sexta-feira, 17 de março de 2023

“A Marinha não esquece nem perdoa atos de indisciplina”, diz o CEMA

 

No dia 11 de março, na Madeira, treze militares (sargentos e praças) recusaram-se a embarcar no navio patrulha NRP ‘Mondego’ para cumprir a missão de acompanhar um navio russo que estava em trânsito ao largo de Porto Santo, invocando falta de condições de segurança, designadamente uma avaria num dos motores e o não funcionamento de um gerador elétrico. 

Esta posição levou a Marinha a considerar que os treze operacionais “não cumpriram os seus deveres militares, usurparam funções, competências e responsabilidades não inerentes aos postos e cargos respetivos”. Com efeito, no dizer, do Almirante Gouveia e Melo, Chefe de Estado-Maior da Armada (CEMA), a competência para avaliar as condições de segurança do patrulheiro é do seu comandante ou do imediato.

Porque a situação pode configurar infração disciplinar, internamente, a Marinha anunciou que iria avançar com processos disciplinares aos treze militares. Os factos estão a ser apurados, vindo a disciplina e consequências resultantes a ser aplicadas em função disso. E, pela suspeita de os militares terem incorrido em ilícito criminal, o caso foi participado à Polícia Judiciária Militar (PJM), que os vai inquirir a 20 de março, a partir das 10 horas, em processo externo à Marinha.

De acordo com um documento elaborado pelos militares em questão, a 11 de março, à noite, o ‘Mondego’ recebeu ordem para “fazer o acompanhamento de um navio russo a norte do Porto Santo”, quando as previsões meteorológicas “apontavam para ondulação de 2,5 a 3 metros”.

Segundo os militares, o próprio comandante do NRP ‘Mondego’ “assumiu, perante a guarnição, que não se sentia confortável em largar com as limitações técnicas” do navio.

Entre as limitações técnicas aduzidas pelos militares, constava, designadamente, o facto de um motor e um gerador de energia elétrica estarem inoperacionais. E o navio “não possui um sistema de esgoto adequado para armazenar os resíduos oleosos a bordo, ficando estes acumulados nos porões, aumentando significativamente o risco de incêndio”, como explicam.

Em nota enviada à agência Lusa, a Marinha confirmou que o NRP ‘Mondego’ estava com “uma avaria num dos motores”, mas que a missão a desempenhar era “de curta duração e próxima da costa, com boas condições meteo-oceanográficas”, que o comandante do patrulhão reportou que, “apesar das limitações mencionadas, tinha condições de segurança para executar a missão”; e que a decisão do comandante do navio foi tomada, apesar de o Comando Naval (COMNAV) lhe ter dado liberdade para abortar a missão, “em caso de necessidade superveniente”.

A Armada sublinhou que a “avaliação das prioridades das missões e [do] estado do navio segue uma linha hierárquica bem definida e estruturada”, cabendo “apenas à Marinha e à sua linha hierárquica, a definição de quais os navios em condições de cumprir com as missões atribuídas”.

No atinente às limitações técnicas do NRP ‘Mondego’, a Marinha refere que os navios de guerra “podem operar em modo bastante degradado sem impacto na segurança”, pois têm “sistemas muito complexos e muito redundantes”. “Essa avaliação, mais uma vez, pertence à linha de comando e à Superintendência do Material, enquanto entidade técnica responsável. Ambas as entidades não consideraram estar o navio inseguro para navegar”, diz a Marinha, acrescentando que “as guarnições dos navios são treinadas para operar em modo degradado, estando preparadas para lidar com os riscos inerentes, o que faz parte da condição militar”.

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A 16 de março, na Madeira, após ter falado à guarnição, o CEMA saiu, visivelmente irritado, do NRP ‘Mondego’, a dizer aos jornalistas que “este ato vai ficar registado na nossa história”. A “revolta da Bounty, na Royal Navy, em 1789”, também ficou, fez questão de lembrar.

