quarta-feira, 8 de março de 2023

Custo do navio da Marinha do génio de Gouveia e Melo derrapa

 

O Chefe do Estado-Maior da Armada (CEMA), Gouveia e Melo, criou o conceito do porta-drones para a “guerra robotizada” (e em rede) do futuro, um navio revolucionário. E convenceu o governo de Portugal a financiá-lo com €130 milhões do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR).

Não se trata de ficção científica, afiançava em agosto de 2022, o almirante CEMA e os militares do seu staff. Com efeito, uma parte da guerra já se faz assim. Porém, o sistema vai alastrar: os robôs serão os soldados do futuro e, na Armada, serão os futuros marinheiros.

O almirante, que se tornou célebre na liderança do processo de vacinação contra a covid-19, teve de “convencer muita gente”, desde o topo do poder político até empresas e universidades, para o governo aceitar inscrever quase €130 milhões do PRR para um tipo de navio que não existe, pois nenhuma Marinha de Guerra dispõe de um navio “multifunções”, baseado nas tecnologias mais avançadas, com o conceito que este oficial general da Armada inventou e deu a conhecer num ensaio de em 2019, nos “Cadernos Navais”: “Este é um navio revolucionário. O próprio desenho e conceito é de um navio revolucionário.”

No futuro, far-se-á a guerra com menos soldados, mas com mais máquinas e robôs e com a contribuição de supercomputadores e de algoritmos capazes de atenção e de capacidade de reação muitíssimo superiores às humanas. E, estando as fragatas cada vez mais vulneráveis, como se viu no afundamento do “Moskva” russo no Mar Negro, o objetivo é Portugal ter um navio modelar equipado com drones aéreos, de superfície e subaquáticos, que transportem sensores e armamento, desempenhando missões, quer militares, quer civis e científicas. Em termos bélicos, é tirar partido da inteligência artificial (IA). Assim, de futuro, um quadro pictórico de batalha naval representará uma multitude de drones voadores e uma constelação de pequenos submarinos, com o navio-capitão a controlar a guerra a centenas de milhas náuticas, como se fosse um jogo de consola, comandado à distância por especialistas ou guiado por algoritmos de inteligência artificial.

Esta é a ideia base do porta-drones, facilitador da guerra robotizada e em rede. O porta-drones terá as dimensões de uma fragata robusta e pesará cerca de 5 mil toneladas (as nossas fragatas pesam cerca de 3,3 mil toneladas), para garantir um alcance muito superior ao das fragatas, pois serve de plataforma multiplicadora de capacidades robotizadas.

Do ponto de vista militar, transportar mais do que 50 drones armados, capazes de voar 24 horas seguidas à média de 150 quilómetros por hora, aumenta, radicalmente, o raio de ação de um navio e potencia, de modo exponencial, a capacidade de defesa e de alerta de um país com poucos meios. Na Ucrânia, os drones turcos Bayraktar têm sido essenciais na defesa contra os Russos, pois estão “aptos para fazer vigilância e defesa, com capacidade de deteção, intersecção e ataque”.

Os drones aquáticos e minissubmarinos serão outras armas fundamentais, tanto para a guerra antissubmarina como para a de superfície. O emprego simultâneo dos três tipos de drones pode tornar o porta-drones uma das armas mais letais e com o maior alcance das nossas forças armadas. “Temos uma Marinha pequena e um espaço marítimo do tamanho da Europa: se não for através da tecnologia, não conseguimos chegar lá”, observa o almirante.

Porém, este navio “multifunções” não serve apenas para a guerra. Tem a capacidade de vigiar grandes zonas e de fiscalizar as pescas, a poluição, e todo o tipo de atividades ilícitas. Pela ação dos drones, o navio torna-se invisível a potenciais infratores. E, a nível científico, tem capacidade “para fazer recolha de amostras, estudos espectrais da superfície do mar, todo esse tipo de sensores que são muito importantes para estudar o mar e o ambiente”, como explica o CEMA. Depende da configuração e dos módulos ativos no navio em cada momento.

