quinta-feira, 28 de abril de 2022

Origem, conceções e função da verdade

 

A procura da verdade constituiu sempre um dos problemas fundamentais da filosofia, mas o seu conceito não é unívoco. Ao invés, há diferentes conceções sobre a natureza da verdade e do seu conhecimento. Entre elas, ressaltam as advindas das línguas grega, latina e hebraica, dependendo de qual das três ideias originais da verdade predomine, se moldará e direcionará o conceito de verdade. Em todas as conceções são preservados aspetos fundamentais, como: causas da diferença entre o parecer e o ser das coisas ou dos erros; causas da existência e das formas de existência dos seres; princípios necessários e universais do conhecimento racional; causas e princípios da transformação dos próprios conhecimentos; separação de preconceitos e hábitos do senso comum e atitude crítica do conhecimento; explicitação, com todos os pormenores, dos procedimentos do conhecimento e dos critérios da sua realização; liberdade de pensamento para investigar o sentido da realidade que nos circunda e de que fazemos parte; comunicabilidade, ou seja, critérios, princípios, procedimentos, percursos realizados, resultados obtidos, que devem poder ser conhecidos e compreendidos por todos os seres racionais (Para Espinosa, o Bem Verdadeiro é o capaz de se comunicar a todos e ser compartilhado por todos); transmissibilidade, ou seja, critérios, princípios, procedimentos, percursos e resultados do conhecimento devem poder ser ensinados e discutidos em público (segundo Kant, temos o direito ao uso público da razão); veracidade, ou seja, o conhecimento não pode ser ideologia ou não pode ser máscara ou véu para dissimular e ocultar a realidade servindo os interesses da exploração e da dominação entre os homens.

A verdade deve ser objetiva, devendo ser, por isso, compreendida e aceite universal e necessariamente, sem que tal signifique que seja neutra ou imparcial, pois está o sujeito do conhecimento vitalmente envolvido na atividade do conhecimento e o conhecimento adquirido pode redundar em mudanças que afetem a realidade natural, social e cultural. Por outro lado, a verdade, postulando a liberdade de pensamento para o conhecimento, exige que os seus frutos propiciem a liberdade de todos e a emancipação de todos. Há, contudo, um certo relativismo entre as diferentes conceções sobre a natureza da verdade, mas que se interligam.

Do latim “ueritas”, define-se a verdade como adequação do intelecto ao real. Assim, a verdade é a propriedade dos juízos, que podem ser verdadeiros ou falsos, dependendo da correspondência entre o que afirmam ou negam e a realidade de que falam. “Veritas” é relacionável com o verbo “uereor” (receio, temo), pois o pensador teme não ser capaz de envidar todos os esforços para a consecução da verdade, ou afastar-se do caminho (“uerita”), que a ela conduz, bem como com o nome “ueru” (espeto, esteio), porque a verdade é exornada da virtude de apoio ao homem e da capacidade de lhe revelar o mundo e de o revelar ao mundo. “Veritas” refere-se à exatidão dum relato, não da qualidade das coisas, mas de quanto é exato o seu relato. Assim, um relato é verdadeiro se enunciar pormenorizada e exatamente os factos reais. Do grego “alêtheia, a verdade recorta-se ao não oculto ou ao não dissimulado, ao que vem ao de cima. “Alêtheia” é o oposto de “pseudos” (escondido, dissimulado). O que importa é que olho e espírito, vendo o verdadeiro, estão diante de algo evidente próprio das coisas. A verdade está nas coisas. Por isso, dizer a verdade é dizer a verdade do que está na realidade manifestada, e não na realidade que não se manifesta, oculta, a que engana. E, em hebraico, verdade relaciona-se com “emunah”, palavra que se reporta ao pactuado, para o presente ou para o futuro. Tem a ver com a esperança, a confiança, a ideia de que o que se combinou vai realizar-se. Remete para o pacto histórico e político e para a profecia.

Em geral, entende-se por verdade a qualidade pela qual o procedimento cognoscitivo se torna eficaz ou obtém êxito. Tal caraterização pode aplicar-se às conceções pelas quais o conhecimento é um processo mental e às que o consideram um processo linguístico ou semiótico. E tem a vantagem de prescindir da distinção entre definição de verdade e critério de verdade. Tal distinção nem sempre é feita e, quando o é, representa apenas a admissão de duas definições de verdade. Por outro lado, a verdade é a concordância entre o sentido e a realidade, entre os argumentos e a verificação da existência sólida dos elementos que sustentam a argumentação.

Nietzsche diz que os homens constroem as suas histórias em fundamentações capazes de produzir uma verdade para a moral sobre o ser justo ou não. E busca, no decorrer do tempo, a explicação para obter respostas de como e que passos o ser humano foi capaz de dar para chegar a determinada conclusão. Para ele, a verdade, embora não seja absoluta, é capaz de esclarecer e justificar valores impostos e particulares.  