Um ato de insubordinação nas Forças Armadas é um ato muito grave. A hierarquia existe porque há necessidade de disciplina e não o contrário. Há necessidade de as forças militares serem altamente disciplinadas e, quando quebramos a disciplina, o que estamos a quebrar é a essência da Forças Armadas e nós, militares, não o podemos permitir”, continuou, garantindo: “Não vou permitir que isto se alastre ou que possa passar despercebido um ato destes.”

O almirante assumiu ter ido à Madeira para dizer, “olhos nos olhos”, aos militares insubordinados, que, após este encontro, saem do Funchal para Lisboa, sendo substituídos por outros militares que vão para o Funchal. “O que vim aqui dizer é que não são admissíveis atos de indisciplina”, prosseguiu, adiantando que “será um juiz de direito a julgar estes comportamentos”.

Ainda assim, apontou, “face ao ruido externo, fiz questão de mandar uma inspeção independente” avaliar se tinha havido algum erro na cadeia de comando. E deixou implícito que o comando tinha razão: “O navio não está nas melhores condições, mas os navios militares, face às suas redundâncias, operam mesmo com limitações.”

Porém, a questão não é se os militares tinham ou não razões para a recusa. “Parte destes militares acharam que estavam em risco. Não lhes compete a eles fazer essa avaliação. Essa avaliação é da linha de comando”, disse o CEMA, garantindo: “Não mandamos missões impossíveis.”

Não sabendo a quem serve o episódio, foi perentório: “Ao país não serviu, à Marinha não serviu e a estes homens, que serão vítimas do seu próprio ato, também não serviu.” Mas acusou quem gosta de sensacionalismo e que está a usar nas redes sociais, para ampliar o sensacionalismo, um vídeo, que “tem, no mínimo, um ano e meio e não é deste navio”. O caso “não manchará a nossa reputação, mas será notado pelos nossos aliados”, admitiu o almirante, que, ao ser questionado sobre o que fazia o navio russo perto de Porto Santo, disse que isso deveria ser perguntado aos russos. Não obstante, deixou no ar a ideia de que podem andar a verificar cabos submarinos.

Já sobre os meios que faltam à Marinha, o CEMA remeteu para o poder político. “Não fui eleito democraticamente para decidir sobre isso, quem foi eleito para decidir sobre isso foi o Governo”, afirmou, vincando também aqui a cadeia de comando: “Eu informo. Com o que o país me atribui começa o meu dever de otimizar todos esses recursos para cumprir a missão da Marinha.”

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Aos amotinados a bordo do “Mondego”, o almirante disse, que apesar de “limitado”, o navio tinha “condições” para navegar. “Que interesses os senhores defenderam?”, questionou.

Falando para os 29 militares da guarnição perfilados no convés, assumiu que “podem estar em causa, para além das infrações disciplinares, questões de foro criminal”. Ou seja, lembrou que podem ir presos após julgamento. “Não vos consigo entender, nem perceber bem as vossas motivações e certamente a vossa interpretação peculiar do dever de tutela e de disciplina”, disse.

Antes de agradecer aos militares que se mantiveram ao lado do comandante, pediu os amotinados que pusessem as mãos na “consciência” para “o ato que praticaram”, porque “a Marinha não pode esquecer, ignorar, ou perdoar atos de indisciplina, estejam os militares cansados, desmotivados ou preocupados com as suas próprias realidades”. E reforçou: “O vosso ato será certamente lembrado por muitos anos nesta Marinha.”

Lançou, então, a pergunta com significado político: “Que interesses os senhores defenderam? Os da Marinha não foram certamente, os vossos muito menos”. Será alusão implícita às associações militares de sargentos e praças, que têm defendido estes militares e que, nas altas patentes, são associadas ao Partido Comunista Português (PCP). Também acena com o papão do comunismo!

Ante a suspeita de ter o navio a operar com risco para a tripulação, o CEMA frisou que os técnicos concluíram que o relatório da equipa técnica enviada à Madeira concluiu o contrário: “A resposta clara e inequívoca que recebi, ontem [15 de março], foi que sim, que a avaliação do comando do navio, nas condições em que o COMNAV definiu, a missão era realizável em segurança”.