Terá salas para cientistas, supercomputadores, redes estruturadas e todo o tipo de guinchos para meter e tirar coisas da água, podendo funcionar como navio polivalente logístico e navio hospital e de transporte, em caso de emergência, outra valência que a Marinha nunca teve. Pode transportar acima de 300 pessoas, além da guarnição, que será na ordem dos 60 militares, muito menos do que a fragata (que precisa de mais de 150 tripulantes). Outra vantagem é que os módulos podem ser rapidamente alterados conforme a utilização, sem o navio ter de passar meses na doca.

O concurso internacional público foi lançado em junho, na base de €94 milhões no PRR para a construção e de €30 milhões adicionais para os primeiros robôs. “Custa um quarto de uma fragata”, dizia o CEMA, em agosto, prevendo o prazo de três anos para o navio estar pronto.

Outro objetivo é envolver as empresas portuguesas, os centros de investigação e as universidades. A Marinha fez roadshows para congregar a indústria nacional e o tecido académico para desenvolver partes do projeto, de modo a termos “maior propriedade da tecnologia”. Até podem ser empresas estrangeiras, mas têm de investir em território nacional. A construção do navio pode ser em Viana do Castelo, por consórcio com Viana, ou por alguém que compre um estaleiro e queira investir em Portugal, dizia o almirante com otimismo, acrescentando: “Estou convencido que esse navio será um sucesso e terá encomendas internacio­nais.”

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Todavia, a 15 de fevereiro de 2023, soube-se que os custos do porta-drones podem derramar derrapar 30%, de €110 milhões para €144 milhões.

Nesse dia, a Marinha fez uma apresentação do navio “multifunções” e dos investimentos do PRR. O almirante responsabiliza a inflação por os Estaleiros de Viana do Castelo terem deixado deserto o concurso para o porta-drones. Não obstante, espera que a empresa não aumente o preço. E o secretário de Estado da Defesa Nacional, Marco Capitão Ferreira, apela ao privado para partilhar riscos. É um navio onde os marinheiros de silício têm mais importância que os de carbono

A diferença, no futuro, não será entre marinheiros de água doce e lobos do mar. Com a robotização da Armada, a diferença será entre as unidades de carbono que operam lado a lado com os marinheiros de silício, como disse o capitão de-fragata João Piedade na apresentação dos projetos da Marinha financiados pelo PRR, no Arsenal do Alfeite. Entre os projetos, destaca-se o navio “multifunções” ou porta-drones, que teria um custo estimado de cerca de €110 milhões de fundos europeus, estimado, mas que poderá derrapar 30% para os €144 milhões por causa da inflação.

João Piedade, chefe da Divisão de Inovação e Transformação da Armada, vincava que, no navio, se dará “mais relevância ao silício do que ao carbono”. Unidades de carbono, isto é, militares, seres humanos; unidades de silício, quer dizer robôs, drones, computadores, IA. Um navio com mais preponderância de máquinas e de processadores do que de pessoas.

O projeto do navio classificado pelo CEMA como “disruptivo” ou “revolucionário” – na linha dos navios crossover, ainda em protótipos, ou de plataformas para drones que outros países também estão a desenvolver – sofreu um primeiro revés. Foram pré-qualificadas duas empresas no concurso, mas “só uma continuou e resolveu não apresentar uma proposta final”.

A justificação dada pelo comandante da Marinha tem a ver com o aumento dos preços: “O projeto foi idealizado em 2020, com um determinado figurino financeiro, antes da inflação” dos anos seguintes, em que “o aço subiu para três vezes mais, a energia quase para o dobro e o navio tem muita incorporação de aço e de energia”. “As coisas têm de ser readaptadas, estamos a fazer essa readaptação e nada nos indica que o projeto não terá sucesso”, assegurou.