A verdade possui dupla interpretação, ou seja, entende-se em sentidos. Para a exposição da verdade pretende-se, antes de mais, mostrar a exposição do conteúdo e, depois, a forma em que se baseia verdade. Estes dois aspetos precisam um do outro para o entendimento da verdade.

Para Platão, a verdade aplica-se, primeiro, ao objeto e, depois, ao enunciado; já para Aristóteles, a verdade está ligada ao ato de dizer e, dessa forma, não há verdade sem enunciado, mas este não basta em si mesmo como verdade.

Na “República”, Platão narra a alegoria por acerca de alguns prisioneiros que estavam numa caverna, totalmente amarrados, tendo acesso apenas às sombras projetadas pela claridade da luz da fogueira. E, como já se haviam acostumado a essa situação, criam que isso era a realidade. Entretanto, um prisioneiro saiu da caverna e descobriu como era maravilhoso o lado de fora; voltou para contar a novidade aos seus antigos companheiros e não foi compreendido. Por isso, motivo, os prisioneiros resolveram nunca saírem da caverna, por temerem o que estava lá fora.

Para Heidegger, a interpretação da alegoria platónica é uma doutrina da verdade na qual se demostra a essência da verdade.

A alegoria da caverna ilustra a essência da formação, mas a sua interpretação deve apontar para a doutrina platónica da verdade. A alegoria não ilustra apenas a essência da formação, antes permite, ao mesmo tempo, a apreensão duma transformação essencial da verdade. Subsiste a relação essencial entre formação e verdade, pois a essência da verdade e o modo de sua transformação é que tornam possível a formação em sua estrutura fundamental.

Por seu turno, Aristóteles afirma que não é possível haver verdade sem enunciado porque é pelo enunciado que haverá algo que se discuta e seja base para a afirmação. Aristóteles aproximou-se da lógica e essa relação foi conhecida como coisa. Segundo Aristóteles, há dois teoremas fundamentais: o primeiro que a verdade está no pensamento ou na linguagem, e não no objeto; o segundo é a medida da verdade está presente no objeto, na ação. E é a partir destes pressupostos que se equacionam as teorias da verdade, que são de duas ordens: substantivas; e minimalistas.

Nas teorias substantivas da verdade, ou tradicionalistas, enquadram-se: a da correspondência, a da coerência, a pragmatista e a da verificação ideal.

Considerando que X é uma frase, uma declaração, um pensamento ou uma proposição e que o símbolo “sse” é o “se e somente se”, então as 4 teorias podem expressar-se assim:

Teoria da correspondência – X é verdadeiro sse X corresponde a um facto; teoria da coerência – X é verdadeiro sse X é um membro de um conjunto de crenças coerente internamente; teoria pragmatista – X é verdadeiro sse X é útil de se acreditar; teoria da verificação ideal – X é verdadeiro sse X é provável, ou verificável em condições ideais.

A teoria da correspondência tem a sua raiz na asserção de Aristóteles: “dizer do que é que ele é, ou dizer do que não é que ele não é, é a verdade”. Entretanto, comparamos coisas heterogéneas, ou seja, dum lado, uma expressão, frase, do outro, o facto. Essa teoria funciona razoavelmente para factos positivos, mas não para factos negativos. Por exemplo, se dizemos que “há um gato na sala”, temos um facto (o gato está na sala). Aplicando a fórmula da teoria da correspondência, temos que “há́ um gato na sala” se e somente se há́ um gato na sala. Há, pois, correspondência entre o enunciado e o facto. Mas, se tentarmos aplicar a fórmula da teoria da correspondência a factos negativos, ela não funciona. Por exemplo, se dissermos que “não há́ um gato na sala”, o enunciado é verdadeiro se e somente se não há um gato da sala. Ora, aparentemente a coisa é a mesma, mas não o é realmente, porque apenas estamos a dizer o que não há na sala e não algo que lá haja. Não temos uma informação útil. Não sabemos a que facto corresponde expressão linguística “não há um gato na sala”.