A Marinha não envia os nossos navios e guarnições para missões impossíveis. Nem colocamos em risco as nossas guarnições de forma fútil, ligeira, irresponsável, ou mesmo ignorante”, vincou, acrescentando uma frase sentenciosa que deixa implícita cobardia daquele ato: “Devem confiar no seu comandante e ser corajosos”. Entretanto, a bordo de um navio com gente desgastada em estado de prontidão há 500 dias, reconheceu a “disponibilidade para sacrifícios e incómodos, a resiliência ao cansaço físico e psíquico”, que resulta “na ausência frequente das famílias”.

O comandante é “o último responsável pela segurança da sua unidade”, acentuou, recordando que o 1.º tenente Lopes Pires “disse que, apesar de limitado e nas condições em que lhe foi atribuída a missão”, o navio estaria pronto para a executar. E zurziu: “Esta avaliação foi feita por quem tinha o dever de a fazer? Por quem tinha a competência e responsabilidade para tal? A resposta é um rotundo: Não!” Este grupo de militares “simplesmente substituiu-se” aos comandantes.

A seguir, mandou recados ao poder político: “Se estou contente com o Estado da Esquadra? Não! Se estamos a trabalhar empenhados, todos, em alterar esse estado de coisas? Sim!” Mas não deu esperanças de que fosse rápido: “Pode o estado da Esquadra mudar instantaneamente? Não! Requererá muito esforço de todos, muita imaginação, determinação, paciência e dedicação. Estamos todos empenhados e aqui incluo necessariamente a tutela.”

E acusou a fuga de informação para as redes sociais, prevendo que as investigações também irão por aí, dado estar a ser partilhada informação classificada e sensível para a segurança nacional. “Alguns destes elementos, após o sucedido, ainda fizeram uma lista das avarias e problemas do navio e enviaram, sem conhecimento e autorização, para entidades externas à Marinha, com um intuito, imaginamos nós, de encontrarem apoio para os atos de insubordinação. Comprometeram a reserva necessária sobre o estado dos equipamentos militares, aparecendo esses relatos na rede Whatsaap. Não entendem os senhores o significado do que fazem?” – interpelou.

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Em declarações à Lusa, a 14 de março, o presidente da Associação Nacional de Sargentos (ANS), Lima Coelho, observou que as anomalias do navio representavam “grave risco” para a tripulação.

Assegurando que os elementos em causa já tinham alertado para diversas anomalias do navio, vincou: “Isto não foi uma crise no momento, foi fruto de muitas situações já vividas a bordo”. E criticou a posição assumida pela Marinha, frisando que “não se pode matar o mensageiro”.

A Marinha mostrou mais vontade em matar o mensageiro do que em resolver a situação”, criticou, acrescentando: “Independentemente do posto ou da função que assumimos, temos um dever de tutela para com os subordinados”.

A Marinha, como os outros ramos das Forças Armadas tem sofrido limitações nos orçamentos de operação e manutenção. Em novembro de 2022, o Almirante Gouveia e Melo tinha mostrado aos deputados da Comissão de Defesa Nacional, que a Armada tinha menos 30 milhões de euros do que o necessário para fazer a manutenção dos navios. Com a falta de meios e de pessoal, a consequência tem sido a elevada rotação das guarnições e o desgaste dos militares.

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Em março de 2022, o CEMA fez um discurso violento para os fuzileiros – “Não quero arruaceiros na Marinha” –, na sequência do homicídio de um polícia à pancada. Agora falou duro à guarnição do NRP ‘Mondego. É certo que a disciplina é a cola das Forças Armadas, como bem preconiza, mas, embora o CEMA deva proceder a atos de suspensão preventiva e, neste caso, de rendição, deveria manter reserva e, no discurso público, aguardar o resultado final das investigações, que determinam a responsabilidade disciplinar e ou criminal de cada um. E, se é certo que todos trabalhamos com falta de meios, também é certo que “não se fazem omeletes em ovos”.

2023.03.17 – Louro de Carvalho

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