Quanto à possibilidade de os custos dos projetos da Armada (que incluem o navio e os centros de processamento de dados) passarem de €110 milhões para €144 milhões, o que foi mostrado num diapositivo de Powerpoint, o CEMA não concretizou, para não beneficiar quem vai concorrer. E disse: “Temos de fazer o nosso papel, que é beneficiar o Estado, e reduzir o custo o mais possível, para que se tenha também o objetivo final, que é o navio. E estamos convencidos de que o vamos conseguir fazer com o dinheiro que existe.

O secretário de Estado afirmou que “o navio não está atrasado”, porque “o prazo de execução do PRR é final de 2026”. A Marinha está “a trabalhar num prazo em que permitirá ter o projeto concluído seis meses antes do limite”, garantiu. O aumento de custos, segundo o governante, tem origem “na pressão sobre o preço das matérias-primas, que é um fenómeno inflacionista geral”, e “transversal a todos os países europeus nos mercados” da defesa, por influência direta da guerra.  

A empresa que deixou deserto o concurso é a West Sea, acionista dos Estaleiros Navais de Viana do Castelo, onde foram construídos os quatro patrulhas oceânicos e onde a Marinha e o governo gostariam de fazer o porta-drones, por ser o único estaleiro nacional com capacidade de construção de navios daquele porte. O almirante admitiu que a possibilidade de construir o navio ali existe, mas pode ser “noutros quaisquer”. Para desenvolver “uma indústria competitiva não há coisas pré-programadas ou pré-contratadas. Tem de ser concorrência leal e honesta. Gostava que o navio fosse português, com tecnologia portuguesa, mas isso não pode ser limitativo”, apontou.

O navio “multifunções” ou porta-drones visa, além da guerra, missões civis de natureza científica ou de proteção para vigilância dos oceanos. A Marinha tem como objetivo envolver a academia e as empresas, para aumentar o conhecimento sobre o mar, dada a vastidão do espaço português – através de big data – para “capacitar a indústria nacional”, “potenciar o desenvolvimento de tecnologias emergentes e disruptivas” ao nível dos sensores, da robotização e da IA, com o objetivo de “criar um ecossistema para a observação do mar”.

Do ângulo militar, a não ser que seja equipado com drones armados, terá, sobretudo, importância para a recolha de informação, socorro a catástrofes, transporte de tropas e equipamento, se necessário, mas também um papel para abrir caminho para o futuro. Quando as fragatas “Vasco da Gama” forem abatidas, o objetivo é substituí-las pelos navios crossover, tal como o navio que a Armada constrói agora, só que armados e a metade do preço das fragatas.

Um segundo pilar deste projeto tem a ver com o uso a dar aos dados recolhidos pelo navio, que serão tratados em quatro centros ou laboratórios, com que se pretende mobilizar o conhecimento científico para o desenvolvimento de capacidades de investigação e para a transferência de tecnologia com aplicação no mar: o Sensortech do Instituto Hidrográfico, o Laboratório de Robótica, Sistemas de Apoio à Decisão e Inteligência Artificial, do Centro de Investigação Naval, e o Centro de Experimentação Operacional da Marinha. E outro laboratório é o Centro de Operações Marítimas, que se constituirá em “verdadeiro centro de conhecimento situacional marítimo”, e ainda a Zona Livre Tecnológica, ente Setúbal e Sines, que já permite a startups, a universidades ou a outras marinhas testarem, em mar aberto e em ambiente real, o uso de drones e tecnologias de inteligência artificial.

O navio opera com metade da guarnição da fragata, mas pode embarcar 18 contentores ou 18 viaturas (como ambulâncias) ou nove embarcações tipo zebro e alojar 45 investigadores em camarotes, 120 militares no porão geral ou 80 elementos no porão de carga e no ginásio.

É uma “revolução na forma de como operamos no mar”, acredita Gouveia e Melo, a qual “vai permitir um aumento da área cognitiva da nossa ação, quer na defesa, quer no campo científico”, pois o silício (elementos de IA) não funciona sem o carbono (pessoas).

Venha daí o navio, pois não lhe faltarão oportunidades de aplicações em ações de paz!

2023.03.08 – Louro de Carvalho

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