Já a teoria da coerência afirma que, nos enunciados, as coisas devem ser comparadas com coisas, as crenças com crenças, etc. Um sistema de crenças é verdadeiro quando os seus elementos são coerentes uns com os outros. A verdade é a propriedade de pertença a um sistema coerente de crenças ou enunciados. Entretanto, objeta-se ao coerentismo que há vários conjuntos harmoniosos de crenças muito bem estruturados, mas que não estaríamos dispostos a gastar esforço algum a seu favor numa discussão. São coerentes e ousamos chamá-los verdadeiros, embora em nada nos convençam a falar de alguma realidade. Se o coerentismo abre a guarda ao relativismo, não será solução para as falhas do correspondentismo, pois no limite apenas tece o tapete do ceticismo. Ora, o ceticismo é a figura contra a qual a filosofia tem a sua guerra permanente, já que o cético é o que fala sobre a impossibilidade do conhecimento verdadeiro. A teoria da verdade como coerência considera a verdade como resultando da sua coerência com um sistema de crenças ou verdades determinadas anteriormente. Desse modo, estará preservada a ausência de contradição dentro do sistema.

Foi contra a abertura da teoria da coerência diante do relativismo e do ceticismo que James e Dewey introduziram a teoria pragmatista da verdade. Segundo esta teoria, a verdade resulta do consenso entre o que é considerado aceitável face ao real. É uma corrente filosófica norte-americana, difundida no final do século XIX, segundo a qual a verdade é o que serve de solução imediata aos problemas, mas não se prende a um sistema moral normativo: o que se toma como verdadeiro é o agir humano em função de objetivos práticos.

Não há nada de novo no método pragmático. Sócrates foi adepto dele. Aristóteles empregou-o metodicamente. Locke, Berkeley e Hume trouxeram pequenas contribuições à verdade através dele. Shadworth Hodgson insiste em que as realidades são só o que sabemos delas.

Para os pragmatistas a verdade tem de ser útil e satisfatória, correspondendo aos meios que condicionam o pensamento. O pragmatismo tem como caraterística epistemológica o empirismo.

E, para a teoria da verificação ideal, em parte pragmatista, a verdade da proposição estabelece-se a partir dos resultados, ou seja, da sua aplicação prática e da sua verificação pela experiência. Para esta teoria, o “X” será verdadeiro somente se “X” for verificável em condições ideais. A verdade é subordinada à nossa capacidade de a descobrir e é entendida como o resultado do processo de verificação (real ou possível). Assim, um enunciado somente será verdadeiro se for possível ter acesso epistémico à sua verdade.

Nas teorias minimalistas enquadram-se a teoria deflacionista, a teoria da redundância e a teoria semântica – todas estão no campo semântico.

Os filósofos deflacionistas desmembram a verdade e tiram dela toda a carga metafisica nela implícita. Dizem que a verdade não é uma propriedade “real”, ou “robusta”, ou uma propriedade metafisicamente interessante. A palavra “verdade” é só um item de performance que tem o objetivo de auxiliar a frase e a deixar mais completa, pelo que não pertence ao campo metafisico.

Para a teoria da redundância, a verdade não é uma propriedade substancial, porque não é uma verdade. Segundo esta teoria, a expressão “é verdade” é redundante. Ou seja, quando afirmamos que “é verdade que Rosa é jornalista”, a expressão “é verdade” é redundante.

A teoria semântica afirma que a verdade é a propriedade das sentenças. Foi feita sobre um caráter lógico da proposição. Esta, para ter significado, tem de ser passível das atribuições de verdadeiro ou falso, segundo critérios analíticos ou empíricos.

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Há diferentes conceitos sobre o que é verdade. Diversos autores, estudiosos e filósofos apresentam distintas visões, destacando-se Platão e Aristóteles, cujas ideias outros reciclaram. Para Platão, a verdade aplica-se, primeiro, ao objeto e, depois, ao enunciado. E, para Aristóteles, a verdade está ligada ao ato de dizer. Aristóteles explica a verdade através das teorias substantivas de verdade (não considera a pragmatista): a da correspondência, a da coerência e a da verificação ideal. Em cada uma, explica a verdade com enfoque e função diferente. A teoria da correspondência é dizer do que é que ele é, ou não dizer do que é que ele não é, é a verdade. Já da teoria da coerência afirma que não tem sentido, e que nos enunciados as coisas devem ser comparadas com coisas e as crenças com crenças.

Ainda são defendidas as teorias substantivas, mas atualmente adotam-se, na maior parte das vezes, as minimalistas. Falar em minimalismo remete para o que é detalhado, pois o ser humano sempre busca os mínimos detalhes para expor os seus pontos de vista, o que leva à prática constante da teoria minimalista. As teorias minimalistas são todas do campo semântico, mas diferem entre si por passos bem visíveis ou por sutilezas só percetíveis para quem tem formação filosófica, técnica, nas áreas de lógica, semântica e filosofia da linguagem.

A verdade é essencial para compreensão do ser humano e suas relações. Portanto, é fundamental na convivência social, nas relações económicas, na definição de políticas públicas, na busca da justiça, nas decisões judiciais, na obtenção da coerência nas petições dos juristas e na aplicação das normas do ordenamento jurídico.

2022.04.28 – Louro de Carvalho

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