a instalação – pode distrair o discípulo dessa responsabilidade.

Segundo os Atos dos Apóstolos, Paulo encontrou Timóteo em Listra, cidade da Licaónia, na segunda viagem missionária. Filho de pai grego e de mãe judeo-cristã, Timóteo era bastante jovem, nessa altura (cf At 16,1). Porém, o apóstolo não hesitou em levá-lo consigo através da Ásia Menor, da Macedónia e da Grécia. Tímido e reservado, de saúde delicada, ouve o conselho a não beber só água, mas a misturá-la com um pouco de vinho, por causa do estômago e das frequentes indisposições. E Timóteo tornou-se companheiro fiel e discreto do apóstolo na ação missionária. Para não ter problemas com os judeus, Paulo fê-lo circuncidar; e, em data que não conhecemos, Timóteo recebeu dos anciãos a imposição das mãos, que o constituía enviado da comunidade a anunciar o Evangelho de Jesus.

Com ternura, Paulo refere-se a Timóteo como o “nosso irmão, colaborador de Deus na pregação do Evangelho de Cristo” e faz-lhe referências nas Cartas aos Tessalonicenses, na 2.ª Carta aos Coríntios, na Carta aos Romanos, na Carta aos Filipenses, na Carta aos Colossenses e na Carta a Filémon. E encarregou-o de missões particulares entre os Tessalonicenses e entre os Coríntios.

Relativamente à 2.ª Carta a Timóteo há um problema: a maioria dos comentadores considera-a posterior a Paulo (tal como a primeira e a Carta a Tito), por aí aparecer um modelo de organização da Igreja que parece de época tardia, isto é, de finais do século I ou princípios do século II.

Timóteo é, por essa altura, bispo de Éfeso, na costa ocidental da Ásia Menor. Começam as grandes perseguições e muitos estão desanimados e vacilam na fé. Por isso, necessita-se de líderes (entre os quais, Timóteo) para que as comunidades mantenham o ânimo e enfrentem, com fortaleza, as dificuldades que se avizinham.

O trecho em referência pretende ser uma exortação de Paulo a Timóteo, convidando-o a superar a juventude e a timidez, para ser modelo de fidelidade e de fortaleza no testemunho da fé.

O autor apresenta os motivos que devem impulsionar Timóteo a cumprir, com fidelidade, a missão apostólica. E recorda-lhe o plano salvífico de Deus que, de forma gratuita, quer salvar os homens e chamá-los à santidade, plano que se manifestou-se em Jesus Cristo, o libertador, que destruiu a morte e o pecado e ofereceu aos homens a vida plena. Ora, Paulo, prisioneiro pelo Evangelho, Timóteo e todos os outros são as testemunhas deste plano e não podem ficar calados diante do enfraquecimento da vida cristã que se verifica nas comunidades. Mesmo nas perseguições e nas dificuldades, não podem demitir-se da missão que Deus lhes confiou. Têm de ser testemunhas vivas, entusiastas e corajosas do desígnio salvífico e amoroso de Deus.

Enfim, todos os crentes devem escutar o Filho, o amado, do Pai, desde os pastores até ao que se considerar o último dos crentes. “Escutai-O” é a palavra de ordem do Pai.

2023.03.05 – Louro de Carvalho

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